terça-feira, 9 de maio de 2017

O Vício e a Emergência Espiritual





Há duas conexões entre 
a emergência espiritual 
e a dependência química 
que são baseadas em 
nossas observações informais; 
esperamos que elas ajudem 
para uma maior compreensão 
dos problemas do vício 
e da emergência espiritual.



Algumas pessoas apelam para o alcoolismo tornando-se dependentes de drogas ou de outros vícios durante uma emergência espiritual. Estamos encontrando cada vez mais pessoas em processo de transformação que apelaram para substâncias que causam dependência, numa tentativa de suavizar o desgaste desse período intenso.

O álcool, assim como as demais drogas, proporcionam uma fuga temporária das pressões, da dor, do caos do mundo interior e da alienação que uma pessoa pode sofrer em relação ao mundo exterior. 
Isso pode ser complicado se, num estado de perturbação, a pessoa buscar a ajuda de um psiquiatra solidário, mas desinformado, que prescreva tranquilizantes que causem dependência.
Embora o uso moderado de tranquilizantes possa ser indicado em algumas situações, seu uso frequente para suprimir o processo é contrário à expressão máxima exigida durante uma emergência espiritual.
E para muitas pessoas — especialmente para aquelas com tendência para o vício — é fácil fazer uso desses medicamentos de maneira abusiva.

Além disso, uma das manifestações primárias de experiências como o despertar da Kundalini é uma tremenda energia.
Em especial durante os estados altamente estimulantes, uma grande quantidade dessa energia é expressa através de movimentos físicos e exaltação emocional, em geral exaurindo os recursos físicos da pessoa.
Como consequência, ela se vê sonhando com doces, precisando substituir os carboidratos que foram consumidos. E dos doces às bebidas alcoólicas, como o vinho do Porto, que tem um elevado teor de açúcar, a distância é muito pequena.

Muitos viciados e alcoólatras têm uma sensibilidade, intuição ou natureza mística altamente desenvolvida que, embora buscadas em outras culturas, causam-lhes problemas no mundo moderno e contribuem para o seu comportamento de viciados.
Isso fica patente quando percebemos que uma das afirmações mais frequentes feitas por pessoas em recuperação é “Sempre me senti diferente, como um pária. Mas quando tomei o primeiro drinque ou outro tipo de droga, a dor da separação desapareceu e senti como se eu tivesse o meu espaço”.
Como já mencionamos, para muitas pessoas essa sensação de ter um espaço pode ser a triste caricatura de um estado místico de união, a pseudo-satisfação de um desejo intenso por uma grande sensação de si mesmas.

Mas pode haver uma outra razão para esse comportamento, que também está ligado ao impulso inato do homem para a emergência espiritual.
Um grande número de pessoas que se tornam viciadas em alcool ou outras drogas cresceu em famílias desorganizadas, muitas vezes em situações de abuso emocional, físico e sexual, em geral com pais quimicamente dependentes, seja de alcool ou outras drogas.

A médium Anne Armstrong descreve em suas palestras a violência emocional na sua família, o que a motivou a desenvolver e contar com sua aguçada natureza intuitiva como um modo de sobrevivência. Onde os mecanismos comuns de combate falhavam, ela se tornou capaz, através de uma forte intuição crescente, de passar a perna e superar as pessoas que a ameaçavam.

Este parece ser o caso de muitas pessoas que se desenvolveram nessa atmosfera: incapazes de progredir com êxito aproximando-se diretamente dos membros da família, elas aperfeiçoam suas inclinações psíquicas sensitivas e naturais.

Os filhos de pais embriagados e irritadiços aprendem rapidamente caminhos instintivos para cuidar de si mesmos; talvez ensinem a si próprios a compreender o humor e os gestos dos pais ou a prever suas ações através de impressões precognitivas.
Essas crianças em geral se voltam para o seu mundo interior em busca de proteção, conforto e sensação de ter um espaço; elas podem fugir sonhando acordadas, criando amigos e aventuras imaginárias ou lendo durante horas.
Sao capazes de passar grande parte do tempo junto à natureza ou praticando desporto, ou podem encontrar seu caminho na igreja local. Podem desenvolver um forte relacionamento com sua índole mística ou criativa e ter verdadeiras experiências espirituais ao longo do caminho.

Para essas pessoas, a emergência espiritual pode começar na infância — iniciada, como são muitos outros processos a transformação, por um desgaste físico ou emocional extremo. Então, depois de anos aprimorando sua intuição, elas ingressam na nossa cultura – vão à escola, formam o seu grupo e, depois, arranjam um emprego. Então são forçadas a viver diariamente numa sociedade em que a racionalidade é a maneira de agir aceita e a intuição é vista como debilidade ou fraqueza.
Elas passam a sofrer uma dor terrível e uma rejeição constante como se quisessem se enquadrar num mundo construído em torno da lógica e da razão. 
Podem também sentir um desejo estranho de voltar aos domínios interiores que lhes dão consolo, segurança e um relacionamento com algo além dos seus sofrimentos pessoais.
Quando o primeiro gole ou droga acontecem, seus problemas parecem estar resolvidos.
Seu sofrimento diminui e suas diferenças se difundem à medida que seus limites individuais parecem dissolver-se e ingressar num estado de pseudo-unidade. Elas ficam mais à vontade socialmente quando participam de uma atividade altamente aceitável. Se têm predisposição para o alcoolismo ou para a dependência de outros tipo de drogas, como seus pais devem ter tido, podem tornar-se viciados num curto espaço de tempo.


Estas observações a respeito da relação complexa do vício do alcool e outras dependências químicas com a emergência espiritual são apenas um começo; com o tempo, muitas outras observações surgirão e também poderão ser o assunto de uma pesquisa séria.
Sentimos que isso é essencial tanto no tratamento da dependência química como no da emergência espiritual para a pessoa em crise, assim como para seus familiares, para que tenham consciência da ligação entre os dois tratamentos.

Se a pessoa estiver numa emergência espiritual, é preciso tomar cuidado com o abuso de drogas, (em especial quanto às permitidas por lei como alcool e tabaco); se tiver problemas com dependência química, poderá ser-lhe útil procurar por outros indícios de uma emergência espiritual.

É importante para os profissionais que trabalham na área do vício reconhecer e encorajar as dimensões intuitivas, criativas e espirituais dos seus clientes e oferecer-lhes programas nos quais esses aspectos possam ser desenvolvidos.
O fato de o alcoolismo e de a dependência de drogas, assim como de outros vícios, serem em muitos casos uma forma de emergência espiritual, tem implicações de longo alcance. 
Por exemplo, há milhões de pessoas nos Estados Unidos, na União Soviética, no Japão, na Europa e na Austrália, assim como em outras regiões do mundo, que estão sofrendo a destruição causada pelo vício que leva ao alcoolismo e outras drogas.

Um dos nossos sonhos é que, com uma orientação dedicada e com compreensão, cada um dos incontáveis viciados e alcoólatras que estão oscilando à margem do renascimento dêem o passo em direção a um estilo de vida espiritual; talvez, se essas pessoas encontrarem um grau de serenidade interior, terão um impacto positivo na comunidade mundial enquanto ela luta pela paz.



Christina Grof / Stanislav Grof
in, A Tempestuosa Busca do Ser







É possível que para muitas pessoas, por trás da ânsia por drogas ou álcool, esteja a ânsia por transcendência e completude. Se assim for, a dependência de drogas ou álcool, bem como todos os outros vícios, podem ser em muitos casos uma forma de emergência espiritual. O vício difere de outras formas de crise transformadora pelo fato de a dimensão espiritual muitas vezes se esconder por trás da óbvia natureza destrutiva e autodestrutiva da doença. Em outras variedades de emergências espirituais, as pessoas defrontam-se com problemas devidos aos estados mentais espirituais ou místicos. Em contraste, ao longo do processo de dependência, muitas dificuldades ocorrem porque a busca de dimensões internas mais profundas não está sendo empreendida.

Os alcoólatras e outros dependentes descrevem sua queda nos abismos do vício como "bancarrota espiritual" ou "doença da alma", e a cura de seu espírito empobrecido como "renascimento".
Como diversas emergências espirituais seguem essa mesma trajetória, é possível aprender muitas lições de assistência durante as crises de transformação com os programas bem-sucedidos no tratamento de abuso de álcool e drogas.

Para muitas pessoas, por trás da ânsia por drogas, álcool e outros tipos de dependência, está a ânsia pelo Eu superior ou Deus. Muitas pessoas que se recuperaram falam de sua busca incansável de algum pedaço desconhecido que faltava em suas vidas descrevendo como se dedicavam a uma busca vã, de substâncias, alimentos, relacionamentos, posses ou posições de poder e destaque numa tentativa de satisfazer uma ânsia insaciável. Em retrospecto, elas reconhecem ter feito uma trágica confusão, levadas a uma percepção errônea que lhes dizia que a resposta estava fora delas mesmas.

Alguns até descrevem seu primeiro drink e sua primeira droga como sua primeira experiência espiritual que tiveram, um estado em que as fronteiras individuais se dissolvem e a core quotidiana desaparece, levando-as a um estado de pseudo-unidade, conforme declara William James no seguinte trecho de As variedades da experiência religiosa:

"A influência do álcool sobre a humanidade deve-se indubitavelmente a seu poder de estimular as faculdades místicas da natureza humana, em geral reduzidas a pó pela frieza dos fatos e pela aridez crítica do período de sobriedade"

Depois de chegar ao fundo de sua doença e entrar num programa de recuperação espiritual, os dependentes em convalescência costumam exclamar: "Era isso o que eu estava procurando!" Sua recém-conquistada lucidez, a ligação com um poder mais Elevado e com outros seres humanos oferecem-lhes o estado de união que eles buscavam, e o desejo insaciável diminui.

Para muitas pessoas, a dependência do álcool, de drogas e de outras substâncias é uma forma de emergência espiritual. Como ocorre em muitas outras emergências espirituais, a jornada do viciado até o fundo do poço e daí para a recuperação é muitas vezes um processo de morte e renascimento do ego.

Durante a morte do ego, quer ela seja devida a um episódio de despertar espiritual ou de chegada de um indivíduo ao fim de sua carreira de alcoólatra, tudo o que se é ou se foi - todos os relacionamentos e pontos de referência, todas as racionalizações e proteções - entram em colapso e a pessoa é deixada nua, sem mais nada a não ser o âmago do seu ser.

Desse estado de absoluta e terrível rendição, não há para onde ir senão para cima. Como parte do renascimento que se segue a essa morte devastadora, a pessoa se abre facilmente para uma existência espiritualmente orientada, durante a qual a prática ou o serviço se tornam impulsos essenciais. Muitas pessoas se surpreendem ao descobrir uma fonte constante de benevolência interior que lhes dá força e orientação. Elas chegam à percepção de que a vida sem a espiritualidade é trivial e pouco gratificante.

A chave para essa redenção é o fim da ilusão de que se pode controlar a própria vida a aceitação de auxílio vindo de um Poder mais Elevado.



in, "Caminhos Além do Ego" 
Roger Walsh e Frances Vaughan
Texto de Stanislav Grof e Christina Grof retirado do livro





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