segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Abril
Surpreendentemente, o lugar em que o novo deveria encontrar um espaço propício para se impor foi ocupado, com grande alvoroço, pelo velho. Onde julgámos que podia haver sustentabilidade para o confronto, achamos uma artrose. Onde o suposto autor dispôs de um campo de edição infinito, desperdiçou-o para repetir, para imitar modelos falecidos. Assistimos, nos blogues, à subserviência, à poesia em vestidinhos de cambraia - a que os mais habilidosos põem rima, os menos põem uma prosa adolescente cortada aos bocadinhos, para fingir. Há evidentemente subversão na internet, uma gloriosa reescrita colectiva. Mas o assunto puramente criativo do indivíduo nem sequer estrebucha. Está deitado sobre a esterilidade realista e o fanado lirismo de janela. Pois tudo continua a ser a gasta, a vulgar linguagem. E os autores continuam a ser bem comportados e repetitivos, confundindo o seu pântano com o mar. Largaram o caderno e imaginam que assim se modernizam. Reproduzem, afinal, os encontros para o chá. (...)
O arcaico é intrinsecamente feminino. Tem essa força, essa multiplicidade de seios de grande deusa, a mãe mediterrânica, a mulher venerada, a matriarca. E a força do novo deve muito ao que ainda nos vem do subterrâneo, da humidade e da escuridão, daquilo que é redondo e que se deita. Não admira que em certas formas de vanguarda das artes haja mulheres, ainda quando tudo as empurra para trás. Que levem o quotidiano para o poema, que lhe intercalem certos palavrões. Ou que sejam abstractas na pintura. Isso não é, porém, o novo. É um atrevimento grupal, enquanto o novo é sempre singular. (...)
Na escrita, o novo pega na massa poética, assegurando que os ingredientes são os mesmos de sempre - a palavra, a prosódia, a rima, o lírico, a evocação e a invocação. Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, à familiaridade estilhaçada. É a infiltração de uma desordem, de um descaramento. (...)
Apraz-me muito regressar, num texto novo, à palavra ainda não utilitária, ainda não serva, ainda não feita para passar mensagens. A uma palavra física, temível, que às vezes se atirava para matar. Nós já não praguejamos, já não tememos o malefício da palavra; vivemos, pois, imensamente aborrecidos. (...)
Hélia Correia
in, Mulher ao Mar
De Margarida Vale de Gato
("Abril", texto no final do livro, escrito por Hélia Correia)
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