sexta-feira, 5 de julho de 2019

O RITO






1. 
A nossa terra veio a ser um rito, um signo de descoberta 
na qual o homem se encontrou. 
A reconciliação com a terra pode talvez ser substituída pela necessidade, 
pela inexorabilidade de existir que a terra impõe, 
toda a terra, inclusivamente esta que com o coração escolheste 
entre todas as outras. 
Quando nela ganhas raízes para a vida e para a morte, 
ela vai-te quebrantando até reduzir-te a pó. 
Vês com dificuldade e com dificuldade te tornas visível 
através da necessidade terrestre. 

Supõe um esforço incessante subtrair os homens 
à inexorabilidade imposta pela terra - e este 
esforço tem um nome: «história.» 
A história não é ressurreição, mas uma constante 
conformidade com a morte, que apenas faz transparecer 
a sucessão das agonias humanas. 
Ela não alcança o rito em que se converteu a terra,
a nossa terra. 
Daí nasce o amor à terra. 
O amor não flui a par da morte: ultrapassa-a. 
Pelo amor que ultrapassa a morte, a terra veio a ser um rito. 
Pelo amor que ultrapassa a morte, a nossa terra converteu-se num rito. 

2. 
O rito das águas inumeráveis que surgem da terra como plantas; 
- as plantas desta terra são os rios, como a água é a terra das plantas; 
no inverno, os rios gelam, gelam os lagos e os tanques, 
mas as fontes brotam: a Vida das águas fará o gelo explodir. 
A nossa terra aproximar-se-á do sol e ele será suficiente 
para que a vida ressurja. 
Reviverão as águas, reviverão as árvores, REVIVERÁ 
A TERRA e virá a ser um rito, 
levar-te-á para lá do círculo da morte inscrito nela. 
A necessidade de VIVER - dizem a terra e a água cada primavera -, 
não é talvez mais forte que a necessidade de morrer? 
- assim dizem a terra e a água no seu sussurro recíproco. 

Tal sussurro, como o traduzirás na tua própria linguagem? 
Como enxertarás no teu pensamento a morte e a Vida da terra? 
O rito das águas tem uma voz diferente na primavera, 
quando devolve a vida à terra, 
e é diferente no verão, quando o homem arde em sede 
como o leito de um rio 
e o corpo é todo ele um anelo de pureza e frescura...
O homem absorve então o rito das águas 
- e nele encontra o seu equilíbrio. 

A água fala-nos mais de durar do que de passar 
no fluxo dos teus destinos és duradoura, ó água! 
A ti, homem imerso na água, digo 
que és o destino da terra. 
A nossa terra veio a ser um rito de plantas e de árvores 
que se abrem como um pensamento saturado de sabedoria, 
Sabedoria que é a nossa Pátria, escolhida pelo coração, 
com o assentimento da terra. 

3. 
Com as suas mãos o homem agarra a luz como um
remador que dirige a barca, 
entra na luz com todo o seu ser, com toda a carga 
das suas palavras e dos seus atos. 
Quer ficar nela, quer guardá-la dentro de si, 
ou quer mesmo irradiá-la? 
Sente a obscuridade, a penumbra, às vezes sustenta 
sobre as palmas das mãos 
um frágil véu de luz, como sustentaria uma criança recém-nascida; 
e canta à luz as canções que uma ama cantaria ao embalar; 
- depois cala-se e as canções brilham até que a criança 
é envolvida na sombra da existência. 

O terra que nos geras, não geras connosco a luz, 
mas apenas o véu frágil, ténue, que basta às plantas e aos animais! 
Bem diferente é a luz de que uma criança precisa, 
luz feita de substância que o abraço materno não pode encerrar. 
Bem diferente é a luz de que uma criança precisa...

Sou-te leal, terra, quando falo da luz que tu não podes dar 
porque falo da LUZ: sem a qual o HOMEM não pode realizar-se, 
nem tu tão-pouco, terra, te poderias realizar no homem. 

No rito da água e da luz estás presente e calas. 

O homem passará sobre o rito com a sua vida e a sua morte 
e tu pensarás que o terá espezinhado. .. 
Passará o homem, passarão os homens - correrão,
gritando «a vida é luta» 
e da luta, que farão surgir: uma terra nova? 
(Quando a terra, depois das lutas dos homens, ficar 
plena da sua própria quietude, pensarás que a espezinha ?) 



KAROL WOJTYLA
in, A PEDREIRA E OUTROS POEMAS





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