quinta-feira, 11 de julho de 2019

Aqui Mereço-te





O sabor do pão e da terra 
e uma luva de orvalho na mão ligeira. 
A flor fresca que respiro é branca. 
E corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas. 
Pertenço em cada movimento a esta terra. 
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras. 
Sorvo o silêncio visivel entre as árvores. 
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono. 
Sob as pálpebras transparentes deste dia 
o ar é o suspiro dos próprios lábios. 
Amar aqui é amar no mar, 
mas com a resistência das paredes da terra. 

A mão flui liberta tão livre como o olhar. 
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio 
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas, 
ao fogo esparso que alastra ao horizonte. 
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada. 
Tudo o que eu disser são os lábios da terra, 
o leve martelar das línguas de água, 
as feridas da seiva, o estalar das crostas, 
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra, 
o incessante alimento que percorre o meu corpo. 
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio 
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais, 
os alimentos puros, 
as espessas e nutritivas paredes do sono, 
o teu corpo com todo o vagar da sua massa, 
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar. 

Ao flexível volante trabalhado pelas seivas 
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte. 

Uma saúde nova vai nascer destes ombros. 
A lâmpada respira ao ritmo da terra. 
Sei os caminhos da água pelas veredas, 
as mãos das ervas finas embriagadas de ar, 
o silêncio donde se ergue a torre do canto. 

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te. 

É este o reino de insectos e de jogos, 
das carícias que sabem a uma sede feliz. 
Aqui entre o poço e o muro, 
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo: 
uma infância inextinguível se alimenta 
de uma fábula que renasce em todas as idades. 
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar 
com seu brilho sedoso de erva fina 
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte. 
É aqui o eterno recanto onde a água diz 
a pura praia da infância. 
Aqui bebe e bebe longamente 
o hálito da tristeza no silêncio da vida, 
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce, 
da fundura do tempo, da lonjura permanente, 
aqui, bom dia, minha filha. 


António Ramos Rosa
in, 'A Construção do Corpo' 





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