segunda-feira, 8 de julho de 2019

MÁGOAS





Domingo de manhã nesta cidade azul. Adivinho-te na estação de metro. Espera-te o hospital, os doentes ansiosos, o cansaço de seres humano todo o tempo. Entranhas-te no choro das crianças doridas e tomadas de pânico, no rasar de olhos da mulher que vai enviuvar dentro de minutos, agarrando o amor da sua vida pela mão para não partir. Também te imagino de olhos cerrados à procura de ânimo para as tuas próprias dúvidas existenciais. Chegando ao edifício que já tanto consideras como sendo a tua própria casa, tens à porta a mulher de um moribundo que te espera entre soluços e o esgaçar de um sorriso que teima em não aparecer. Como é que é suposto ser-se humano numa situação de desespero? Como é que eu vou fazer querer oferecer o meu tempo a um outro que não vai poder recebê-lo por inteiro? Que raio de tempo é este, onde uns têm tanto e a outros lhes escapa tão extraordinariamente por entre os dedos e as mãos tão penosamente trancadas? Começas o dia com a evidência do cansaço, exaurido, única e simplesmente pelas lembranças das caras contorcidas de quem pede com comiseração a preciosa ajuda de que tanto carece.

Enquanto jantávamos no “Mercy” no dia dos teus anos, tentei não abordar o teu quotidiano tão repetido e diverso. Também não quis falar de nós, pois este pronome arrefeceu nas mãos que já não damos, nos corpos que não se tocam e aquecem, nas nossas faces que não ardem nem nos corações a quererem sair do lugar, apenas pelo evocar de memórias.

Silêncio e vazio, frivolidades para lhes ocupar descaradamente o lugar. Ou da Maria, falamos da Maria exaustivamente, como se a nossa filha pudesse substituir ou preencher estes afectos desnudados, esvaziados... e que o tempo só perdoa se insistirmos que melhores dias poderão advir do nada e baseada numa irrealidade desgastada como a água que perfaz o mesmo percurso através das rochas que carcome. "A Maria está uma senhora!" Volto a repetir pela quarta vez em cinco minutos. A resposta veio na forma de um sorriso que te caracterizou tantas vezes nas noites de inverno em que ainda me lembro, te sentavas à janela a ver passar o carro do lixo enquanto vociferavas que tanto detrito só poderia ir parar perto da casa de alguém sem vida própria, alguém que ninguém reconhece com uma existência suficientemente notável e desprovido de olfacto. A Maria apanhou de ti o gosto por vezes exagerado com o ambiente e com os outros. Até com os animais mais insignificantes e invisíveis. Numa destas tardes mais húmidas, uma “maria-café” subiu a parede do quarto dela e, por uma fresta da janela, despenhou-se no chão, em queda livre. Apanhou-a e impediu-me de a devolver à rua para não ser devorada pelos pombos que proliferam por todos os lugares desocupados da cidade. Foi devolvê-la à parede da casa para ser livre como os peixes e os caranguejos, dizia.

O Inverno e o frio não se demoram, já se antevêem neste Outono que já não tem dias de início nem de termo. Continuarão as árvores nuas e impotentes, os ventos a soprarem debaixo da porta da rua que não isolaste antes de…partires sem partir. E o Inverno vai trazer de volta, mais copiosa e dura a tua ausência de mim. Vou encaracolar-me na manta em que te enrolavas, sentado na secretária e que guarda forte, intenso e apetecível o aroma do teu corpo. Faço de conta que a tua demora se deve ao facto de estares a fazer banco pela sétima vez esta semana. O teu odor consome todos os meus sentidos e dou comigo a passar a ponta dos dedos pelas almofadas ainda por lavar desde a altura em que fingias cá viver em casa. O Hospital, os doentes, as chamadas a meio da noite e em dias de fim-de-semana dilaceraram os antepenúltimos instantes que eram apenas nossos. Ressinto com amargura as saudades das noites em que fazíamos amor e éramos interrompidos pelo clamor de um doente, exigindo o teu corpo quase tão ofegante quanto eu reclamava pelo teu.

Quando comecei, era para te escrever uma carta, breve, concisa, quase lacónica para te dizer que a Maria pede para estares mais tempo com ela, já que sábados e domingos são dias semelhantes aos outros. Ia sugerir que a levasses ao colégio mais vezes durante as semanas de aulas e que a viesses buscar para jantar. Não. Quase me desencanto quando recaio dentro de mim e encontro nas minhas águas internas a imagem do outro lado do espelho da veracidade destas palavras que te ia escrever, quase destituídas de afectos. Sou eu que careço que me pegues ao colo, a correr como fazes com a Maria ou com algum ébrio que entreguem na urgência. Sou eu que necessito que tragas um sorriso quente e abras a porta da minha vida para a não fechares mais. Volta. Cresci como mulher com a tua ausência como as árvores de folha perene, mesmo na obscuridade do Inverno. Como elas, suportaria, pesada, a neve nos ramos, sabendo que apenas um vislumbre de sol as deixará de novo libertas, maduras.

…e assim termino esta vontade contida na evidência da tinta azul deste manuscrito que deixarei no teu cacifo no hospital quando não estiveres.

Cresce-se com o nada, o sofrimento, o frio. Que a vida, o humano e o transcendente beijem as tuas emoções e te recordem o nunca esquecido caminho até mim.


ANGIE SANTANA E LÍLIA TAVARES
in, Pequenos Contos




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