segunda-feira, 26 de março de 2018

Se numa Noite de Inverno um Viajante





Acabei agora de reler este "puzzle" em forma de livro, do inigualável Italo Calvino.
Cada vez que o releio, descubro sempre coisas diferentes.
Um dos meus escritores favoritos, desde sempre.

10 inícios de romances distintos - uma espécie de contos - que nos deixam com água na boca para conhecer o desfecho...que nunca acontece. São dez começos de romances interrompidos e nunca retomados.
Um trabalho muito técnico, complexo e, acima de tudo, uma ode ao prazer da leitura.
Um livro sobre livros!
A forma como se lê, o tipo de livros que se lê, os tipos de escritores e os tipos de leitores que existem...

Calvino começa por se debruçar sobre a "crise da representação", ou seja, no mundo capitalista contemporâneo, dividido, múltiplo, alienado, não teriam mais lugar os romances tradicionais, com princípio, meio e fim, que constroem personagens e organizam o mundo, dando um sentido às coisas. O leitor de hoje estaria condenado ou à leitura espinhosa de obras que se debruçam sobre si mesmas e procuram desesperadamente uma saída para a literatura, ou à superficialidade descartável das obras de simples entretenimento com tudo mastigado. Calvino "socorre" esse leitor que é inquieto e exigente mas que gostaria que os autores escrevessem livros "como uma macieira faz maçãs". Para isso, faz do próprio leitor o seu personagem principal, cuja grande missão é ler romances. E tal como nós, leitores, ele entra numa livraria e compra este livro: Se um viajante numa noite de inverno. É aí que começa a história.

Como leitora, revi-me no modo como o autor descreve os tiques e as pequenas grandes manias dos leitores incorrigíveis, e simplesmente adorei o início do livro onde nos é dada uma série de conselhos quanto ao ambiente, à posição de leitura e até à luminosidade adequada para ler.

“Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de Inverno um viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. (…) Arranja a posição mais cómoda: sentado, estendido, enroscado, deitado. Deitado de costas, de lado, de barriga. Na poltrona, no sofá, na cadeira de baloiço, na cadeira de praia, no pufe. Numa cama de rede, se tiveres alguma cama de rede. Em cima da cama, naturalmente, ou dentro da cama. Até podes pôr-te de cabeça para baixo, em posição de yoga. Com o livro virado ao contrário, bem entendido.” (…) Descalça primeiro os sapatos. Mas só se quiseres ficar de pés soerguidos, porque senão torna a calçá-los. E agora não fiques por aí e sapatos numa mão e livro na outra.
Regula a luz de modo a não te cansar a vista. Fá-lo já, porque assim que estiveres mergulhado na leitura, nem penses em mexer-te. Arranja-te de maneira que a página não fique na sombra, um emaranhado de  letras negras sobre fundo cinzento, uniformes como uma ninhada de ratos; mas tem cuidado para que não lhe bata de chapa uma luz demasiado forte e que não se reflicta no branco cru do papel roendo as sombras dos caracteres como num meio-dia do Sul. Tenta prever agora tudo o que puder evitar-te o interromper da leitura. Os cigarros ao alcance da mão, se fumares, e o cinzeiro. Que mais é que falta? Tens de ir fazer chichi? Bem, tu é que sabes.”

Outra descrição que me captou a atenção, é a do tipo de livros que vemos quando vamos a uma livraria para comprar livros:

“Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista visual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para  Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiados Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, Dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos, avanças para diante das torres do reduto, onde te opõem resistência
os Livros Que Há Muito Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pôres Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina, Frenética E Não Claramente Justificada.
E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Sempre Que Leste E Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo.”

“- Ler-diz ele, – é sempre isto: há uma coisa que ali está, uma coisa feita de escrita, um objecto sólido, material, que não se pode alterar, e através dessa coisa comparamo-nos com outra coisa qualquer que faz parte do mundo imaterial, invisível, porque é só pensável, imaginável, ou porque existiu e já não existe, passando, perdida, inalcançável, para o país dos mortos…
– …Ou que não está presente porque ainda não existe, algo de desejado, de temido, possível ou impossível – diz Ludmilla, – ler é ir ao encontro de qualquer coisa que está para ser e que ainda ninguém sabe o que será…”


“ A leitura que os amantes fazem dos seus corpos (desse concentrado de corpo e espírito de que os amantes se servem para irem juntos para a cama) difere da leitura das páginas escritas por não ser linear. Começa num ponto qualquer, salta, repete-se, volta atrás, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momento de tédio, vira a página, recupera o fio, perde-se. (…)O aspecto em que a cópula e a leitura mais se parecem é que dentro delas se abrem tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço medíveis.”


É um livro que se ama ou se detesta!
Um romance extremamente cerebral.

Calvino desenvolve, argumenta e defende “teses” em cada um dos capítulos deste romance. 
Cada uma dessas “teses” trata de um aspecto da leitura: a leitura banal, a leitura especializada, a crítica, a tradução, a edição, a venda, etc.
Talvez pudéssemos ler este livro como um romance acerca do sistema literário.
Os protagonistas são os livros, os leitores, os escritores e a própria arte de escrever.
É um percurso complexo e muito bem estruturado, soberbamente escrito sobre as vicissitudes de um leitor e de uma leitora em busca da continuação de um novo romance que tinham começado a ler e cuja leitura fora súbita e irritantemente interrompida num ponto crucial da história.
Assim começa o livro, com o primeiro livro da história com 10 escritores imaginários diferentes.
Uma homenagem ao prazer da leitura, aos leitores, aos escritores e aos livros.

É um "puzzle" que obriga o Leitor, a Leitora e o leitor(nós) a saltar do romance policial, para o livro de mistérios, da literatura erótica para a de viagens, do tratado de filosofia para a teoria literária. Um mosaico que mistura estilos e histórias, que questiona a escrita e a leitura.
Existe alguém, que já fez parte da vida da Leitora Ludmilla, Hermes Marana, tradutor, que não cumpria as suas funções, antes inventava ou copiava obras baratas. A procura do Leitor leva-o até à editora, e, segundo o editor, Marana é o responsável por alguma daquela confusão de livros e de inícios de romances que não terminam. É que o tradutor defende uma teoria: não interessam os nomes dos autores, "sabe-se lá que livros da nossa época se terão salvado e de que autores se recordará ainda o nome"?

Ao longo do livro é notória a crítica à mercantilização da cultura, nomeadamente no domínio da edição de livros e da falsificação. Calvino entra mesmo numa reflexão sobre os apócrifos, encarando a falsificação como manifestação da verdadeira natureza humana e da sua hipocrisia.
Por outro lado, aquilo que é falso não deixa de ser encantador; a falsidade é o contraponto da verdade e assim lhe dá sentido.

Esta impotência que sentimos por não poder terminar a leitura de cada um dos dez livros é acompanhada, frequentemente, pela angústia do próprio escritor, quando não consegue, ele próprio, terminar a obra. Nesse aspecto, este romance sente-se também como um desabafo e, mais uma vez vem ao de cima a cumplicidade entre autor e leitor.
No livro surge um escritor, Silas Flannery, romancista e autor de inúmeros "best-sellers".
Será Flannery o alter-ego de Calvino?
Flannery teve um bloqueio e está retirado das lides literárias (Calvino escreve este livro em 1979, depois de 7 anos sem escrever). Diariamente, espreita uma mulher, que não conhece, que lê e o autor anseia escrever o livro que aquela leitora deseja ler. Melhor, que a leitora está a ler. Por isso não consegue escrever.
Será "Se numa Noite de Inverno um Viajante" esse livro?
Por fim, o Leitor e nós, leitores, consegue ou não construir o puzzle concebido por Calvino?

Para o leitor, o envolvimento na leitura permite-lhe entrar num mundo encantado.
Aqui, no último capítulo do livro, em que estão vários leitores numa biblioteca a partilhar os seus pontos de vista sobre os livros, a leitura altera toda a dimensão da vida do leitor.
Cada um destes leitores tem uma forma diferente de abordar a leitura e é muito interessante como nos identificamos com algumas delas ou conhecemos alguém assim, ou já nos aconteceu fazermos de todas aquelas maneiras, com livros diferentes, como se cada livro condicionasse a leitura e esta não fosse condicionada pelo tipo de leitor. Todas são válidas. 

Enquanto se lê, ultrapassa-se todas as barreiras. E quando a leitura é interrompida, instala-se a angústia e o espírito fervilha em busca de uma continuação.
O estímulo da leitura torna-se indispensável, de uma leitura com substância, mesmo que de cada livro não consigamos ler mais do que algumas páginas. Mas, essas poucas páginas encerram em nós o Universo Inteiro a que não conseguimos dar um fim.
A leitura como uma operação descontínua e fragmentária.
Por isso acho interessante reler várias vezes um livro, porque se fazem novas descobertas entre as dobras das frases...nas entrelinhas.
Neste livro, em cada releitura, é como se estivesse a ler um livro novo pela primeira vez. Vejo coisas novas, sinto o livro de forma diferente, faço novas descobertas em relação ao livro e em relação a mim, fico com impressões diferentes e inesperadas, penetro mais no espírito do texto.

E é aqui que um dos leitores que estão na biblioteca diz uma coisa que me tocou especialmente desta vez:

" Cada novo livro que leio passa a fazer parte desse livro geral e unitário que é a soma das minhas leituras. Isso não acontece com facilidade: para compor esse livro geral, todo o livro particular deve transformar-se, entrar em relação com os livros que li anteriormente, tornar-se o seu corolário, o seu desenvolvimento, a sua confutação, a sua glosa, ou o seu texto de referência. Não fazemos mais do que prosseguir a leitura de um único livro. Todos os livros que lemos levam a um único livro."


Porque o livro só termina com a morte ou com a persistência da vida, ou como diz no livro, " O sentido último para que remetem todas as narrativas tem duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte." Livros que não terminam são apenas pedaços de vida que não têm princípio nem fim; são mundos sujeitos a múltiplos olhares.

No final do livro, descobrimos que os dez contos cujos títulos ligados formam uma frase poética que, de uma certa maneira, resume toda a viagem no livro, e todos os protagonistas dos contos acabam por ser tu mesmo, o leitor, que lês o livro, ainda mais porque são narrados na primeira pessoa.
E, todos os livros que lemos neste livro, levam a um único livro:

"Se numa noite de inverno um viajante, fora da povoação de Malbork, debruçando-se da encosta íngreme sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas que se intersectam no tapete de folhas iluminadas pela lua em torno de uma fossa vazia, - Que história lá em baixo espera o fim? - pede, ansioso por ouvir a narrativa."


Enumero aqui os títulos dos “romances” apresentados e seus autores- alguns deles supostos – que Calvino nos apresenta:
Se numa noite de inverno um viajante, de Italo Calvino;
Fora da povoação de Malbork, do polaco Tatius Bazakbal;
Debruçando-se na encosta íngreme, do poeta cimério Ukko Ahti ;
Sem temer o vento e a vertigem, do címbrico Vorts Viljandi;
Olha para baixo onde a sombra se adensa, de Bertrand Vandervelde;
Numa rede de linhas que se entrelaçam, de Silas Flannery;
Numa rede de linhas que se interceptam, Flannery/ Marana;
No tapete de folhas iluminadas pela lua, de Takakumi Ikota;
Em torno de uma fossa vazia, de Calixto Bandeira;
Que história lá em baixo espera o fim?, Anatoly Anatolin.

Nomes de autores e livros que temos a impressão de ter visto em alguma prateleira de livraria.

O esquema do romance é composto por duas camadas:
A primeira, formada por doze capítulos numerados, nos quais encontramos acções do Leitor em busca do romance inicial;
A segunda, formada por dez “romances”, ou começos de romance que lemos junto com O leitor.
Essas duas camadas são costuradas, quase se confundem uma com a outra, demonstrando que ler e viver são actividades homólogas.

Então em toda esta viagem e mudança de perspectiva, perdes-te na absurda irrealidade da existência e encontras-te a perguntar pelo sentido de tudo, principalmente pela peculiaridade das histórias que terminam sempre abruptamente, deixando-te com água na boca, e quando retomam são já outras encarnações.

Todos os livros que lemos, levam-nos a um Único Livro!!!!!


Por fim, a construção labiríntica da obra é constantemente reafirmada.
Do mesmo modo que a conclusão de Cidades Invisíveis é de que todas aquelas cidades são uma só, aqui neste livro acaba da seguinte forma: 

 “- Só mais um bocadinho. Estou quase a acabar Se numa noite de inverno um viajante, de Italo Calvino.”






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