segunda-feira, 27 de novembro de 2017

........................... não hei-de morrer como a mãe





E jurei que não haveria de morrer como a mãe, mãe.

E que nunca nenhum homem me levantaria a mão, nem me espetaria um hálito grosso de cerveja, nem me haveria de invadir, tocar, irromper em mim como um carroceiro sujo desembestado.
E não haveria de ir às compras, fazer almoços, aspirar porcaria, despejar cinzeiros, a fungar lágrimas escondidas.
E não me abriria nunca como as conchas, pela força enferrujada de uma faca de romba, a forçar-me a carne desistida. E não quereria ver, alguma vez, o que nunca vi mas adivinhei anos a fio, as noites todas em que pensava que a mãe estaria ainda viva ou já defunta, um boneco de pano nas mãos dele, pernas abertas e rosto para o lado, para a parede branca, um trapo a ferrar os lábios para não lhe ouvirmos um ai, não me hão-de romper com nenhum chicote de cavalo cego.

Queria dizer-lhe que nas minhas noites não há animais que me esporeiam, que não me fico em silêncio para não me ouvirem suspirar. Queria ter-lhe dito que me avisei a tempo e não hei-de morrer como a mãe, mãe.

Não fecho os olhos com força de cada vez que me deito,  não tenho de esconder um corpo lancinante, adormeço em paz, aquecida, confortada, e os braços são para abraçar, mãe, fique sabendo, as pernas são para enroscar, os peitos para encostar, ao de leve, a pele toda para arrepiar, os lábios para sorrir, os olhos para ver de frente, ver de perto, sem medo, mãe, porque é possível embora seja tarde para si, é possível não morrer as noites todas, sem medo de monstros de caverna, de pêlo grosso que nos fere a alma todas as noites, riscos de sangue novo por cima de riscos de sangue velho, todas as noites de uma vida, todas as noites dentes e saliva e um punho de garras, abertas fechadas abertas, que desaba sobre nós.



in, A Mulher em Branco
Rodrigo Guedes de Carvalho
pág. 128





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