domingo, 20 de agosto de 2017

A menina que não sabia sentir






A mãe da Rita morreu no dia em que ela nasceu. Na mesa da sala há uma fotografia tirada nesse dia, em que a mãe da Rita, muito pálida, a abraça, de olhos fechados e com uma lágrima cintilante a dançar entre pestanas.

A Rita foi criada pelo pai. O pai da Rita conhecia bem os perigos do mundo, e por medo de a ver magoada, criou-a, como ele dizia, “como um homem”. Ele acreditava que os homens sobreviviam melhor ao mundo se lhe fossem impermeáveis. Ele não deixava que o mundo lhe tocasse. E ele não tocava no mundo. Nem sempre era fácil. Mas o pai da Rita sabia que mais difícil ainda era sentir as dores que se sentem quando se toca no mundo, mesmo que seja muito ao de leve.

Quando, no infantário, a Mariana disse à Rita que já não era mais amiga dela, a tristeza invadiu-a. Mas quando o pai a veio buscar, não a deixou chorar. Quando a Rita pediu ao pai que deixasse a luz do quarto acesa durante a noite, ele não a autorizou a sentir medo, e apagou-a na mesma. E quando a Rita pedia para ver desenhos animados, o pai dizia-lhe que lesse ou fizesse trabalhos de casa extra, porque era mais útil.

A Rita gostava muito do pai. O pai ensinava-a a ser forte e a não depender de ninguém. Ensinava-a a controlar as emoções e, por causa disso, a Rita era bem mais corajosa que as outras meninas da turma dela. E não era só corajosa. Era a melhor da turma a tudo, da matemática ao português, das ciências à educação física. Isto porque o pai não deixava que a Rita se distraísse com disparates, como os desenhos animados. A Rita tinha a letra mais bonita, os cadernos mais limpinhos e a cabeça mais organizada.

Quanto mais crescia, mais parecida com o pai a Rita se tornava. Não gostava que chorassem perto dela, porque a Rita cresceu a acreditar que era mais prático encontrar soluções em vez de chorar os problemas. Não gostava de usar palavras como “magoar”, ou “amar”, porque expressavam emoções que tocam demasiado no mundo. E, acima de tudo, a Rita não gostava de pedir desculpa, porque pedir desculpa admite culpa, e se a Rita tivesse culpa então tinha fraquezas também. E toda a gente que a conhecia sabia que a Rita não gostava de fraquezas.

Um dia, quando já era adolescente, a Rita conheceu um rapaz. Embora já tivesse conhecido vários rapazes antes deste, o pai incluía o tema romance debaixo do toldo dos “disparates”, por isso a Rita nunca tinha tido namorado. Mas este rapaz era diferente dos outros, e sem saber porquê, a Rita teve vontade de esticar a mão para o mundo, apanhar a palavra amar e dançar com ela pela noite fora. Mas amar era quase um sinónimo de vulnerabilidade. Então a Rita não se deixou amar.

Uns anos depois o pai levou a Rita ao altar. Nesse dia, de braço dado, ambos se emocionaram, mas nenhum se atreveu a chorar por medo do que o outro pudesse pensar. O homem que a Rita escolheu era muito inteligente. Era forte, determinado, bonito. Mas no fundo do poço que era o coração da Rita, ainda estava o rapaz que ela conheceu em adolescente, o único que tinha merecido a palavra amor, mas que nunca a tinha ganho. Era mais fácil assim. Amar o marido seria a maior das vulnerabilidades.

Quando o pai morreu, a Rita chorou sozinha no quarto de banho, com a porta fechada e a água a correr. A Rita só chorava sozinha. Mas nesse dia pensou no pai, na vergonha que ele teria se a visse assim. Então lavou a cara, encheu o peito de ar com sabor a luto e abriu a porta de volta para o pragmatismo.

A Rita e o marido seguiram juntos pela vida, lado a lado, sem nunca deitar uma lágrima. Tiveram filhos, que a Rita ensinou a não tocar no mundo, nem ao de leve. E foram crescendo todos com alergia às emoções e sem medo de nada.

Os anos passaram rápido demais. E um dia, quando a Rita acordou, apercebeu-se que tinha envelhecido. A pele das mãos tinha enrugado e a da cara descaído. Não era fácil andar, ou sentar, ou levantar. E o pior de tudo era que, de vez em quando, a Rita não conseguia evitar tocar no mundo. Tinha vivido tantos anos nele que se tornava impossível rejeitar a forma como ele chamava por ela. E de cada vez que o fazia, a Rita sentia-se fraca e envergonhada.

Os netos gostavam da avó Rita e iam lá a casa lanchar quando o horário lhes permitia. Neste dia, a Rita sentou-se ao sol. Sentiu o calor invadi-la como se tivesse entrado num banho de banheira. As mãos, sempre frias, aqueceram. E dentro do peito da Rita, qualquer coisa tinha começado a derreter e a borbulhar.

O neto que a tinha ido visitar nesse dia abriu a porta para a varanda e veio sentar-se ao seu lado.

“Estás triste, avó?” perguntou.

A Rita levou as mãos à cara e sentiu-a húmida. As lágrimas deslizavam por entre as rugas como se estas fossem socalcos de rua. Da garganta saltou-lhe um soluço que não foi capaz de segurar.

“Não, filho.” Respondeu-lhe a Rita. “Estou feliz.”

O neto estendeu os braços para a Rita como o pai costumava fazer. A Rita estendeu os dela de volta e encaixaram-se um no outro. Dos olhos da Rita saíam os medos e as tristezas de toda uma vida. E quanto mais saíam, mais espaço havia dentro da Rita para as coisas boas de toda uma vida. Aquele abraço do neto tinha aberto as portas. Era o mundo que a abraçava.



CONSTANÇA FREIRE DE SOUSA




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