quinta-feira, 22 de junho de 2017

Como a mente se engana?





Eis uma pergunta que em algum momento 
qualquer praticante budista se faz: 
Afinal de contas, 
se temos uma natureza livre, 
desobstruída, 
como é que nos enganamos? 
Como surge a ignorância?



Nem precisa ser praticante budista para pensar numa questão dessas: quem nunca teve alguma atitude lamentável e depois de um tempo não pensou “como é que eu fui capaz de fazer aquilo?”
Por que só percebemos a bobagem um tempo depois e não antes de cometê-la?

Na palestra de lançamento do livro A Roda da Vida como caminho para a lucidez, em São Paulo, Lama Padma Samten esclarece com sua mestria e bom humor que, na verdade, a mente nunca se engana! Ela só opera dentro de uma determinada paisagem, com referenciais próprios. Essa paisagem seria como um ambiente mental, com referenciais e conceitos específicos. A mente sempre vai agir segundo esse ambiente em que está imersa, sempre respeitando os pressupostos da paisagem. Logo, a mente nunca erra!

A ignorância e o engano surgem quando reduzimos o mundo todo à paisagem em que estamos e passamos a agir segundo tal paisagem, não entendendo que ela é uma coisa bem particular e não corresponde a uma realidade absoluta.




Nosso mundo não é senão 
nossa experiência do mundo.

Temos a sensação que a paisagem em que estamos é, de fato, o mundo todo. É daí que brota o engano: dessa certeza, dessa sensação de vermos tudo. Nem pensamos sobre o fato de que, quando vemos uma coisa, não vemos outra, quando estamos numa paisagem, não estamos em outra, logo, há uma limitação. É como a figura das pernas ali em cima: quando vemos as pernas masculinas, não vemos as femininas e vice-e-versa.
O mesmo acontece no exemplo do cubo que o Lama Samten costuma usar.

É por isso que fazemos as bobagens: no momento da ação não vemos outras alternativas e por isso temos a certeza de que aquilo que estamos fazendo é o que tem que ser feito,  seja gritar com alguém, ou o que for. Isso não vale só para as “bobagens” da vida.
Qualquer coisa que vemos e fazemos depende da paisagem em que estamos.
É um processo muito sutil, basta olharmos para o nosso mundo interno que vamos começar a paulatinamente perceber que as paisagens determinam nossa visão de mundo.

Nessa mesma palestra, Lama Samten lembra que a humanidade passou séculos acreditando que o Sol girava ao redor da Terra.  O homem passou um longo tempo sem conseguir ultrapassar os limites dessa paisagem, tomando-a como fixa. Até que alguns homens corajosos furaram a bolha dessa paisagem e provaram para nossos olhos físicos que a visão de mundo tinha de ser expandida! Mas nós sabemos o quanto foi custoso para homens como Copérnico, Galileu e Giordano Bruno introduzir novas visões de mundo. As pessoas estavam fixadas à visão de mundo anterior a eles, assim como nós estamos fixados a muitas de nossas paisagens.


Mas afinal, como criamos as diferentes visões de mundo e como ficamos presos a elas? 
Lama Samten explica que nossa natureza livre e desobstruída cria as diferentes paisagens e até mesmo a própria fixação a elas. Essa compreensão é de crucial importância, pois percebemos que as paisagens em que as pessoas se encontram não são fixas, são construídas, portanto, podem ser substituídas por paisagens mais elevadas!

Para mim, a parca compreensão do conceito de paisagem foi muito libertadora!
Perceber que os seres agem a partir das paisagens em que estão imersos me fez finalmente entender porque não há como julgarmos nada de certo e de errado, pois esses conceitos só fazem sentido quando analisamos uma ação com referenciais diferentes daqueles da paisagem em que a ação foi cometida. 
Por exemplo: eu direi que a atitude do meu namorado de gritar comigo está errada, pois EU não estou na paisagem onde o grito possa surgir, assim eu estou analisando a atitude dele a partir da paisagem em que EU estou e não a partir da que ELE está, logo, direi que ele está errado e que ele é um ser horrível por gritar comigo. Mal percebo eu que, basta ele pisar na bola que eu entro facilmente na paisagem que ele estava e passo a gritar com ele mais alto ainda.

Portanto, se estivermos numa paisagem muito negativa, do reino dos infernos, por exemplo, é completamente possível que venhamos a agredir ou até a matar alguém.
Dentro da paisagem desse reino, matar pode parecer o correto a se fazer.
Porém, sabemos que essas ações nos trarão muitos problemas.
Além disso, como nossas paisagens flutuam o tempo todo, logo saímos da paisagem negativa, percebemos o equívoco e vamos nos sentir muito mal.

Por isso, precisamos olhar com cuidado para o nosso mundo interno e perceber com que paisagens estamos andando por aí e começar a transformá-las em paisagens mais positivas, para que enfim nossas ações também o sejam.
Caso contrário, estaremos fazendo um monte de bobagens e nem vamos desconfiar disso, afinal, dentro das paisagens específicas as coisas fazem sentido.


Visão, meditação, ação
Lama Padma Samten nos lembra a todo o momento da nossa natureza livre, que nos dá a extraordinária possibilidade de construir as melhores paisagens, as mandalas positivas, que no Budismo chamamos de Terras Puras, onde os seres estão empenhados em construir ambientes mais lúcidos para benefício de todos.  Só iremos perceber que temos essa extraordinária natureza praticando a percepção dela.

Ainda que entendamos bem o funcionamento das paisagens, não estamos livres das paisagens negativas se instalarem sem percebermos.
Não estamos livres delas, porque muitas vezes esse entendimento é só no nível de visão; é teórico, mas importante.  Mesmo entendendo bem das paisagens, eu mesma recentemente gritei enlouquecidamente com um amigo, virei um monstro na frente dele por questões bem pequenas.

Reconhecendo que o buraco é bem mais em baixo, precisamos investir na etapa da meditação, na qual tornaremos vivo o entendimento gerado na etapa de visão e assim reconheceremos a inutilidade do surto antes que ele tome conta de nós.
Para então podermos efetivar a etapa de ação no mundo e realmente poder trazer benefícios verdadeiros aos seres!



Stela 
in, Bodisatva



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