terça-feira, 20 de outubro de 2020

Reconstrução


Chribeu




Em setembro, a construção do ser torna-se mais fácil: 
o outono, com a sua melancolia, empresta um estranho 
perfume de terra ao espírito. As linhas da natureza ficam 
tão nítidas como a linha do horizonte; e pode ver-se 
para o outro lado, onde as ideias se sobrepõem como 
peças de um jogo de cubos. Espreito através deles, 
tentando esquecer as letras que serviam para que, 
com esses cubos, se formassem palavras: as palavras 
simples de um vocabulário infantil. Mas as letras tapam-me 
a vista do horizonte, e trazem-me de volta ao puro 
jogo do ser, onde nada ainda está decidido. É verdade que podia 
atirar tudo abaixo, pensando que o que importa são 
essas linhas abstractas que desenham, entre as nuvens e o mar, 
uma hipótese de alma. Para isso, seria preciso que eu 
esquecesse as palavras que aprendi, e que voltasse à planície 
branca da origem. Fogo, água, luz, terra, todas as letras 
me obrigam a tê-los em conta, mesmo quando o que eu quero 
é outra coisa - a própria qualidade, o essencial, o que 
nenhum sentido capta. Então, espero pelo inverno para 
me desembaraçar da matéria: a chuva, a neve, as tardes 
de nevoeiro, o frio da noite até ao nascer da madrugada, 
onde os cubos de luz caem entre ser e não ser. 


Nuno Júdice


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