domingo, 10 de maio de 2015
As Putas do Diabo
"As Putas do Diabo", o nome com que Lutero designava as bruxas do seu tempo por terem supostamente relações sexuais com o demónio, é o título de um interessante livro de Armelle Le Brás-Chopard, professora de Ciência Política, que trata de bruxaria e satanismo medievais, e que merece uma leitura atenta e sem preconceitos.
Indo directamente ao assunto nuclear da obra, a tese é a seguinte:
As perseguições movidas pela Inquisição e pelos poderes públicos às bruxas foram motivadas menos por razões religiosas do que políticas.
Tratou-se, segundo a autora, do processo encontrado pelos Estados Europeus em formação e em rumo acelerado para a centralização do poder, de afirmarem a sua soberania e de esmagarem os direitos e a liberdade individuais.
A razão por essa perseguição ter sido movida sobretudo às mulheres, que eram a esmagadora maioria dos «praticantes» de feitiçaria, deveu-se ao facto, por um lado, delas serem mais vulneráveis do que os homens, mas também porque a sociedade europeia medieval assentava muito na organização familiar matriarcal, sobre a qual os Estados emergentes necessitavam de impor a sua autoridade.
A «caça às bruxas» terá sido, assim, movida mais por razões políticas do que por motivos religiosos, e marcou o fim do mundo medieval, abrindo espaço à transição da sociedade feudal para o Estado moderno.
Diga-se, de resto, que a autora argumenta exemplarmente em defesa da sua tese.
Desde logo, há a registar o facto dos tribunais que julgavam os crimes de feitiçaria se dividirem, na generalidade dos países europeus, em duas jurisdições com competências diferenciadas:
A religiosa, que apreciava a matéria de facto, onde se encontravam juízes do clero,
E a estadual, que declarava o direito aplicável e onde tinham assento juízes seculares.
A ingerência do Estado na nomeação e controlo dos primeiros era a regra geral.
No caso da célebre Inquisição Espanhola, que era, de facto, um tribunal eclesiástico, a nomeação dos inquisidores era da inteira responsabilidade do rei, limitando-se Roma a ratificar os nomes indicados. Já em França, onde Henrique II tentou reproduzir o modelo espanhol, a fim de evitar qualquer dependência de Roma, a Igreja acabou por ser completamente afastada, ao ponto dos processos de bruxaria se terem virado contra si e os seus prelados.
Cedo, na generalidade dos países europeus, os juízes seculares acabariam por suplantar os eclesiásticos, assumindo o controlo total dos processos desde a investigação, até à acusação.
A Igreja acaba por ser não só devorada neste processo, como é mesmo atacada pelo poder público do rei, que assim a submete à sua autoridade cada vez mais absoluta.
Através das acusações de bruxaria de que, progressivamente com maior frequência, os clérigos começaram a ser vítimas, foi-lhes retirado um dos poucos privilégios que possuíam ainda perante o poder do Estado: o foro eclesiástico, isto é, a prerrogativa de serem julgados pelos seus próprios tribunais.
Deste modo, a «caça às bruxas» serviu não só a centralização régia em curso, como também acabou por ser um forte instrumento de laicização do Estado.
De facto, e não por acaso, coube a Jean Bodin, o primeiro teorizador da soberania (Les Six Livres de la Republique), ter sido também um dos primeiros autores a escrever um tratado sobre feitiçaria (De la Démonomanie dês Sorciers), onde, por sinal, defendia a inteira estatização dos respectivos processos judiciais.
Quando, no final do século XVII, os processos por bruxaria são proibidos em toda a Europa, já o Estado moderno se encontrava implantado, e o poder absoluto dos reis solidamente firmado.
Nessa altura, a legitimidade do Estado e dos monarcas decorre já directamente da vontade de Deus, e não tem que ser transmitida pelo Papa.
Por sua vez, o individualismo e a autonomia local próprios do mundo medieval estavam completamente domesticados pelo poder público dos monarcas.
A soberania triunfara sobre o indivíduo.
As prisões na Alemanha, em França e por essa Europa fora estavam cheias de «bruxas» e de «bruxos».
Havia que dar espaço a outros, nomeadamente aos «inimigos do Estado».
Rui A.
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