domingo, 26 de abril de 2015

Terra



Hoje voltei a lembrar-me.
Já noutro dia me tinha lembrado, quando cheguei ao ar livre e me cheirou a terra molhada.
E precisei de tocá-la, porque só o cheiro não chegava, tinha de tê-lo colado aos meus dedos, apeteceu-me esfregar a cara, o corpo, a pele toda, queria que tudo tivesse a textura da terra, como daquela vez na cabana, em que suei e gemi de encontro ao seu ventre.
Ando a revolver as águas maternas, talvez seja por isso que choro.
Ultimamente tenho chorado.
Tem chovido e o cheiro da terra devolve-me ao útero, reconduz-me às entranhas, aos lagos fecundos e femininos do corpo, às dores ancestrais das mulheres, à gestação dos afectos, à humidade do mundo.
Mães. É disso que tenho andado a tratar e, neste momento, tenho uma a queixar-se, uma mãe de papel que se queixa da ausência do pai, da ausência dos pais, como se assim só fosse metade.
Metade de mãe.
Levará o seu tempo até que descubra onde é que se parte, pode até ser que nunca descubra, ainda não sei.
Chove e a terra traz-me a promessa: não há nada que me separe. E volto ao colo que me dá, de cada vez que me rendo. Volto a lembrar-me de tudo, até sem saber o que é tudo. Das viagens que faço de olhos fechados, do embalo das marés, da vulnerabilidade das aves, da orfandade dos anjos, coisas que invento, talvez seja disso que constantemente me lembro.
Voltei a lembrar-me de mim, de me terem rasgado as entranhas, dos hinos de espanto e louvor que vieram dar ao meu colo, de as cicatrizes, umas por cima das outras, serem a prova inquívoca de que as dores saram.
Voltei a lembrar-me de todas as mães que já tive. Das mães todas que tenho.
Heranças, memórias, paisagens, pinhais e tenho uma mãe que plantou um no campo, manso como convém a quem procura um abrigo debaixo da copa das árvores, mais uma mãe de papel expiando o contágio da carne, nunca sei se é na ficção que imito a realidade ou se é com a vida que atiro para cima das minhas mães de papel, para que me aliviem da carga.
Não sei, mas voltei a lembrar-me.
Naquele dia, voltei a lembrar-me e hoje, mais uma vez, a chuva promete voltar e molhar tudo em volta: a relva, as memórias, as pálpebras.
Há uma série de coisas que me atravessam a alma quando verto palavras, quando quero converter o que sinto na escrita, há sempre uma parte que falta, um lugar indizível ao qual as palavras não têm acesso, um intervalo entre a voz e o peito.
Averiguar a verdade é inútil, portanto. 
É inútil esquecer-me de tudo e foi disso mesmo que hoje voltei a lembrar-me.


Inês de Barros Baptista

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