quarta-feira, 16 de abril de 2014

Aprendiz de viajante


Photo by W. Eugene Smith

Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».

Creio que, na altura, acreditei no que lia.
Estava doente, tinha quinze anos.
Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes — e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia.
No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.

A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite...
Avancei sempre, sem destino certo.

Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada.
Levantei-me e parti.
Fui em direcção ao mar.
Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo» em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.

Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas.
Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida.
Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo.
Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.

A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem.
O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica.
Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.

O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas.
Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto.
A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma — estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água.
Vive ali, e canta — sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.

Al Berto

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