Pergunta – Esse abandono do eu e do ego e a vontade da vida, isso fica um pouco confuso...
Monge Genshô - É porque pensamos que o eu é que vive. Mas não é o eu que vive a vida. A vida é que nos vive. Nós somos a própria vida. Não é um eu que esta vivendo a vida. Não é uma folha numa árvore lá fora que está vivendo a floresta, é a floresta que produz folhas. Nós somos a própria floresta, não somos folhas. As folhas nascem e morrem. Seria muito tolo que uma folha se sentisse muito infeliz porque amarelece e cai, nós diríamos que a folha é tola, pois torna-se húmus, nasce de novo, ela é a própria vida, não há nenhuma tristeza nas folhas que caem das árvores. Ninguém chora as folhas que caem no outono, pois nós sabemos que a vida produz primavera, mas quando olhamos para nós mesmos, confundimos o eu com a vida, nós pensamos que é o eu que vive a vida, e não é isso. A vida é que nos vive. Somos a própria vida. É por isso, porque a vida está sempre continuando, que nascimento e morte também são ilusões. Não há como você ir embora daqui, você é a vida. Então desse seu eu temporário é só um evento extemporâneo da vida como um todo. É como o quebrar das ondas do mar, como as folhas que caem e viram húmus, é como as nuvens que chovem. Se uma nuvem vira água e chove ninguém diz – Coitadinha da nuvem, virou chuva - nós sabemos que a chuva cai, que as plantas crescem por causa disso, que nós vivemos por causa disso, um dia ela evapora e volta a ser nuvem. Não damos nomes às nuvens e dizemos que elas tem identidades e não dizemos – Lá vai a nuvem Joana, coitada, vai morrer hoje pois esfriou e ela vai chover até se acabar – mas fazemos isso connosco e isso mostra nossa cegueira.
Pergunta - Por que?
Monge Gensho - Porque o eu é muito nítido, muito forte, você abre os olhos e vê os outros. Você tem ouvidos e ouve sons. E você pensa “Ah, isso sou eu!” Isso não é você, isso são sons, é a visão, são cheiros. Por que você pensa que é o que ouve, o que vê, o que cheira, o que prova? Nós pensamos que nossa mente somos nós mesmos, essa conformação mental é nossa consciência. Esse que pensa como Descartes “Penso, logo existo”. Eu penso, logo eu existo. Não é isso. Eu penso, por isso penso que existo. Esse pensar não fez um eu. Assim como a chuva que cai não faz nada, não faz um eu. Nós pensamos, só pensamos. Esse pensar nos atrapalha, cria a ilusão de um eu. Por isso sentamos e tentamos fazer com que nossa mente se acalme. Porque quanto mais ela cogita, mais ela se agarra à sua identidade e tem medo que sua identidade desapareça. Tem tanto medo que a identidade desapareça que cria fantasias religiosas. Eu vou continuar para sempre, eu tenho uma alma eterna. Quem morre não sou eu, é só o corpo, eu continuo depois. Vemos isso nos desenhos animados. Tom o gato morre e a alma dele vai saindo do corpo, e ele consegue agarrar pelo rabo e puxa de volta. Nós criamos essas fantasias, mas não existe uma alma eterna. Nós somos movimento da vida. Nós somos eternidade. Nós temos continuidade sim, há continuidade, não há com ir embora. A morte é que é uma ilusão.
Monge Genshô
Pois...mas continuo confusa...
Então, se não existe Alma Eterna, como podemos ser Eternidade?
Como poderemos ter continuidade após a morte?
Então para quê tantos rituais, durante 49 dias após a morte?
Como já sabem, adoro paradoxos...
E existem algumas coisas no Budismo que não encaixam comigo, apesar do meu fascínio pelo Dharma.
Como em tudo, fico com o que me serve, e o resto, deixo para lá...quem sabe, para mais tarde...
O que eu sinto com o que o Monge disse, é que a vida é vida, e a morte é morte!
A relação (ou não-relação) de vida e morte tem a ver com estar presente.
Sem antes nem depois.
Ou seja, aquele Corpo-Mente, através do nascimento,velhice, a doença e a morte, só nasce uma vez e só morre uma vez.
E a Existência Suprema é livre do Nascer e do Morrer.
E cada reencarnação, é um novo processo, com princípio, meio e fim.Disse Buda,"Um brâmane não o é por nascimento, mas por suas palavras, gestos e pensamentos".
Buda nos deixa conceitos básicos de que tudo está interligado, interconectado numa teia de causas, condições, efeitos.
Vida-Morte são uma unidade.
A vida é um período em si mesma e a morte é um período em si mesma.
Assim como a cinza não volta a ser brasa, a morte não volta a ser vida.
Assim a Vida é um período, com princípio meio e fim.
A Morte é um período tendo princípio, meio e fim.
Buda rejeitou a versão de uma alma permanente, e também combateu a ideia que tudo terminaria com a morte, não havendo mais nada.
Segundo a Lei da Causalidade, as causas e condições de uma vida não se extinguem ao fim de uma vida.
É preciso terminar bem o livro desta vida.
Livro com prefácio, vários capítulos e um final.
Esse final é um outro começo, de outro livro, com outro título e outras inúmeras possibilidades.
Não é o mesmo livro, nem o mesmo personagem, mas outro livro.
Esta é a minha forma de sentir a Vida-Morte, nesta fase da minha Jornada...
Como ondas no mar.
Tudo é o oceano, que recebeu águas de inúmeros rios.
Causas e condições formam ondas.
Cada onda como se fosse uma existência.
Cada uma interdepende da outra, mas não é a outra.
Interligadas e ao mesmo tempo únicas.
Transformando-se a todo instante.
As causas e condições de uma onda se tornam efeitos em outras e assim por diante.
Mas cada uma tem começo, meio e fim.
E nós somos o Oceano...não a Onda...e quando deixamos de ser Onda, nunca deixámos de ser oceano...
Eu gostaria de ter uma Morte Consciente, em Paz e Harmonia.
Agradecer a Vida, despedir-me com ternura dos que ficarem mais um pouco, e entregar-me ao que virá a seguir, ao Cosmos, ao Universo, sem apêgos e sem aversões, sem culpas...
Este corpo sagrado, que viveu uma existência, precisa ser tratado de forma cuidadosa e amorosa.
O ritual feito em frente aos familiares, a troca de roupas, a maquilhagem, tudo isso eu dispenso.
Irei como cheguei, nua, despida de tudo.
A despedida, a cremação.
E assim irei completar mais um ciclo vida-morte.
Quando a morte termina, a vida começa.
Mas não a mesma vida, nem a mesma morte.
Nada jamais se repete.
Em vida, vivemos. Somos a vida.
Quando a morte chega, penetramos a morte. Somos a morte.
Assim vida e morte não estão em oposição.
A morte não precisa ser vencida, superada.
A libertação é do nascimento-morte, ao invés de ser uma conquista da morte.
O objectivo não é a imortalidade e a vida eterna através da conquista na morte, mas o não nascido e o não morto - estado de nirvana realizado directamente e através da vida-morte pela libertação da própria vida-morte.
Este é o ponto fundamental.
É o ser Oceano...bem antes de, temporariamente, ser Onda...
Se, porventura, uma pessoa vem a falecer, o corpo desaparece, mas a vida desta pessoa volta para a grande força do Universo.
Este estado de não dualidade, de integridade é que o monge vietnamita Thich Nath Hahn, fundador de Plum Village, na França, chama de interser.
Intersomos.
Tudo existe num processo incessante de surgir e desaparecer.
Todos interligados, interconectados a todos, na grande web, teia, rede da existência.
Vida-morte são em si mesmo Nirvana.
Sem vida a ser desejada, sem morte a ser rejeitada.
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