terça-feira, 12 de setembro de 2023

Compacto










Chamado a mostrar aquilo que faz, o poeta português tem a 
tendência de mostrar os dentes, sorri muito, dispondo-se assim a 
participar nessa acareação, nessa coisa que se fazia aos cavalos e 
era também exigido aos escravos, um exame superficial que 
permitia ao potencial comprador aferir se tinha ali um espécime 
em que valia a pena investir. Num certo sentido, também os 
poetas hoje parece que publicam os seus textos de modo, não a 
 a forma como pretendem fazer-se ler, mas a terem 
um pretexto para aparecer nas corridas, ser vistos, trabalhar nos 
campos de algodão da visibilidade e do mediatismo. Ora, sempre 
que me é pedido que escolha alguns dos meus textos ou poemas, 
faço os possíveis por tentar mostrar não os dentes mas o olho do 
cu, como faziam os bárbaros ou os pobres agricultores que eram 
chamados a participar numa batalha contra exércitos senhoriais 
dotados de sumptuosas forças de cavalaria e o raio. Viro-me, 
dobro-me, e exibo-o ao sol e aos fidalgos, eu que sou filho do 
acaso raivoso que me vai parindo diariamente e que não envergo 
qualquer outra distinção. E isto porque vejo o poema como um 
grito articulado para ser ouvido muito baixo, entre esses raros que 
estão mais atentos, e que vencem a euforia das épocas. Em 
relação à nossa, tenho este entendimento de que algo de nojento 
tomou conta de todos os espaços onde circula mais gente, e 
parece-me assim que, para reflectir a sua expressão, não vale a 
pena nem sorrir nem fazer caretas; o melhor é mesmo mostrar 
esta zona no corpo de cada um de nós que se livra do que há de 
inessencial, ou seja, das fezes. Não que o poema concorra para o 
regime das excrescências, mesmo das ornamentais que 
encontramos nos lugares hoje dedicados à arte. No fundo, o 
poema começa por livrar-se da etiqueta e do sufoco do que é feito 
para o bem das aparências. Trata-se de desafiar essa ordem
 infernal que se faz camuflar por meio de um sorriso, de um “like”, 
entre outras formas de anuência. Não temos muito do que estar 
contentes. Não vejo motivo para os poetas buscarem o seu lugar 
num ranking que necessariamente os desfavorece. O que me 
parece admirável num poema é o modo particular de traduzir 
certos aspectos deste inferno que nos envolve até se nos meter 
debaixo da pele, mesmo quando o que o poema exprime são as 
relações que lhe escapam, que nos servem de alívio, de 
maravilhamento. Se os poetas estão sempre numa relação 
desfavorável, se não têm armaduras com motivos florais e nem 
cavalos para os elevar acima do nível da geral infantaria, parece-
me que isso os coloca na relação ideal: a do um para um. E, face a 
tudo o que nos cerca hoje, tenho como principal orientação esse 
desejo de fazer a guerra às claras, de provocar o inimigo, fazê-lo 
exibir as suas verdadeiras cores, para que o conflito que 
geralmente nos faz de forma dissimulada seja assumido, para que 
tenha de se explicar, e não possa simplesmente impor como 
senso comum um conjunto de noções que tornam impossível a 
vida, e nos lançam no regime da mera sobrevivência.


Diogo Vaz Pinto



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