Chamado a mostrar aquilo que faz, o poeta português tem a
tendência de mostrar os dentes, sorri muito, dispondo-se assim a
participar nessa acareação, nessa coisa que se fazia aos cavalos e
era também exigido aos escravos, um exame superficial que
permitia ao potencial comprador aferir se tinha ali um espécime
em que valia a pena investir. Num certo sentido, também os
poetas hoje parece que publicam os seus textos de modo, não a
a forma como pretendem fazer-se ler, mas a terem
um pretexto para aparecer nas corridas, ser vistos, trabalhar nos
campos de algodão da visibilidade e do mediatismo. Ora, sempre
que me é pedido que escolha alguns dos meus textos ou poemas,
faço os possíveis por tentar mostrar não os dentes mas o olho do
cu, como faziam os bárbaros ou os pobres agricultores que eram
chamados a participar numa batalha contra exércitos senhoriais
dotados de sumptuosas forças de cavalaria e o raio. Viro-me,
dobro-me, e exibo-o ao sol e aos fidalgos, eu que sou filho do
acaso raivoso que me vai parindo diariamente e que não envergo
qualquer outra distinção. E isto porque vejo o poema como um
grito articulado para ser ouvido muito baixo, entre esses raros que
estão mais atentos, e que vencem a euforia das épocas. Em
relação à nossa, tenho este entendimento de que algo de nojento
tomou conta de todos os espaços onde circula mais gente, e
parece-me assim que, para reflectir a sua expressão, não vale a
pena nem sorrir nem fazer caretas; o melhor é mesmo mostrar
esta zona no corpo de cada um de nós que se livra do que há de
inessencial, ou seja, das fezes. Não que o poema concorra para o
regime das excrescências, mesmo das ornamentais que
encontramos nos lugares hoje dedicados à arte. No fundo, o
poema começa por livrar-se da etiqueta e do sufoco do que é feito
para o bem das aparências. Trata-se de desafiar essa ordem
infernal que se faz camuflar por meio de um sorriso, de um “like”,
entre outras formas de anuência. Não temos muito do que estar
contentes. Não vejo motivo para os poetas buscarem o seu lugar
num ranking que necessariamente os desfavorece. O que me
parece admirável num poema é o modo particular de traduzir
certos aspectos deste inferno que nos envolve até se nos meter
debaixo da pele, mesmo quando o que o poema exprime são as
relações que lhe escapam, que nos servem de alívio, de
maravilhamento. Se os poetas estão sempre numa relação
desfavorável, se não têm armaduras com motivos florais e nem
cavalos para os elevar acima do nível da geral infantaria, parece-
me que isso os coloca na relação ideal: a do um para um. E, face a
tudo o que nos cerca hoje, tenho como principal orientação esse
desejo de fazer a guerra às claras, de provocar o inimigo, fazê-lo
exibir as suas verdadeiras cores, para que o conflito que
geralmente nos faz de forma dissimulada seja assumido, para que
tenha de se explicar, e não possa simplesmente impor como
senso comum um conjunto de noções que tornam impossível a
vida, e nos lançam no regime da mera sobrevivência.
Diogo Vaz Pinto
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