segunda-feira, 4 de março de 2019

Diálogo entre Rita Ferro e seu pai


António Quadros





«Pai, eu não sou bonita...»
«Filha, toda a beleza é aviso.»

«Pai, eu não sei o que ando cá a fazer...»
«Filha: percorre o teu caminho até ao fundo e, com os versos que achaste, aumenta o Mundo!»

«Pai, três divórcios no papo e continuo sem saber o que é o amor...»
«Filha: não sentirás tu a saudade do amor que não mereceste, de uma outra liberdade?»

«Pai, eu tenho medo da morte...»
Filha: Sê um princípio, não um fim. Que depois de ti, as tempestades sejam outras e as lágrimas mais leves!»

«Pai, eu não valho nada...»
«Mexe-te: é preciso imitar Deus e criar outrem que não tu fora de ti.»

«Pai, o tempo de Deus já lá vai...»
«Enganas-te: o tempo de Deus é o tempo da atenção. O tempo de Deus é hoje.»

«Pai, já tinha idade para não fazer asneiras...»
«Não é verdade: a infância é eterna.»

«Mas acha normal que eu tenha saudades do meu urso?»
«Acho, mas cuidado: o infantilismo dos adultos é pior do que o seu demonismo.»

«Não sei, queria tanto ter nascido num mundo melhor...»
«Filha, confia em mim: esse mundo melhor é o mundo em que vivemos.»

«Pai, porque é tudo tão difícil?»
«Filha, simplificar não é assim tão fácil, no nosso tempo.»

«Pai, a gente assiste a tanta batota...»
«Não faz mal: o erro não é só educativo, é também cultural.»

«E as mentiras que ouvimos, pai?»
«Também fervo: o uso desonesto da palavra é um dos maiores flagelos da humanidade de hoje.»

«E as guerras, pai, admitem-se?»
«Filha, como homem cristão, a guerra é para mim um escândalo. Mas um escândalo que me leva a tentar compreender...»

«Pai, tenho remorsos: às vezes morrem-me pessoas queridas e esqueço-me delas no dia seguinte.»
«Não tenhas: todo o amor que aparentemente morreu é todavia vivo»

«O pai não está a perceber: eu já nem chorar consigo!»
«É natural, querida: que humano, hoje, pode e sabe não ser desumano?»

«Pai, o pai também pecou?»
«Claro, filha: fui puxado, atraído...»

«Pai, às vezes sou boa, outras vezes má, e por muito que me esforce não consigo mudar.»
«Sossega: se o homem é contradição e identidade, se o homem é vário e inconsciente, se o homem é bom e mau, se o homem é perene alteração, se o homem é repouso e evolução, abandono e vontade, acção e contemplação, egoísmo e ascetismo, se o homem simplesmente é, e se no seu ser cabe todo o universo, filha, assume-te simplesmente inteira, e nada excluas: a sensação ou a fé.»

«Pai, ainda bem que partiu antes: nunca Portugal se deixou abandalhar a este ponto...»
«Não te rales, canta comigo: ó meu Portugal que foste, que foste grande no mundo, abre as asas, abre as velas, revela o teu ser profundo!»

«Pai: o pai acha que há salvação num mundo onde os filhos espancam os pais e as mulheres atiram os filhos ao mar?»
«Filha: na hora destinal do fim, no limite do fracasso, no tempo cadente da derrota, eu canto, eu canto a esperança...»

«Pai, os outros fazem-me sentir estúpida...»
«Graças a Deus: Ele quis que, no fundo do abismo, os homens uns dos outros degraus fossem.»

«Pai, lá fora ninguém nos liga...»
«Tem calma: a nossa arte contém todos os elementos necessários para se impor ao respeito e à admiração do Mundo.»

«Pai, quem tem razão? A esquerda ou a direita?»
«Querida: nenhum sistema ou nenhuma ideologia pode hoje considerar-se a salvo de suspeita, pode ver-se como solução absoluta, universal e salvadora.»

«Sabe, pai? Eu já não acredito em nada...»
«Filha, interrogar é já crer. A descrença humana não existe.»

«Pai, serei ao menos mulher?»
«Não sei, mas aprende: uma só mulher contém todas as mulheres e todas as mulheres não são ainda a mulher.»

«Mas o pai sabe tanto...»
«Enganas-te: só houve em mim perguntas sem respostas.»

«Não minta, pai.»
«Não minto: fui a perdida unidade que a inteligência sozinha não pressente.»

«Mas, pai, eu não sei nada!»
«E eu? Eu que tanto procurei luz e só encontrei noite?»

«Noite?»
«Sim: três vezes, noite, me debrucei sobre as ciências do sensível, três vezes me julguei vencedor, e três vezes reconheci que o resultado enganador era ainda, noite, a tua voz imperceptível; três vezes, noite, pedi à memória, à minha e à outra, à essência da história, a visão do amanhã, o dom da profecia, a luz no futuro projectada, prévia vidência da finalidade destinada; três vezes, noite, volvi o teu seio, três vezes filho da memória, três vezes agente da história, e apenas ao de leve logrei tocar na fugidia, fugaz razão, que atribuímos à acção, sem jamais todavia dominar, a absoluta verdade e liberdade do ser em perpétua criação.»

«Pai, que estafadeira...»
«Filha, que gozo!»



Rita Ferro, com seu Pai, António Quadros





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