quarta-feira, 20 de junho de 2018

O ESTRANGEIRO





Reli este livro hoje... 95 páginas que se lêem de uma penada.

No prólogo da edição que li de "O Estrangeiro", Camus diz o seguinte acerca da sua obra:

"Há muito tempo atrás, eu defini “O Estrangeiro” numa frase que eu mesmo reconheço ser extremamente paradoxal: “Na nossa sociedade, todos os homens que não choram no enterro da sua mãe correm o risco de serem condenados à morte”. Eu apenas queria dizer que o ‘herói’ do livro é condenado porque não segue as regras do jogo. Nesse sentido, ele é um ”marginal” (outsider) para a sociedade em que ele vive,um estrangeiro na sua própria sociedade, vagueia de forma marginal nos subúrbios da vida privada, solitária e sensual.
Por esta razão, alguns leitores consideraram-no como um ”excluído”, um inútil. Mas para alcançar uma descrição mais acurada de seu caráter, ou melhor, uma descrição mais próxima das intenções de seu autor, é preciso perguntar de que maneira Mersualt não segue as regras do jogo.
A resposta é simples: ele recusa-se a mentir.
Mentir não é apenas dizer o que não é verdade. É também e, especialmente, dizer mais do que aquilo que é verdade e, no caso dos sentimentos humanos, dizer mais do que se sente. Todos fazemos isso, todos os dias, para simplificar a nossa vida. Meursault, contra as aparências, não quer simplificar a sua vida.
Diz o que pensa, recusa-se a esconder os seus sentimentos, e ao fazê-lo a sociedade sente-se ameaçada.
Por exemplo, espera-se que ele reconheça o seu arrependimento por ter cometido o crime, de acordo com os parâmetros da sociedade. Ele responde que sente mais aborrecimento do que arrependimento. É essa nuance que o condena.
Para mim Meursault não é um ‘inútil’, mas sim um homem pobre e nu, apaixonado por um sol que não projecta sombra. Longe de ser insensível, o que o move é uma paixão profunda e tenaz, a paixão do absoluto e a verdade, uma verdade negativa, a verdade de ser e de sentir, mas sem a qual nunca poderá levar a cabo nenhuma conquista sobre si..
Assim, não é exagero dizer que “O Estrangeiro” é a história de um homem que, sem nenhuma pretensão heróica, aceita morrer pela verdade." 

O narrador-personagem, a personagem principal, Sr. Meursault, uma figura absurdista, que mostra a crise do homem do seu tempo: um homem sem projeto pré-dado, sem destino e, principalmente, sem sentido algum na sua existência. Mata um árabe por impulso. Meursault é o anti-herói que assassina um homem "por causa do sol" e sobe ao cadafalso afirmando que "fora feliz e que o era ainda". 


Escrito em 1940 e publicado em 1942 numa época sombria de guerra, "O Estrangeiro" narra com incrível capacidade o que de mais trágico existe na condição humana: o absurdo, o limite entre aspirações e realidade.
Joga-se o destino de um homem perante o absurdo, e questiona-se o sentido da existência.

Um homem aparentemente normal e com uma vida vulgar na Argélia de meados do século XX, Mersault, recebe a morte da mãe sem sentir qualquer abalo, mostrando-se indiferente à cerimónia de vigília e enterro, e logo no dia seguinte diverte-se com uma nova amante sem sentir qualquer remorso. Frequentador dos pequenos prazeres da vida, vivendo uma felicidade morna no seu quotidiano que muito aprecia, abstinente dos grandes compromissos e das grandes ambições, o que estranha quer a sua amante - que numa proposta de casamento Mersault lhe responde que «tanto faz» - quer o seu patrão - que numa proposta de promoção para uma colocação em Paris Mersault igualmente lhe responde que «tanto faz» - enreda-se sem querer num conflito entre um amigo recente seu vizinho e uns árabes, e, num momento infeliz em que se encontra extremamente perturbado por um grande sol e calor mas sem estar movido por nenhuma animosidade sentimental em especial, mata um deles.

“Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol” “Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”

Nas conversas com o advogado e o juiz de instrução, e no julgamento que se segue, Mersault deixa todos exasperados pelo facto de não assumir qualquer sentimento de culpa ou remorso perante os seus actos «imorais», com maior ênfase no episódio do enterro da mãe que no próprio assassínio pelo qual é julgado, e pela heresia do não reconhecimento de Deus como salvador da sua alma.
A suprema indiferença pelos supostos elevados «valores» humanos e sociais, a coberto de uma inocência velada que se sente na personagem, expurgada e livre dos antanhos responsáveis pela vida angustiada da maioria da Humanidade (temente ao Homem e à divindade, mas castigada sempre em primeiro lugar pelo Homem) revela em Mersault um homem absurdo, um estrangeiro no seu próprio meio, que sensível ao presente e ao dia a dia desfrutando-o o melhor possível, inconscientemente mas lucidamente não consegue aderir às normas de convívio em sociedade conquanto absurdas lhe parecem, absurdo ele próprio considerado pela mesma, e, por essa razão, condenado sem apelo nem agravo.
Durante o processo muitos pormenores de sua vida vão adquirindo relevância extrema, como o facto de ter fumado no enterro da mãe e ter bebido café com leite com o porteiro. É tachado como insensível, um homem sem alma, considerado um forasteiro quanto aos ditames da sociedade.
O seu advogado pouco pode fazer e Mersault recebe sentença de morte.

O protagonista da obra, Mersault, vive em permanente indiferença a todos os valores morais.
É o homem que não aceita as regras do jogo. Mas também está disposto a ir até o fim defendendo a única verdade na qual acredita. Mersault nasceu para desmascarar o cinismo e o vazio por trás da sociedade como um todo e do indivíduo como elemento principal. O homem é um nada, abandona aqueles que ama e também é abandonado. O homem é impotente perante as desgraças que presencia, e por isso mesmo finge não as ver. O Estrangeiro está ali justamente para dissecar aquilo que está errado e nos abrir os olhos para a estupidez de nossa falsas regras morais.

Cada frase dele nos soará como absurda, desprovida de qualquer contato com a razão ou com o sentimento. “Tanto faz” é uma das expressões mais usadas por Meursault. Porém, quanto mais se indaga sobre a sua sanidade, mais se fascina com a ideia por ele pregada. Tudo é permitido, pois todos nós morreremos e os valores todos se desmoronarão. Para Mersault, não é preciso justificar nada, por isso ele não explica, apenas descreve. Seu silêncio reforça o mistério que seu ser emana. Se ele não tem o que dizer, simplesmente não se obriga a falar. Por isso é desesperadamente verdadeiro, sem jamais pisar no território das mentiras.
A revolta do personagem é uma revolta que apaixona. O seu espírito rebelde se iguala a uma espada, com a qual ele defende como um guerreiro as poucos certezas da sua vida pelas quais ainda vale à pena lutar ou morrer.

 “Como se deveria interpretar aquela personagem que, um dia depois da morte de sua mãe, tomava banhos, iniciava uma ligação irregular e ia rir-se diante de um filme cómico”, e matava um árabe “por causa do sol. (...) O absurdo fundamental manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre a preocupação que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços.”
Jean – Paul Sartre


O que é então o absurdo como estado de facto, como dado original segundo Camus? 
Nada menos do que a relação do homem com o mundo.
O absurdo fundamental manifesta, antes de tudo, um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direcção ao eterno e o carácter finito da sua existência, entre a «preocupação» que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo.

Camus afastou-se do Existencialismo, e seguiu o lado mais radical com a Teoria do Absurdo.
Essa teoria diz que o absurdo é o ato de existir, pois a vida é desprovida de projeto prévio, desprovida de sentido e desprovida de finalidade, isto é, o homem é aquele que está diante do nada e tenta encontrar algum sentido para viver. Dessa forma a sua existência é uma busca de sentido contínua. Dentro disso, gera-se uma categoria fundamental – a angústia -, que, inevitavelmente vai remeter no seguinte dilema: ou deus ou nada. Isto é, ou deus existe e é o fim último da existência humana ou a existência humana não tem sentido nenhum. Sendo assim, deus seria a busca visceral por um sentido.

Para Camus, a angústia nasce desse absurdo, lugar de eterno retorno da condição humana. 
Dessa forma, chega-se à pergunta mais importante para o homem, segundo o escritor francês, a chamada questão do suicídio: a vida vale a pena ou não ser vivida? 
Sartre soluciona essa dúvida com a posição do comprometimento, isto é, a resposta do existencialismo para isso é um comprometimento com a existência.
Já Camus nega, inclusive, esse comprometimento.



"Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os investigadores tinham sabido que eu «dera provas de insensibilidade» no dia do enterro. «Veja se compreende», disse o advogado, «custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação, se eu não conseguir dar resposta». Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe. Esta pergunta muito me espantou, e parecia-me que não era capaz de a fazer a alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo, e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de instrução. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam frequentemente os meus sentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono, de forma que não dei lá muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, com toda a certeza, era que preferia que a mãe não tivesse morrido. Mas o advogado não ficou contente. Disse: «Isso não chega»."


No final do livro Camus escreve:

“Afinal existia uma ridícula desproporção entre o julgamento que a fundamentara e o seu imperturbável desenrolar a partir do instante em que este julgamento fora pronunciado. O fato de a sentença ter sido lida não às cinco da tarde, mas às oito horas da noite, o fato de que poderia ter sido outra, completamente diferente, de que fora determinada por homens que trocam de roupa e que fora dada em nome de uma noção tão imprecisas quanto o povo francês (ou alemão ou chinês), tudo isto me parecia tirar muito da seriedade desta decisão. Era obrigado a reconhecer, no entanto, que a partir do instante em que fora tomada os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios...” 

Este trecho refere-se ao resultado do julgamento de Meursault com a sua condenação à morte na guilhotina, e mostra a fragilidade da consistência daquilo que define a condenação de alguém.
O homem envolvido no absurdo da ausência de sentido de sua vida, julga outro homem tão imerso ao nada quanto ele. Meursault define a sua sentença a uma sucessão de acasos que desencadeia um resultado extremamente sério.
Diante do extremo da sua vida e diante de uma vida pautada no absurdo, ou se aceita um deus como o fim último de sua existência, ou aceita-se a condição absurda de existir.

A sua vida de indiferenças mostrou-se agressiva para um mundo hipocrita e repleto de máscaras sociais. Quase patologicamente vazio, Meursault revela-nos a crise do homem do seu tempo: um homem sem projeto pré-definido, sem destino, e, principalmente, sem sentido.

E o livro acaba assim:
"Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim, como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um "noivo", porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberta e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio."





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