sábado, 12 de novembro de 2016

Sobre cães e gatos




O lado A tem aquela canção chamada Portugal Ressuscitado. 
Toca o refrão e eu choro, é certinho.
"Agora o povo unido nunca mais será vencido."
A crença em ideias tão obviamente falsas sempre me emocionou muito.
No lado B está a Canção Combate, sobre a coragem do povo português.
A própria canção é poeticamente corajosa, uma vez que rima
"A PIDE agora já não nos persegue" com "E já cá canta o Manuel Alegre".

Antes da música, Ary dos Santos declama um soneto dedicado a todos os antifascistas mortos pela PIDE. Primeiro, os agentes da polícia política aparecem designados como feras, mas depois o poeta corrige: "Feras é demais. Apenas hienas. Tão pútridas, tão fétidas, tão cães." 
Alto. Tão cães? Cão é adjectivo? E dos que ofendem?
Os cães são um bocadinho porcos e razoavelmente burros (eu sei, porque tenho quatro), mas ainda assim não merecem ser comparados a agentes da PIDE. 

De onde vem a má reputação dos cães? 
Nos livros, aparecem quase só para morrer.
A Baleia do Graciliano Ramos leva um tiro.
O Argos de Ulisses espera pelo dono durante 20 anos e morre assim que satisfaz o desejo de o ver.

Os gatos, por outro lado, têm um prestígio literário impecável. 
Mário-Henrique Leiria dedica um livro "ao gato Benevides" que, diz ele, lhe deu "tremendas lições de dignidade". Nem o Cheshire Cat da Alice nem o gatarrão amigo do diabo em Margarita e o Mestre levam um tiro. Anda por aí um famoso espectáculo musical sobre gatos.

Os gatos são protagonistas sofisticados, os cães são palermas sem classe.

Quando, há pouco tempo, passei a ter um gato, comecei a perceber a razão do fascínio. 
De facto, é um bicho que nos despreza de uma forma muito elegante.

Está evidentemente convencido da sua superioridade em relação a nós e é capaz de ter razão.
Mas continuo firme no meu entusiasmo em relação aos cães.

Os gatos sabem qualquer coisa; os cães são tão estúpidos como eu o que lhes dá um encanto muito especial. Os gatos parecem ter uma informação importante acerca do que é isto de estar vivo; os cães não fazem ideia do que andam aqui a fazer.

Acham quase tudo espantoso e não têm vergonha desse maravilhamento constante, apesar de ser tão parecido com estupidez.

Os cães são crianças, os gatos são filhos adolescentes: também nos amam, embora com alguma relutância, acham mesmo que são independentes, e às vezes estão escondidos num armário.
É a adolescência sem tirar nem pôr.



RICARDO ARAÚJO PEREIRA


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