terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Luto De Elias Gro


Vitorino Coragem







"O paraíso deve consistir no cessar da dor, disse Elias Gro quando o fim se aproximava. O homem pendurado na cruz observava-nos em silêncio reverente, na sua eterna compaixão. Elias repetiu as palavras, que não eram suas, e fixou o olhar no pássaro que bicava o vidro da janela; escutámos, vindo do exterior da casa de pedra, o rumor das copas revoltas, o rugir dos ventos da tempestade vindoura. Eu estava sentado numa cadeira e ele, deitado, tão doente quanto o corpo permite, era pouco mais do que uma sombra. Talvez valha a pena dizer-vos que só muito depois do princípio é que eu soube da sua doença. Do princípio? Sim, deste princípio: pode ser que faça sentido começar assim.
Ele estava doente, tão doente quanto o corpo permite, e eu, que acordei demasiado tarde de um sonho cruel, cruzei-me com Cecília e com o homem pendurado na cruz, e foram estes dois — cada um no seu infinito talento para a teimosia — que me mostraram o caminho. Na verdade, não existe caminho. Convencemo-nos dele e, de tanto fingirmos que faz sentido percorrê-lo, acabamos por descobrir que, na nossa esteira, se apaga como a película de pó que cobre os móveis num quarto cujas janelas alguém acaba de abrir ao fim de anos de esquecimento. Resta-nos prosseguir sem saber para onde vamos, se seremos capazes. Sem a cumplicidade das coisas já vistas, pois essas perdem-se a cada instante. Para isto, e para outros assuntos mais chegados à vida terrena, é que servem estas palavras; mas é sobretudo para isto."

"Foi tarde na vida que compreendi esta relação enigmática entre os homens e a bebida. Aprendemos, ao experimentar essas doses iniciais de euforia oferecidas pelo álcool, que, aconteça o que acontecer, podemos com ele debelar a terrível constatação da nossa impotência, suavizar a dor. A garrafa amacia o impacto das colisões, vai erodindo esses gumes afiados da realidade, copo atrás de copo, até que, paradoxalmente, perdemos toda a resistência ao sofrimento.
Bebia uma garrafa por dia (...) à noite começava por me abismar com o que ia encontrando dentro de mim, e depois pedia ao whisky que o ocultasse; como uma criança que se esconde num labirinto e que só encontramos espaços: uma perna aqui, a cabeça acolá, acenando-nos de uma esquina para logo tornar a desaparecer. Abismava-me a ausência; a maneira como, primeiro com a morte, depois com a separação de A., eu ficara reduzido a um invólucro cheio de coisa nenhuma."

"Não sou padre, sou pastor, respondeu Elias Gro. Tudo o que faço é espalhar a palavra de Deus. Sou protestante: não tenho papa, nem catedral, nem santos, nem martírio, nem purgatório. Não faço baptismos nem confissões. Tenho a Bíblia. Sola scriptura. E, sobretudo, não perdoo nem salvo. Deus, sim. Ele perdoa. Ele salva. Eu não. Tudo o que eu posso fazer é passar a mensagem. Sou uma espécie de carteiro. Todos os dias passo em sua casa e deixo-lhe um postal lá de cima"

"Creio que só na ilha soube verdadeiramente que amara A. O reverso de uma incomensurável perda é a consciência dessa perda. E a consciência chega através da dor. A dor não costuma mentir; nesse sentido, é o que mais importa. Sem ela, passaríamos do sofrimento momentâneo ao esquecimento. No fundo, a dor é paz; um lugar intermédio onde finalmente entendemos que, por mais que se repitam os gestos hábeis de todos os dias, o que aconteceu nunca tornará, e todas as coisas - todas, sem excepção - se irão perder, uma de cada vez, devagarinho, sem que tenhamos tempo de as deter na ida ou de perguntar para onde vão. Mas a dor vem mais tarde. Primeiro vem a angústia."

“Mas eu entendo-o. A incómoda presença dos outros nas nossas vidas. Às vezes é uma chatice ter de os aturar. Não vale a pena negar, há dias em que acordamos para estarmos longe das pessoas.” 

"O que eu procurava era o esquecimento e, de repente, via-te em todo o lado. Minto, pois na verdade sentia-te em todo o lado."

"O isolamento é uma doença dos nossos dias, disse ele. E tanto é uma doença que, como em todos os estados patológicos, só encontramos alívio quando nos apercebemos de que, sem darmos por isso, perpetuámos essa condição porque é mais doloroso sair dela do que permanecer doente. A sanidade tem um preço." 

"Recordei muitas vezes nesses dias o que A. me dizia sempre que eu me remetia a longos silêncios e à contemplação desnecessária do meu ego: "o que aí encontrares é teu! Guarda-o para ti". A. não o dizia por despeito; recomendava-o porque, nos momentos em que o Narciso desespera, súbdito de uma raiva que perdura, é mais fácil perdermo-nos num labirinto de conspirações, como um pugilista que se debate com a sua própria sombra, o único adversário que nunca vencemos. Conspirar contra nós próprios, sabotando-nos; conspirar, por consequência, contra a coisa amada.(...) Quanto mais eu me remetia a mim próprio, julgando, dessa maneira, anular a influência do mundo, mais encontrava as raízes do meu desespero e mais era incapaz de sair dele. Estavam todas naquele farol desabitado, o vazio que eu descobrira aquando da separação de A. Os pensamentos, como diabos à solta num quarto escuro e abafado, conduziam-me uma e outra vez à mesma conclusão, de que o homem transporta consigo o inferno, e que esse inferno não são os outros mas nós mesmos, quando entregues às nossas ideias mais acérrimas, às nossas intransigências mais cruéis, às nossas dúvidas mais corrosivas."

"Eu não coabitava com os fantasmas, mas com os antepassados dos fantasmas; se o passado era eu, o próprio fantasma em pessoa. Havia alguém no meu lugar, alguém que me ocupara e a quem eu entregara a procuração da minha vida."

"Lutamos uma vida inteira contra o esquecimento. (...) Se pudéssemos, apuraríamos um malefício contra a perda. Não teríamos mais de esgravatar a terra, ou de correr contra a gravidade inexistente dos sonhos agarrando-nos a coisas já idas ou extraviadas de antemão, aquilo que vemos partir - aquilo que é arrancado às nossas mãos e que exige a participação do esquecimento. Talvez a perda e o esquecimento sirvam para nos preparar para uma outra perda e um outro esquecimento, a Grande Perda, o Enorme Esquecimento, chamado Morte, ao qual ninguém escapa." 

"Por alguma razão Noé construiu uma arca em forma de um barco. Deus disse-lhe para a construir de boa madeira resinosa e com betume por dentro e por fora. (...) Já nesses tempos se sabia que a água, que é vida por dentro quando a bebemos, corrói tudo por fora. Pense nas marés. A erosão consome ilhas inteiras e, se for preciso, continentes. Contra a água não há nada a fazer. O fogo? A água apaga-o. O ar? A água consome-o. A terra? A água inunda-a. Não é por acaso que o Senhor decretou um dilúvio em vez de um incêndio."

"A religião é hiperbólica porque a nossa cabeça, onde o diabo mora, chama-nos de Deus e convence-nos de que, sozinhos, encontraremos o Caminho. Sozinho, vi os homens perderem-se no deserto, amaldiçoarem os que amam, serem reféns das perversões mais sinistras, atraiçoarem um irmão até à morte, vi os pais abandonarem os seus filhos, e os filhos erguerem-se contra os que lhes deram a vida, e vi o diabo a rir-se disto tudo, porque é assim que ele se ri, através de nós. Sozinho, sem fé, sou um homem perdido num universo incompreensível. (...) E os milagres são hiperbólicos porque o verdadeiro milagre passa despercebido. Cristo teve de ressuscitar os mortos e curar os leprosos para que nós percebêssemos que até as coisas mais simples são divinas. Se Cristo se limitasse a construir uma casa, diríamos: Mas isso posso eu fazer. A hipérbole é a fundação de toda a religião. Sim, é isso mesmo: temos de ser confrontados com as coisas que estão fora do nosso alcance para darmos valor àquelas que nos são permitidas."

"É tão simples. Só há duas maneiras. Podemos tentar compreender tudo, falhamos e ficamos loucos. O louco não é o homem que perdeu o juízo, mas sim o homem cujo juízo suplantou tudo o resto. O louco é aquele que vê causas em tudo, e essas causas remontam a outras causas, e a outras ainda mais distantes, e cada uma dessas causas suscita uma dúvida ou ramifica-se imparavelmente. O Diabo continua a rir-se. O outro caminho que podemos seguir é aquele que silencia e que aquieta os demónios. (...) São as vozes dentro da nossa cabeça, aquelas que não se calam quando tentamos abarcar o infinito. Não fomos feitos para saber tanto nem tão pouco. Fomos feitos para aprender a silenciar essas vozes que nos enlouquecem. No fundo, nem sequer precisamos de Deus. Precisamos de alívio."

“Se os homens se definissem pelas suas profissões, não precisaríamos de nomes. Seríamos o engenheiro número trezentos e quinze e o padeiro seis milhões e meio. Basta que saibam que, dos vinte e dois aos quarenta anos, construí, na cidade, uma carreira de algum prestígio numa determinada profissão e que, a partir dos quarenta, abandonei a cidade e a carreira e fui viver para uma ilha ao largo de uma península, extensão de um continente que não era o meu.” 

“Escrever mantém-me sóbrio e ajuda-me a preservar a confiança neste caminho de que vos falei. Um homem é refém dos seus segredos até os pronunciar em voz alta; depois, devolvendo-os a Deus numa oração ou numa litania dos aflitos, eles rapidamente se revelam como aquilo que verdadeiramente são: criaturas invertebradas e informes que se escondem atrás do Medo.”

“Prossegui pelo litoral enquanto a luz descobria a bainha do céu. Constatei que, embora no centro do meu peito existisse um buraco imenso, aquela liberdade dava-me prazer. Não tinha lugar aonde ir nem ninguém a quem prestar contas; não tinha casa nem família. A melancolia deixara de me incomodar, éramos velhos amigos e, a partir de certa altura, já nada se consertava. Pedalei durante algumas horas pela ilha. Ora a ritmo de uma marcha, ora esforçado numa ladeira; por vezes encontrava a tranquilidade de um terreno plano e deixava a bicicleta fazer o seu trabalho, aproveitando o embalo. Passei pelo farol, mas não me detive; era um lugar ensombrado, habitado pelos restos de uma civilização proscrita.”

"Eu respirava com dificuldade, alguma coisa parecia ter-se alojado na minha traqueia. A memória das vozes ao telefone e da vigília afrontava-me; dentro de mim, um animal ferido raspava ferozmente o chão de gravilha com unhas retrácteis, e uivava, procurando sair da toca.
Tenho pena é das lesmas, disse Cecília. E das lagartas. Não têm como se proteger.
As lagartas fartam-se de ser lagartas e fazem uma casinha nojenta de baba, disse eu. E depois transformam-se em borboletas, e toda  a gente gosta de borboletas. Nunca vi ninguém fazer mal a uma borboleta. Quando muito, espalmam-nas no meio das páginas de um livro, para sempre. É uma vida bestial. Muito melhor do que a nossa.
As lagartas esvaziam o estômago e segregam uma enzima que forma uma crisálida, disse Cecília, em tom de correcção.
És muito esperta, ripostei. Aposto que te dizem isso na escola. Lembras-te dessas coisas todas, nada te escapa, pois não? A diferença é que nós, ao contrário das lagartas, somos muito mais como os cães. Vida de cão, é assim que se diz. Sabes porquê? Porque a nós ninguém nos dá nomes em latim nem nos espalma entre as páginas de um livro, para que a nossa beleza fique preservada para sempre. Não existe filatelia humana.
Lepidopterologia.
O quê?
Filatelia é coleccionar selos. Lepidopterologia é como se chama à ciência dos insectos.
E que tal coleccionar borboletas? Serve-te? Ou precisas de saber dezenas de palavras impronunciáveis das quais te irás esquecer assim que começares a crescer?
Cecília desviou o olhar para a janela. Parecia magoada. Irado, eu escutava o meu próprio tom de voz, a roçar a violência, e percebi que estava fora de mim. Aquela versão chegara com a força e imprevisibilidade das tempestades: quanto mais olhava para a rapariga, mais desejava anulá-la. (...) Olhava para Cecília e via uma outra, que não era Cecília, alguém de que ainda não vos falei (porque não consigo, não sou capaz); alguém que não existe e, todavia, é a figura central destas páginas. O fantasma de Banquo sentado à mesa real."

"As pessoas são feitas de porcelana, concluiu. Lascam com facilidade, instigam em nós a urgência de não as deixar cair. Partem-se em pedaços se as largarmos. Esses pedaços são inconsoláveis. É impossível tornarmos a juntá-los e, se o tentarmos, ficaremos para sempre a observar as rachas que inadvertidamente lhes causámos, cicatrizes que não passam. Por mais que as pessoas jurem que são feitas de outro material, acredite em mim quando lhe digo que são feitas de porcelana, da mais frágil e dispendiosa."

" Finalmente entendo a linguagem da ausência. Sei agora o que nunca soube – que o amor encontra o seu estado mais puro quando julgamos que o fim chegou; finalmente entendo que o amor pode ser precisamente essa ausência, o deixar de estar, ser capaz de apreciar cada minuto da nossa memória como se segurássemos, entre as mãos, um punhado de brasas num deserto de gelo. Um dia, pese embora tudo o que vivermos, nem essa memória restará, pois a maior de todas as ausências é a morte ("toda a morte um suicídio, toda a derrota uma misteriosa vitória"). Porém, e enquanto estivermos vivos, prosseguiremos, com a habilidade que nos calhou em sorte, o resgate daqueles que precipitadamente enterrámos, tratando, na ausência, como nunca antes deles tratámos; as coisas são assim. Aceita-as."

"Parece que o lugar onde estamos nunca é suficientemente agradável. Deixa-me ver se acolá se está melhor. E, quando lá chegamos, percebemos afinal que a vida também estava a acontecer onde estávamos. Mas agora já estamos acolá e não podemos regressar, porque a vida também acontece acolá."

"Perguntas-me porque sou assim triste. Vou contar-te. Sou triste porque, se não fosse Deus, eu teria uma filha. Uma rapariga, como tu. Ela cresceria e, um dia, seria jovem, como tu és agora, e, mais tarde, mulher. Quem sabe teria filhos, os meus netos.
Mas não foi Deus, disse Cecília. Quando alguém está a mais, a Natureza leva essa pessoa para equilibrar o mundo. Foi o que tu disseste.
É mais fácil acreditar na Natureza, disse eu. A Natureza não precisa de fazer sentido. Se Ele a levou, que sentido faz isso? Que sentido pode alguém fazer desse gesto desumano? E, ainda assim, Ele safa-se sempre. Sempre. Quando a harmonia desce sobre o mundo, é obra Sua. Mas, quando a desgraça se abate, a culpa é nossa. É porque nos falta a Fé. Falta-nos a esperança. Carecemos da humildade necessária para compreender os seus desígnios. "Deus escreve direito por linhas tortas". É a desculpa mais esfarrapada de todos os tempos. Destes todos e dos que hão-de vir depois destes"

"Cecília continuava a esmurrar-me as costas. Eu continuava a abraçá-la, mas afrouxei um pouco o abraço, não muito, apenas o suficiente para não a sufocar, e fechei os olhos, soltando-a, devagar, sem pressa ou sofreguidão, até encontrar a medida certa do amor."



João Tordo
in, O Luto De Elias Gro







Sem comentários:

Enviar um comentário