Alexander Yakovlev
Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte privada se tratasse.
A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há nada a compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.
Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um princípio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
para as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer.
A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.
Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiência:
um dia de Verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
A ausência de tráfego como motivo.
A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou a sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.
O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.
O poema é uma enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.
Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro.
Luís Quintais
in, A Imprecisa Melancolia
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