quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Arte Privada


Alexander Yakovlev






Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso 
como se de uma arte privada se tratasse. 

A ti, a quem falo de poesia, a ti 
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo, 
que não há nada a compreender, 
porque nada nos condena à fala 
antes que as palavras aconteçam. 

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho 
e nunca terminado: um princípio de verão, 
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas. 

A rua de dia de semana 
e o arquipélago da solidão despertando 
para as poucas coisas que procuro 
e que o poema irá entretecer 
se entretecer. 
A virtude que, cega, 
vai conhecendo o seu caminho. 

Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras, 
e se ficamos tristes não era para ficarmos, 
pois não existem momentos irrepetíveis. 

Eles aninham-se no sangue 
e voltam a mergulhar-nos na experiência: 
um dia de Verão, um bosque, colinas 
onde a serpente de alcatrão se enrola. 
A ausência de tráfego como motivo. 

A pouco e pouco vou recuperando a gravura. 
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas, 
pois há sempre uma ave, ou a sombra dela, 
nos meus poemas. Que havia água, 
o cheiro das inusitadas chuvas 
pela manhã de Junho. 

O rumor da imagem colado aos dedos. 
O ocre escuro das areias espalhado na mesa 
é um símbolo da infância, 
mas não o reconheço ainda. 
O poema é uma enumeração que não teve lugar, 
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso, 
não o reconheço ainda. 

Enquanto isso tem lugar em mim o advento 
do que me define, 
e o barro de que sou feito coze por dentro. 


Luís Quintais
in, A Imprecisa Melancolia






Sem comentários:

Enviar um comentário