quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Berta Isla





Romance sobre 
a incerteza da espera e a decepção: 
a história de uma mulher que 
ao longo de décadas 
tenta resistir a uma ideia de amor.


Um romance que nos interroga e nos sacode enquanto recupera algumas personagens da sua magnífica trilogia "O Teu Rosto Amanhã". 
À semelhança do que acontece em alguns dos seus livros mais recentes, também neste existe uma personagem dividida entre a cultura inglesa (estudou em Oxford, universidade onde Marías também leccionou) e a cultura espanhola: Tomás (Tom Nevinson), filho de pai inglês, cresce em Madrid (onde muito novo conhece Berta Isla, a mulher com quem se virá a casar), mas faz os estudos universitários em Inglaterra.
É durante este período estudantil, depois de se ver envolvido num assassinato e de ser chantageado, que os serviços secretos ingleses o recrutam — ele é um superdotado para línguas, para imitar tons de voz e sotaques — e passa a ser enviado em missões de espionagem, com uma longa carreira como infiltrado. Dito isto assim, poderá parecer ser uma história cheia de aventuras com espiões. Não é. É a história de uma mulher que espera porque acreditou numa ideia de amor — e por isso será testada ao longo de décadas.

Berta Isla casa com Tom a pensar que o conhecia desde sempre, e tendo a convicção de que estão destinados a ficarem juntos — talvez tivesse sido esta ideia, mais do que qualquer outra, o que a fez esperar por um amor que idealizara e que nunca chegaria. Mas, na verdade, Berta nada sabia de importante sobre Tom — ele obrigara-se a esconder a sua profissão de todos, mesmo dela, e durante toda a vida. “Quem se habitua a viver à espera nunca consente por completo que esta termine”, diz o narrador; e dirá também a personagem mais tarde.
Berta, nessa altura apenas sua namorada, permanecera em Madrid a estudar Literatura, e quando Tomás regressa a Espanha após a conclusão dos seus estudos em Oxford, não lhe revela ter aceitado a proposta dos Serviços Secretos, dizendo-lhe que aceitara um trabalho na embaixada do Reino Unido. Não parece surpreendente a Berta, portanto, que Tomás se ausente durante meses em Londres por alegados motivos profissionais, ainda que, assim que as esperas se começam a prolongar, tudo lhe pareça suspeito.

Berta é, portanto, uma mulher à espera do seu marido, e é ela a narradora e o foco deste livro, ou não fosse seu o título do mesmo. Deixada sozinha em Madrid com os dois filhos, frequentemente sem ter sequer notícias do paradeiro do seu marido, Berta é, estranhamente, uma mulher perfeitamente em paz com a sua situação. Raramente se sente tentada a abandonar a espera por Tomás. Claro que se questiona do paradeiro do marido, claro que preferia tê-lo a seu lado, mas, além das perguntas e das informações que lhe tenta arrancar em relação às suas missões (e que Tomás não revela), Berta aceita com aparente tranquilidade o seu papel de dependência face a um homem que não tem autorização profissional para revelar todo o ser que é.

Berta Isla não é sobre a espionagem, mas sobre a relação entre Berta e Tomás e sobre as consequências desse caminho, aquelas que foram escolhidas e aquelas às quais o destino obrigou. Tomás é um homem amargurado com o caminho em que desaguou a situação de se ver suspeito de um homicídio e, ainda que cresça para se tornar um defensor daquilo que faz, é alguém que ingressa numa carreira que em circunstâncias normais teria preterido.

Parece ser sobretudo esse o ponto de Marías: 
Não controlamos inteiramente o nosso destino e parte da maturidade que devemos adquirir com a vida adulta é, precisamente, aceitá-lo. Não o fazer é permanecer imaturo.

“Existem centenas de milhares de pessoas que se enquistam na adolescência ou na juventude, que se negam a abandoná-las e se eternizam na crença de que todas as possibilidades permanecem em aberto e de que nada está afectado pela rugosidade do passado porque o passado ainda não chegou; como se o tempo lhes tivesse obedecido quando lhe disseram um dia, distraidamente, nem sequer com intensidade “Pára, está quieto, pára, que tenho de pensar”

Para Javier Marías a literatura (os romances que escreve) parece funcionar sempre como uma forma de se chegar ao conhecimento, tentando antes descobrir os mistérios que as personagens guardam, aquilo que nelas está invisível e que aos poucos vai saindo da penumbra das suas vidas. A sua prosa introspectiva (característica que o distingue da maioria dos autores espanhóis, e cada vez mais acentuada), serve para, aos poucos, ir tornando clara uma tentativa de compreensão do mundo.


Partilho aqui alguns excertos do livro:


" Descobriria que viver na certeza absoluta é aborrecido e condena a levar-se apenas uma existência, a real e a imaginária, e ninguém escapa à última. E que, por sua vez, a suspeita permanente não é tolerável, porque se torna extenuante observar sem cessar, a sua própria pessoa e os outros, sobretudo o outro mais próximo, e fazer comparações com as recordações, que nunca são fiáveis. Ninguém vê com nitidez aquilo que já não está à sua frente(...). Então, como pode alguém recordar com precisão aquilo que aconteceu há muito tempo?"

"Berta Isla sabia que vivia parcialmente com um desconhecido. E alguém que está proibido de dar explicações sobre meses inteiros da sua existência, acaba por sentir que tem autorização para não as dar sobre qualquer aspecto.(...) Berta, aos treze anos apaixonou-se pelo jovem Nevinson, primitiva e obcecadamente.(...) uma paixão que, se enraíza logo de seguida e parece inabalável até ao fim dos tempos, e que depende muito de decisões elementares e arbitrárias, mas também estéticas e presumidas. Claro que se trata de uma paixão teórica e completamente questionável, aprendida nos romances e nos filmes, uma projecção fantasiada(...) Numa época em que ainda era costume que, ao deixarem de ser solteiras, as mulheres acrescentassem um "de" ao seu apelido, seguido pelo do marido (...) passar a ser Berta Isla de Nevinson (...)Tomás e Berta souberam logo que com eles era a sério. A Tom Nevinson sucedeu o que sucede a tantos rapazes: respeitam demasiado aquela que escolheram como amor da sua vida presente, futura e eterna, e evitam exceder-se com ela como não evitam com as outras, e é frequente exagerarem a protecção e o cuidado, porque a vêem como um ideal, apesar de ser de carne e osso, por temerem profaná-la . E a Berta aconteceu aquilo que sucede a muitas raparigas: sabedoras de que, embora lhes possam tocar sem reservas e com curiosidade em serem profanadas, não querem passar por impacientes e menos ainda por ávidas. De tal maneira que não é raro que, de tanto se guardarem e serem admiradas  com paixão e beijadas com cuidado, excluindo zonas do corpo; de tanto acariciarem com deferência e travarem quando sentem que a deferência sucumbe, a primeira vez que concretizam os seus amores o fazem em separado e vicariamente, ou seja, com terceiros ocasionais. Perderam os dois a virgindade no seu primeiro ano de faculdade, ela em Madrid e ele em Londres, e nenhum deles contou ao outro."

"Nada dessas profissões molda o mundo, disse Wheeler a Tom.
O que molda o mundo, Professor?
Claro que ninguém o molda por si só(...)na verdade somos desterrados do Universo(...)em nada o altera a nossa supressão nem o nosso nascimento, o nosso parcimonioso percurso, a nossa existência, o nosso arriscado aparecimento, nem o nosso inevitável aniquilamento.(...)
Então, porque me fala de moldar, se nada nem ninguém o fazem, professor?
O Universo influencia-nos a todos e sem que nos seja possível intervir nele.(...)mas há medidas: O homem que fica em casa está mais desterrado do universo do que o que sai; aquele que actua é-o menos do que aquele que permanece quieto, embora o primeiro acabe por desperdiçar o seu esforço. Um actor ou um professor universitário está mais desterrado do universo do que um político ou um cientista. Estes pelo menos tentam modificá-lo um pouco, despentear-lhe uma madeixa, alterar-lhe o gesto, fazê-lo arquear uma sobrancelha perante o atrevimento.
O que me está a sugerir? Que entre para a Política?
Wheeler riu-se e respondeu: Não te sugiro isso de modo algum. Os políticos não são os que mais moldam. Moldam mais aqueles que não estão expostos, os que não estão à vista, seres desconhecidos e opacos que ninguém conhece.(...) maquinam e tecem fios na sombra. Toda a gente sabe quem são os governantes, e mesmo as grandes fortunas, e os militares com poder, e os cientistas que realizam progressos deslumbrantes.(...) As pessoas conspícuas estão hoje tão expostas que esta mesma sobreexposição as anula, e no futuro ainda estarão mais. Não poderão dar um passo sem serem seguidas por jornalistas e câmaras, sem serem vigiadas, e assim não se consegue moldar o mundo. Nada influencia sem mistério, sem bruma, (...) Tudo aquilo que é conhecido está destinado a ser engolido e a tornar-se trivial, e portanto, a não exercer verdadeira influência. Aquilo que é visível, o que é espectáculo do domínio público, isso nunca muda nada. Ao contrário daquilo em que as pessoas acreditam, o molde não mudou de um dia para o outro porque há uns anos três astronautas pisaram a Lua. Continua tudo na mesma depois disso, que diferença fez na vida de alguém, para a configuração e funcionamento do Universo? A façanha até foi transmitida pela televisão, e aí reside a prova da sua irrelevância definitiva. Aquilo que é decisivo nunca se mostra, nem sequer se comunica, pelo menos no seu momento; pelo contrário, esconde-se e silencia-se sempre. Se por acaso se conta, já não interessa, passa a passado remoto, e as pessoas não dão importância ao passado, julgam que não as afecta e que não se pode mudar.(...)Aqueles que actuam a coberto do nevoeiro e de costas para tudo o resto, e não reclamam nem precisam de reconhecimento, são os que perturbam mais o universo. Muito escassamente, é verdade. Mas, pelo menos incomodam-no um pouco e obrigam-no a adoptar outra postura. É o máximo a que podemos aspirar, para não sermos em absoluto uns tristes desterrados."

"A paz, infelizmente, é sempre aparente e transitória, um fingimento. O estado natural do mundo é o de guerra. Geralmente aberta e, quando não, latente ou indirecta ou meramente adiada. Existem grandes porções da humanidade que estão sempre a fazer mal a outras, ou a roubar-lhes alguma coisa, e o rancor e o desacordo reinam sempre e, se não reinam, estão preparados e à espreita. Quando não há guerra, existe a sua ameaça, e aquilo que vocês, os dotados, podem fazer é mantê-la nessa fase, na da postergação, apenas na ameaça sem se desencadear. São capazes de as evitar ou, pelo menos de as desviar e atrasar aos actuais vivos, de conseguir que ecludam mais tarde, quando já estiverem outros para as padecer e talvez novos dotados para as voltarem a desviar e adiar. E isto é intervir no universo, Tom. Ao de leve. É como tapá-lo e contê-lo....provisoriamente, parece-te pouco?"

"A tentação de intervir um pouco no universo, mesmo que fosse apenas minimamente, e de não passar por este como um baú, ou um contentor de lixo ou um móvel. Segundo Wheeler era assim que passavam por ele quase todos os homens e mulheres desde o início dos tempos: toda esta gente que se empenhava diariamente e que não tinha descanso desde que se levantava até que se deitava, que respondia a mil afazeres e se esfalfava a fim de levar o sustento para casa, ou que julgava influenciar os seus semelhantes, ou dominá-los, ou deslumbrá-los, acabava por ser tão indiferente como o lojista que se limitava a abrir e fechar a sua loja dia após dia às horas certas, ao longo de toda a vida, sem nunca alterar a sua rotina. Desterrados todos desde o seu nascimento, ou desde a sua concepção, ou mesmo desde antes: desde que foram meramente imaginados por uns pais irresponsáveis ou inconscientes, ou ignorantes da enésima peça restante que fabricariam com os seus actos instintivos."

"...o hábito faz milagres e confere categoria de necessidade aos caprichos e ao que é supérfluo.(...) Permaneceram juntos pouco menos de uma hora, passando nesse tempo da ilusão do anunciado à melancolia daquilo que recém-sucedido já não deixa recordação nem, claro está, saudades, e na verdade começou a estar a mais e a esquecer-se enquanto ainda está a acontecer: sexo higiénico e não elaborado, sexo receitado porque se deve fazer de quantos em quantos dias ou, pelo menos, de quantas em quantas semanas e quem não o tem é um pária e porque já vai sendo tempo - mais a ideia do que a prática -, sexo apático uma vez consumado e, visto em retrospectiva , após o qual predomina um pensamento incómodo: "Senti a urgência, mas a verdade é que bem poderia ter poupado o esforço, agora que terminou sem alegria e com alguma lástima; não valeu a pena." E ao mesmo tempo, saber que não é verdade; se pudesse voltar atrás sentiria de novo a urgência e seguiria em frente. Tom sentia pena de Janet, e não tinha a certeza se ela também não sentia o mesmo por ele."

"Um desterrado do universo", pensou Tom Nevinson de imediato, fazendo eco das palavras de Wheeler, copiando-as mentalmente só que expresso de modo ainda mais cru e sem apoio literário. Dizem-no como se não fosse esse o destino de quase todos nós, como se isso não fosse aquilo que espera por todas as pessoas desde o seu nascimento, passarem pela Terra sem que a sua presença a altere minimamente, como se todos fôssemos apenas adornos, figurantes de um drama ou figuras de fundo imóveis até à eternidade num quadro, massa indistinguível e prescindível e supérflua, comutáveis e invisíveis todos, todos ninguém. As excepções são tão escassas que podemos considerar que não contam, e mesmo destas, não fica nem rasto ao fim de pouco tempo, de um século ou de dez anos: a maior parte iguala-se aos que jamais importaram, e é como se nenhum tivesse existido, ou talvez como um molho de erva, um grão de pó, uma vida, uma guerra, uma cinza, um vento que ninguém recorda. Nem sequer as guerras se recordam, uma vez limpo o campo. Até esse deputado Saumarez-Hill o será  já, ao contrário daquilo que julga; também ele será ninguém, se partilhava a sua amante comigo e se assemelhava a mim através dela, sabendo-o ou sem o saber."

"Casei-me com Tomás Nevinson(...) ainda não tínhamos 23 anos(...). Suponho que foi o cumprir de uma antiga determinação, um daqueles objectivos que se fixam na infância ou na adolescência e que são difíceis de erradicar, mesmo de moderar, por muito que as circunstâncias tenham mudado. Os sentimentos também mas, para ver e admitir este último aspecto, será preciso passar muito mais tempo, e sobretudo, parece necessário concretizar os velhos projectos antes de pensar em renunciar a eles. É preciso transpor uma linha que já não permite que se volte atrás para compreendermos e nos arrependermos, para querermos voltar atrás e aceitar que se cometeu uma asneira: há que cometer um erro até ao fim para confirmar que era um erro, e então tentamos sair dele quando já é demasiado tarde para o desfazer sem danos e sem estrondos."

"...sempre soube que é melhor não perguntar aquilo a que jamais obteremos resposta ou, pelo menos, uma verdadeira. Isto só provoca frustração. Mais vale esperar que o outro conte quando não lhe restar alternativa, quando a sua situação for desesperada, ou seja desmascarado, ou já não aguente calar mais ( e quase ninguém aguenta calar até à sepultura, nem sequer aquilo que mancha e prejudicará a sua memória). E se sei isto tão bem é por experiência própria: quase nunca respondi com veracidade a nada daquilo que preferia que não se soubesse."

"Daquilo que não nos contam nada sabemos, e nem sequer daquilo que contam. Temos tendência a dar isto por certo, a pensar que as pessoas dizem a verdade, e não prestamos muita atenção nem perdemos tempo com desconfianças, não poderíamos viver a vida se assim o fizéssemos, se puséssemos em causa as afirmações mais triviais, porque ninguém iria mentir a propósito do seu nome, do seu trabalho, da sua profissão, das suas origens, dos seus gostos e costumes, da informação que todos trocamos gratuitamente, tantas vezes sem que nem nos perguntem, sem que ninguém tenha revelado o menor interesse em saber quem somos, o que fazemos ou como estamos, quase todos contamos mais do que o conveniente ou, ainda pior, incluímos outros dados e histórias que nada lhes interessam e damos por certa uma curiosidade que não existe, por que haveria alguém de sentir curiosidade por mim, por ti, por ele, poucos sentirão a nossa falta se desaparecermos e ainda menos se interrogarão sobre nós."

"Que fácil é não saber nada, que fácil é andar às cegas, que fácil é enganar e não digamos mentir, algo sem mérito e ao alcance de qualquer idiota, é curioso que os mentirosos se julgam espertos e habilidosos, quando para isso não é necessária a menor habilidade. Quanto daquilo que nos dizem pode ser ou não ser, pode ser o mais decisivo e o mais indiferente, o mais inócuo e o mais crucial, aquilo que afecta a nossa existência e aquilo que nem sequer a toca de raspão. Podemos viver num erro contínuo, acreditarmos que temos uma vida estável e descobrimos que é tudo inseguro, pantanoso, não manuseável, sem fundamento em terra firme; ou que é tudo uma representação, como se estivéssemos num teatro convencidos de que estávamos na vida real e não nos tivéssemos apercebido de que as luzes se tinham apagado e o pano subira e de que, além disso, estávamos no palco e não lá em baixo no meio dos espectadores, ou no ecrã de um cinema sem podermos sair, presos no filme e obrigados a repetirmo-nos a cada nova projecção, transformados em celulóide e sem poderes para alterarmos os factos, o argumento, a planificação nem a perspectiva nem a luz, a história que alguém decidiu que fosse nossa para sempre como é. Uma pessoa toma consciência, na própria vida, de que existem coisas tão irreversíveis como uma história já vista ou lida, isto é, já contada; coisas que nos conduzem por um caminho do qual mal temos possibilidade de nos afastar ou no qual, quando muito, nos permitem improvisar, talvez apenas um gesto ou um piscar de olhos inadvertidos; ao qual nos devemos cingir mesmo para tentar escapar, porque sem o termos querido já estamos nele e condiciona os nossos movimentos e os nossos passos envenenados, para o seguir ou para fugir, tanto dá.  A verdade é que circulamos por ele contra aquilo em que acreditávamos e contra a nossa vontade, alguém nos meteu nele e, no meu caso, esse alguém é o meu marido, o homem que amo há séculos e a quem uni para sempre a minha existência ou foi esta a minha intenção."

"O pior que se pode imaginar é não se poder negar, nem sequer discutir, reflectir ou argumentar, ter de obedecer a tudo o que passe pela cabeça de qualquer um com uma patente superior, mesmo aqueles que se reprova ou provocam repugnância, ter de tragar o vinho nauseabundo que outro indivíduo nos dá a beber. Com mais ou menos matizes, isto é o que nos toca a quase todos seja qual for o nosso mister, desde o berço até à campa: há quase sempre alguém mais acima de nós que nos indica aquilo que temos de fazer e que não podemos contradizer."

"Quase todos nós gostamos de acreditar que somos imprescindíveis, que contribuímos com qualquer coisa através da nossa existência, que esta não é inútil nem completamente indiferente. Eu própria, desde que fui mãe, considero-me uma espécie de heroína por isso e caminho pelas ruas a sentir-me merecedora de respeito e gratidão, como vi outras mães fazerem. Agora julgo ter contribuído para o conjunto: pus na terra alguém que poderá vir a ser fundamental. Pobre criança, pobres crianças, se soubessem quanta fé abstracta depositamos neles. Quase todos nós gostamos de acreditar nisto, mas a maior parte sabe que não é assim. Tudo funcionaria sem nós, porque somos comutáveis e substituíveis, com efeito existe uma fila interminável à espera que deixemos o nosso espaço livre, por mais modesto que seja. Se desaparecermos não darão pela nossa falta, o vazio será preenchido sem solução de continuidade, como um tecido que regenera depressa, como a cauda de uma lagartixa que volta a crescer, e quem se lembra ainda de quem lha cortou."

"É preciso perder-se muito antes de se renunciar àquilo que se tem, mais ainda se aquilo que se tem corresponde a um propósito antigo, a uma determinação com elementos de obstinação. Os nossos ímpetos e expectativas vão-se reduzindo, vamo-nos conformando com versões deterioradas daquilo que quisemos alcançar ou julgávamos ter alcançado, vamos admitindo descontos e imperfeições em todas as fases da nossa vida, vamos deixando as exigências de lado.(...) Na maior parte das vezes, após o acesso de fúria, começa a rogar para o seu íntimo que a coisa tenha sido venial, uma veleidade, um capricho, um aborrecimento, uma estultícia, uma obnubilação passageira; que não seja uma coisa a sério que ameace escorraçar por completo a parte enganada, como se costuma dizer, substituí-la e usurpar o seu lugar. Nesta reacção não só intervém um factor de conservação daquilo que se conseguiu e ainda se possui - o medo do vazio e a infinita preguiça de voltar a dar os primeiros passos - , como também a vantagem de ter o outro em dívida. Se uma pessoa se mantém ao lado da outra, se passa um pano sobre a infidelidade, fica sempre em condições de mostrar a cicatriz e de recriminar, mesmo que seja apenas com o olhar, ou com o passar do tempo, ou com a maneira de respirar. Ou com a de calar, sobretudo se não vem a propósito calar, e o outro interrogar-se-á: Porque não responde, porque não diz nada, porque não levanta a vista? Estará a reviver aquilo que aconteceu?"

"Não sei o que pensa nem o que recorda, não sei em que se perde nem nunca o saberei. Penso então que todos temos as nossas tristezas secretas. Mesmo os que permanecemos quietos e não nos sujeitámos a abanões aparatosos. Ou como escreveu Dickens, "qualquer criatura humana está destinada a representar um profundo segredo e mistério para todas as outras. É uma consideração solene que, quando chego a uma grande cidade à noite, cada uma dessas casas dispostas sombriamente encerra o seu próprio segredo; que cada sala numa delas encerra o seu próprio segredo; que cada coração palpitante nas centenas de milhares de peitos que ali se escondem é, nalgumas das suas figurações, um segredo para o coração mais próximo, aquele que dormita e palpita ao seu lado. E há em tudo isto algo atribuível ao horror"

"Talvez pense que, tudo somado, pertence àquele tipo de pessoas que não se vêem como protagonistas nem da sua própria história, sacudida por outros desde o início; que descobrem a meio do caminho que, por únicas que todas sejam, a sua não merecerá ser contada por ninguém, ou será apenas objecto de referências ao contar-se a de outra, mais atribulada e chamativa, e sobretudo mais apreciada. Nem sequer como passatempo de uma conversa à mesa após uma refeição, ou de uma noite junto à lareira, sem sono. Isto é aquilo que costuma acontecer com as vidas que, como a minha e também a dele, na realidade como tantas e tantas, somente estão e esperam."







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