sábado, 10 de novembro de 2018

As irrevogáveis trevas


António Mora




1.


Alguns ligeiros dias virão
o engano na voz dos homens
o bafo sombrio dos anunciados astros
semeando o anoitecer 
nos acerados campos de setembro

homem despido de razões
a quem nem a subornável malícia
dos deuses consente o duvidoso consolo
de um maio sangrando às mãos da geada

até ao fim serás pequenina árvore
aí onde se desvanece o irrestrito pulsar
das manadas
como um vento que já não soubesse
por que montes acolher-se
quando absortos sinos anunciam
o amotinado repouso dos martelos

alguns ligeiros dias virão
às moradas onde o degredo é compassivo
e reverdece a caudalosa voz das antigas fúrias
razão desta vã arte
florescendo nos vastos campos da metrópole

vaticinado sucesso dos que se extraviaram 
pelo pez dos séculos
e porfiam que o infindável garrote
da intempérie
é a inocente visitação do deus

uma morada só acharás
em fundo precipício
aí onde gratos emboloram
ossos e meteoros 

2.

Como som para sempre extinto,
percute-te o sono a anfíbia música
da idade — desenho de sombras sob um
céu irreal onde o convulsivo eco
prediz o harmatão, seu coro de aflição.

Hás-de saber, no entanto,
que pela tarde destas mãos
espigam tributos matizados, 
simples matéria de assombro 
que a nora dos versos
polvilha de épicas fulgurações.

Real é dizer — anda o mar aqui
incrustado às minhas veias e as palavras
migram como aves que um aguarelista
pintasse à calota de um céu revolto.

Ao vê-las, no sépia disfarçado
em que os séculos uivam, juro
que uma rémora friável me infiltra
o coração que antes aqueci à pedra
onde tua boca, tuas coxas arrematei
num lance que hoje me escorra a orfandade.

Porém, nem sempre a sageza dos anos
nos ensina palavras com que suster o pranto,
porque o som que se extingue
no escuro da boca
é inumana infiel memória duma outra vida
tão para sempre ida 

— vagamente, um piério rumor te rediz
do mundo a inconclusa trama; agora
resta-te apenas a litania indecisa
dos corpos caminho do engano,
mas nenhuma queixa, nenhum lamento,
que sempre foi o naufrágio ciência dos audazes.


3.

Quem te disse adeus quando a manhã
se incendiou para o lado das searas?
Mar ao fundo, pobre horizonte de turista,
agora que a borrasca interdita
o polimento da alma nas escadarias do passado 

— fica o hálito, um rumor de véspera,
que não chega para acender no coração
o clarão da culpa, pois onde o látego
é consorte e o desterrado sonha
uma pátria improvável, não chegam
dos deuses o juízo e o preceito.

Quem pode, caminha até ao largo
onde o mundo arde em penas virtuais.
Mas tu não precisas de razões
para saber que nenhum cromado
polimento ilude a tua salitrada vocação
para a queda, desígnio que ombreia
com o tremendo rasgão do vento
desacoitando os óxidos embutidos à nascença.

Mesmo se tudo é cinza e passagem,
a ti, negro lázaro, que para uma segunda
morte hás-de nascer, oferto estes frutos
do fraco engenho, mudável reflexo
da vã alegria, fogo que ardesse
do princípio ao fim do mundo.


José Luiz Tavares
in, Lisbon Blues




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