O século XXI está atravessado por um inadiável debate sobre géneros. A construção social sobre o sentido de ser “mulher” e “homem” ganhou importantes novas matizes, representadas, por exemplo, na maior visibilidade das pautas transexuais, em militância pelo reconhecimento de direitos civis básicos, ou mesmo na polémica teoria queer. De maneira geral, o feminismo tem inegavelmente sido um movimento responsável por alimentar importantes discussões sobre o que é, afinal, feminino e masculino, não raro descritos como polos opostos na nossa fantasia de papeis sociais.
Também inegavelmente, as mulheres têm avançado na conquista de novas experiências para si e na criação de novos sentidos do que é ser mulher, abrindo pioneiramente novos panoramas para a sociedade, que de repente vê suas antigas formas de organização contestadas. É apenas ponta do iceberg aprofundar em como nós nos relacionamos afetiva e sexualmente e como as relações de poder implicadas nisso se estendem desde a microfísica da vida doméstica para compor o capitalismo em grande escala.
Velhos Mitos
Verdade seja dita: os homens parecem acompanhar muito mal o ritmo dessa reinvenção (ou revolução?). É preciso mais empenho masculino para que o homem não ocupe apenas um lugar reacionário, de reativo defensor de um velho papel social que já agoniza diante de novas demandas. Estamos diante de um tempo único, onde as mudanças em curso geram um vácuo em que o ego masculino se encontra fragilizado. Ele, com muita dificuldade, poderia se estruturar em algumas das imagens clássicas que tomava como edifício: o provedor, o protetor, o cavaleiro, o conquistador. Todas essas imagens verticalizam o homem sobre a mulher. Ora, as mulheres gradualmente tomam consciência que podem prover a si mesmas, proteger a si mesmas, ser amazonas de si mesmas e conquistar suas próprias guerras.
Poderíamos especificar ainda mais as imagens do masculino: o malandro, o encantador e descompromissado moleque, o Don Juan, o insaciável viril, o homem poderoso, o “retrossexual” másculo, grosseiro, porém elegante e inclusive o sensível homem contemporâneo, além de tantos outros. Todos esses não são meros estereótipos: são imagens inconscientes e nossos modelos de desenvolvimento.
As velhas referências de masculino em sua relação com o feminino soam, agora, um tanto impotentes. Um novo patamar de relacionamento é exigido e muitos homens estão desbaratados. Não à toa, alguns ainda se revoltam quando encontram mulheres questionando seus lugares comuns, seus santuários da masculinidade. Ter aquilo que era sagrado atacado causa reatividade: tanto o deboche como a agressividade que vemos na reação contra a mulher são escalas de um mesmo desespero violento, o desespero da identidade ameaçada. Na verdade, o que está acontecendo é que as mulheres têm descoberto múltiplos novos sentidos para um sagrado feminino. Os homens estão em falta com um sagrado masculino — ou seja, com núcleos de referências que possibilitem novas formas de estar no mundo e de se relacionar consigo mesmo e com seus pares.
Estamos em falta com uma nova mitologia do masculino. Quando viramos reprodutores anacrônicos de comportamento, perdemos conexão com nossa base arquetípica — ou seja, aquela nossa dimensão instintiva e criativa que, por ser comum a toda humanidade, também é capaz de sempre atualizar e inovar minha existência e minha posição no coletivo ao qual pertenço.
Mas por que tratar isso como sagrado?
Porque a experiência arquetípica do sagrado serve de pano de fundo e ritualiza aquilo a que damos valor, as coisas que nos importam na vida pessoal e em sociedade. Seja esse “sagrado” novos deuses, ideais ou uma meta: sem modelo de sagrado — basicamente, de criação de sentidos para a vida —, tudo tende a se tornar desdenhosamente insignificante, fatos que não se concatenam e não se enriquecem como experiências, profanamente alienados.
Nesse caso, isso significa que nossa capacidade de atualizar narrativas sobre o que é ser homem tem estado defasada e alienada. Sem novos mitos que versem sobre nós, nosso corpo de experiências fica pobremente organizado, conservando vícios e velharias.
Novos Mitos
Para produzir novas narrativas sobre o que é ser homem, primeiramente é necessário que os homens se conectem com suas próprias necessidades. Por muito tempo, a emoção foi atribuída como algo marcantemente feminino, de modo que sentir não seria próprio ao homem. Logo, o homem ocidental, como género e papel social, tornou-se alienado de sentir.
Aprofundemos a implicação disso: onde não há emoção e a conexão que ela gera, restam apenas relações de poder. Jung já havia sugerido que a sombra do amor é o poder: onde um está potente, o outro mingua. O homem precisa ser honesto com a história da socialização de seu género: fomos educados pelo e para o poder. Guerra, conquista, colonização, defender a família. Pragmatismo, objetividade, insensibilidade. A neurose coletiva do género homem tem um pé firme na psicopatia. Mulher e filhos são, para essa construção, propriedades, posses do poder. Admitir essa embaraçosa e truculenta realidade, que pode estar mais ou menos enraizada nos detalhes de nossa subjetividade de homem, é um primeiro passo para que nosso mundo interior — e nossas relações — não se torne erigido numa lógica de dominação.
O preço de manter um mundo interior cultivado pela lógica do poder é alto para nossa própria alma: custa a própria sensibilidade. A consequência, no entanto, é também social: desejo de dominar, competição, violência, paranoia, repressão, fascismo.
Portanto, é preciso resgatar alguns valores banidos da dimensão do masculino. A sensibilidade já foi citada. Também a escuta e capacidade de acolhimento daquilo que consideramos fraco, em nós mesmos e nos outros. Mais horizontalidade e menos competição com a diferença. Um novo mito para o homem tem de passar por uma canalização mais sensível de sua energia excessivamente heroica, hiper estimulada pelo ocidente. O poder de ação do herói é importante, mas ele não raro se converte em rolo compressor. É importante, além disso, que o homem se descole da identificação excessiva com o herói. Assim como é extremamente limitado identificarmos o feminino apenas como mãe, esposa ou amante, é limitado para o homem se identificar com o guerreiro.
Em vez de bárbaros, podemos ser bardos. Não tão Apolo, mais dionisíacos. Menos protagonistas a todo momento, mais generosos e coletivos. Menos deboche, mais receptividade. Menos amantes performáticos, mais empáticos. Menos pornografia, mais realidade. Menos fala, mais escuta. Quando nos empenhamos em desconstruir o velho, o novo brota organicamente.
Fratria
Homens precisam se reunir com homens para falar de suas próprias emoções e perceber que seus processos são semelhantes e não precisam ser vividos solitariamente. A solidão, quando não é uma escolha do próprio indivíduo, envenena e debilita. Tem nos faltado a experiência de fratria, irmandade. No fundo, nosso modelo de fratria ainda parece ser o de Caim e Abel: inveja, competição e extermínio do próximo estão enraizados na cultura. Falta aos homens relações significativas, onde as dores possam ser abordadas. Em tempos de relações líquidas, superficiais, nos falta trabalhar o pus da ferida.
A importância de fazer esse trabalho de desconstrução fraternalmente e prioritariamente entre homens é importante por alguns fatores (e possivelmente por outros muitos, não enumerados aqui):
As mulheres já estão sobrecarregadas pelos temas de suas próprias desconstruções.
Podemos sobrecarregá-las com o papel de professoras, como se elas devessem ensinar nosso caminho de desconstrução. A convivência íntima e significativa com mulheres pode e deve ser um importante catalisador, mas por experiência de vida elas só têm como saber o que os homens lhe causam ou causaram. Fundamentalmente, não sabem o que é ser homem. Além disso, elas não são nossa mãe: não é obrigação de nenhuma mulher nos ensinar o caminho de nossa própria realização enquanto homens.
Homens passam por experiências em comum e o modo de homens socializarem exclusivamente uns com os outros é único, diferente de quando há mulheres presentes. É nesse âmbito que se encontra a matéria prima do trabalho de uma nova mitologia. O amor masculino — de homens para homens — tem culturalmente se baseado em se vangloriar dos signos da masculinidade. Carinho, intimidade e demonstrações de afeto costumam ficar de fora. Mudar a qualidade dessa comunicação para um contato de maior exposição e intimidade aprofunda a fratria.
Evita que incorramos inconscientemente nos vícios presentes nas relações com as mulheres. Como, por exemplo, o comportamento farisaico de exibir, em redes sociais, quão “desconstruído” se é, não raro a fim de arrecadar aplausos femininos. O homem foi condicionado a dominar e a sedução lhe é um recurso. Uma aceitação pública e lisonjeira é um prémio que agrada o ego, mas transformações na lógica interior ocorrem invisivelmente. É importante considerar se exposições públicas desse tipo, como no Facebook, não alimentam mais um espetáculo histérico do que uma mudança genuína, ética.
Homens precisam se reunir com homens em locais onde já se reúnem, uma vez que mesmo a mesa de bar produz e ecoa reflexão e comportamento. Mas é principalmente importante que os homens também aprendam a se reunir com a finalidade específica de falar sobre o universo masculino. A cultura de falarmos sobre questões e problemas específicos do masculino ainda precisa ser criada. Por isso, é também necessários fazê-lo em espaços seguros, onde homens possam se expor de modo que o ego, naturalmente vulnerável pelo processo de desconstrução, possa ser acolhido e reconstruído. Para esse trabalho, homens precisam ritualizar uns com os outros seus processos de transformação — como uma morte e renascimento, mesmo. Coletivos, grupos de discussão, grupos terapêuticos, rodas de debate, mesmo entre amigos: tudo isso pode servir.
Como os homens agem em sua privacidade, como agem na companhia uns dos outros, como agem com suas famílias e como agem com as mulheres: tudo isso é pauta, todo detalhe é importante. Por enquanto, a inconsciência do masculino o tem tornado sinónimo de alienação, relações de poder e subjugação. Sem nos aprofundarmos eticamente nesses diversos cenários de nossa vida, nossos vícios culturais vão colonizar nossa subjetividade. Os tomaremos como naturais, mas em algum momento eles provavelmente trarão sofrimento para nós mesmos e nossas pessoas queridas.
A fim de sermos mais inteiros e de nos relacionarmos genuinamente, o modelo passado não pode nos bastar. Que possa nos vir o novo.
Pedro Chaves
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