terça-feira, 20 de setembro de 2016

O SAGRADO FEMININO: A NOVA MODA




Era uma vez as feministas, e antes delas as Doris Gray da vida no seu aventalzinho de cozinha, o cabelo impecável, o sorriso Colgate e a disposição de espirito para esta sempre feliz e acolher alegremente filhos e marido (sobretudo, marido!). Depois chegaram as feministas que deram um basta à palhaçada e à tortura porque toda mulher casada e com filhos sabe do preço que se paga para manter com aquele sorriso Colgate sempre pronto e disponível. A vida real não é assim.

E chegou a hora em que as feministas foram aposentadas porque faziam muito barulho e incomodavam demais...

Estamos numa onda de retorno do feminismo mas ainda com muitos “se” e “medos”. Melhor a nova onda: “o sagrado feminino”. Se o feminismo rugia como uma leoa, a busca pelo “feminino escondido” dentro de nós... entoa suaves canções à lua cheia balançando às “boas vibrações” que irão “equilibrar” seu dia-a-dia.

Bom, com certeza o feminino está “escondido” porque após ter calado a boca da leoa o que sobra? Silêncio. Ou melhor, o ruído da publicidade...

Essa onda do “sagrado feminino” me lembra o surgimento das igrejas pentecostais que como cogumelos após a chuva apareceram no cenário social brasileiro a partir dos anos 70-80. Não será que a busca pelo “espiritual” virou necessidade existencial urgente justamente numa época (a ditadura militar) marcada pela perseguição e aniquilação das funções cerebrais destinadas ao conhecimento, ao questionamento e a atuação democrática?
Não será que não podendo estar no social como cidadãos se busca ser cidadãos da cidade eterna, aquela do além, pois nesse aquém aqui não há solução de vida boa (democrática, participativa, pacífica, inclusiva)?

Bem dizia Marx que “a religião é o suspiro do oprimido”, porque o anseio espiritual aparece quando não se sabe mais o que fazer com esse mundo à nossa volta, quando nos sentimos impotentes diante dele.
Não é verdade que vamos à igreja para pedir ajuda quando não temos como fazer por nós mesmos?
É isso que Marx queria dizer, bem simples: o suspiro (de tristeza, depressão, desespero) do oprimido (de quem se sente oprimido pelas circunstância, pela condição de vida, pela realidade económica, pela família e etc.). Quando o ser oprimido não encontra uma luz no fim do túnel, ou seja quando a luta não é possível, só resta rezar...  pedir a Deus que faça por nós.


O mesmo é com o “sagrado feminino”. 

Vivemos numa sociedade altamente machista não só de homens como de mulheres machista (as piores). O machismo das mulheres vêm às claras no olhar desaprovador que lançam contra outras mulheres que ousam o que elas não tem coragem de fazer, ou que dizem o que elas não tem coragem de dizer, ou que peitam o grupo (feminino, pasmem!) em nome de sua independência de pensamento e autonomia de comportamento. 
O machismo das mulheres está na competição desregrada e venenosa que travam contra outras mulheres. 
O machismo das mulheres é visível no tratamento diferente que dão a homens e mulheres quando ambos falam a mesma coisa: por que será que quem tem um pénis sempre faz o papel melhor, tem mais sucesso, é mais ouvido? 
O machismo das mulheres está em sua falta de pensamento crítico que as torna ovelhas – mesmo que ovelhas histéricas repetindo slogans - facilmente manipuláveis; está em sua submissão a gurus e líderes, sejam estes homens ou mulheres; está em sua necessidade de viver como grupo, como clã, como mafia feminina para se respaldarem e assim mais uma vez se submeterem à códigos externos ao seu “feminino” mais íntimo.

E afinal o que é o “feminino”? 
O que é que está sendo sacralizado?


  • Feminino é o que? 
  • O útero grávido, então minha cadela é sagrada e a pata que anda no jardim aqui abaixo também. Feminino é o que? A sensibilidade? 
  • E como é que tanta sensibilidade das adeptas do sagrado feminino é seletiva e só se aplica a quem faz sim com a cabeça a tudo o que elas falam?


Sinceramente, tenho alergia à modas e clichê.

Para mim o sagrado feminino existe somente em quem assume o fardo do ser mulher e do ser mulher livre.
Livre da opinião alheia, livre da benção do grupo, livre da chantagem económica que maridos e pais impõem, livre da jugo afetivo que a família impõe, livre da necessidade de ser aprovada por um homem – livre de se vender e “prostituir” para agradar, fazer parte, ter dinheiro, status, aplauso.

Você não encontrará o “sagrado feminino” 
num workshop com fogueiras e cantos, 
danças e pinturas.

O feminino sagrado é a Deusa em você, é Deus ao feminino em você que exige seu compromisso e sua lealdade. É começar a reconhecer como sagrada sua voz interior, começar a se ouvir, começar a deixar as tramóias de lado e ser honesta, transparente, impiedosamente transparente consigo mesma. O sagrado de seu feminino aparece quando você para de esconder sua femininidade que obviamente não se resume na sessão ao cabelereiro e à academia.

A deusa em você está na sua exigência de ser mãe com dignidade mas também no parar de ser mãe que produz filhos concretos para produzir filhos espirituais, parir novos mundos para si e a humanidade.

O sagrado feminino aparece quando você se recusa a fazer o jogo do sistema capitalista que escraviza mulheres e homens, mães, crianças, pais, natureza, animais, e que para se sustentar exige que cada um amordace sua sensibilidade, sua beleza interior sua delicadeza. Você dá voz ao feminino sagrado quando não vive em função do lucro, quando coloca as relações e o amor acima do lucro sem entretanto se prejudicar porque precisa viver e viver saudavelmente para poder amar mais e melhor.

O sagrado feminino é quando você consegue amar o outro a partir do amor que tem por si mesma, quando você se permite ser tocada lá no fundo pelo outro para assim de verdade compreendê-lo, sentindo de dentro e estando juntos de verdade. 
O sagrado feminino encara o desafio de como é que isso pode acontecer, sem receitas!
Sem receitas, sem gurus. 
Você aprendendo a andar sobre suas próprias pernas.

A deusa agradece.

Cadê a deusa em você? Agora, nesse momento? Cadê ela?
No workshop que irá fazer nesse fim de semana? Ah... certo.
Quero ver onde está o sagrado feminino na sua relação, no seu trabalho, entre você e suas amigas, entre você e a causa social que atende, entre você e seu chefe e sobretudo entre você e os valores que de fato diariamente norteiam sua vida, suas escolhas, suas prioridades.

Cada uma de nós mulheres representa o feminino: faça cada uma uma avaliação do estado de saúde do respeito quem manifesta por si própria, pelas próprias necessidades, desejos, modo de ser, aspirações. Faça cada uma uma honesta introspectiva do que aceitou barganhar para ter a realidade que tem, o casamento, o trabalho, as amizades, os apoios sociais. O que lhe custaram? Qual preço pagou? A deusa está contente?

Ah, lembrando que deuses nem sempre têm os mesmos valores e desejos dos egos. Logo, seu ego pode se sentir a rainha da cocada preta e entretanto sua deusa pode estar amordaçada e faminta trancafiada nos porões de seu ser.

Eis a história resumida e o sonho de uma mulher em processo analítico que tocou um dia (seu) “sagrado feminino”:

Ana era filha de pai alcoólico e mãe submissa, família disfuncional da qual ela tinha consciência assim como reconhecia as muitas feridas que carregava.
Ana engravidou de um rapaz que assumiu a paternidade mas com quem a relação era bastante precária. Conheceram-se dançando, ambiente sensual, alegre, descontraído. Logo percebeu que além da sensualidade e da dança precisa de mais para manter uma relação e sobretudo uma família.
Ana deparou-se com os comportamentos infantis do rapaz até que foi capaz enfim de se separar dele e de colocá-lo para fora de casa.
Ana teve então que aprender a lidar com a maternidade solo, com os palpites dos outros, com a pressão da família, com a falta de dinheiro, com a pensão alimentícia que não chegava com as chantagens emocionais do pai da filha e das manipulações afetivas desses com a filha - além  naturalmente de trabalho e estudo, porque Ana trabalhava e estudava muito.
E Ana sentia falta de um homem, ansiava ser amada, paquerada, fazer sexo, sair para a balada. Ana estava acostumada com isso e era ainda muito jovem; quando se é mãe solteira e não se tem onde deixar o filho a carga é ainda mais pesada. Inclusive, Ana, responsavelmente, não deixava a filha muito tempo com os pais dela por conta do ambiente emocionalmente poluído de sua casa, portanto era ela e a filha a maior parte do tempo fora do trabalho e da escolinha da menina.
Mas Ana conseguia ainda assim sair de vez em quando e desejava muito a companhia masculina. Entretanto, nesse contexto psicológico, os critérios de triagem da “companhia masculina” são poucos e fracos e Ana vinha de um lar onde o feminino era pouco valorizado.
Apesar de sua mente desenvolvida (a moça era doutoranda) o padrão feminino de relação com o masculino, que ela tinha em si como uma marca d’água, era mais ou menos o mesmo daquele ao qual havia sido acostumada desde pequena: um homem está de alguma forma no controle e a mulher permite porque ela precisa (e ela tem dó dele), ela está em posição frágil (e ela gosta de um homem no comando), ela não pode sozinha (e precisa cuidar dele). 
Assim Ana, que gostava de homens, terminava por encontrar sempre relações exdrúxulas, ambíguas onde a transar não correspondia a algum início de relação ou possibilidade de desenvolvimento de relação.
Até que um dia, conforme seu processo de individuação em análise progredia, Ana se sentiu farta de ser a amiga de quem não é amigo, cansou de ser amiga-amante de quem a usava: usava para transar e depois para obter dicas para transar com outras mulheres.
Ao que nós mulheres chegamos a nos submeter para nos iludirmos que “temos alguém”.
E Ana cansou. Acordou e cansou. E sonhou: O rapaz (das transas sem futuro) entra em sua casa sem avisar, pois tinha chave. Ela espantada vai até a porta e pergunta como é que ele entrou, ela não o convidou. Mas ele sabe que pode e avança com segurança pela casa. Ana está desesperada, se sente em perigo. Finalmente consegue chamar os pais que chegam e o pai põe o rapaz para fora de casa. A mãe, então extrai de um baú uma antiga estátua que pertencia à avô (sua mãe) e que havia sido guardada para Ana: era uma estátua da Virgem Maria.
Ana recebe o sagrado feminino que estava escondido esperando por ela estar pronta para recebê-lo.

A deusa, portanto, volta em nossa posse quando: 
1) paramos de nos prostituir na busca por aprovação do masculino (seja ele namorado, marido, pai, professor, grupo, sociedade, carreira);
2) quando transformamos as figuras parentais dentro de nós e com elas a história de abuso do feminino que carregamos dentro e que herdamos deles, de modo que temos finalmente uma função paterna (orientação no mundo) e uma função materna (acolhimento e nutrimento) como aliadas de nosso processo de individuação que é também de emancipação do passado;
3) quando, enfim, chegamos a recuperar o legado que estava guardado, escondido e protegido até que uma nova mulher pudesse voltar a assumi-lo e levá-lo adiante no mundo.


A deusa agradece mulheres de carne e de osso que aceitam o desafio de serem mulheres sagradas no seu dia-a-dia, mulheres que se respeitam – custe o que custar. E assim, respeitando-se, podem fazer espaço ao amor, à beleza, à delicadeza, à sensibilidade, à receptividade, à subtileza de espírito, à intuição... e tudo o que a Deusa é.


Adriana Tanese Nogueira


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