sábado, 23 de abril de 2016
O nosso tempo é um bicho que só tem pescoço
Um dia destes, passeava com um dos meus netos, e de repente uma cobra atravessou o nosso caminho.
O menino não ficou muito assustado, e disse uma coisa extraordinária:
Apontou a cobra e disse:
- Olha esse bicho que só tem pescoço!
Isto é poesia, é poesia pura.
Então, acho que o nosso tempo é hoje um bicho que só tem pescoço.
Comeram-lhe a cabeça e arrancaram-lhe a cauda.
E essa dupla amputação foi praticada por isto que chamamos de "Sociedade do Efémero", em tudo o que nasce, nasce transitório, nasce-se já morrendo, à espera que chegue a última versão, à espera que chegue alguma coisa mais leve, mais veloz, mais actualizado. Nós estamos sempre a correr numa corrida infrutífera para não ficarmos desactualizados.
Então vivemos neste tempo em que tudo é simultâneo, tudo é imediato, e tudo é voraz, tudo é veloz.
Como é que isto aconteceu?
Eu acho que foi uma coisa que se chama o "Mercado", que é algo de terrível por não ter rosto, não tem nome, e impôs-nos um outro tempo, um tempo de consumo, um tempo em que se consome a si próprio, e nos consome a nós.
Nós lamentamos sempre que não temos tempo, mas eu acho que nós não precisamos de mais tempo, nós precisamos de um tempo que seja nosso. Portanto, não é uma questão de quantidade, é uma questão de soberania.
E nesse tempo que seja nosso, nós temos que encontrar a intimidade com as coisas que nos são próximas, com as pessoas que nós amamos, e isso requer um vagar, um tempo próprio.
Hoje em dia faz muita impressão que, quando estamos a viver alguma coisa muito intensa, em família por exemplo, a primeira preocupação não é viver esse momento de uma forma aberta e disponível.
É registar o momento! Numa imagem, numa fotografia, num vídeo.
Quando eu estou em casa, em família, quando acontece alguma coisa extraordinária, há sempre uma voz que se levanta e pergunta:
"Alguém está a gravar?"
Eu não quero fazer a apologia de uma espécie de regressão nostálgica.
É óbvio que estas tecnologias têm as suas vantagens, mas a questão é saber se continuamos a ser indivíduos, autores dessa narrativa que é a nossa própria vida.
Foi no passado que eu carreguei a minha alma de futuro, a casa onde eu vivi, a cozinha onde eu fui menino, a rua em que eu fui mundo, como se isso tudo me desse uma relação em que eu peço ao Mundo que ele tenha sempre um nome, um rosto, uma voz.
E essas lembranças fazem-me pensar de como é importante nós restituirmos essa presença corporal quando contamos histórias às crianças.
Eu não renego que as crianças tenham essa relação com a máquina, com a TV, o tablet, o computador, mas essas máquinas não podem ser as únicas contadoras de histórias.
É preciso que humanizemos esse momento, em que nós estamos com a presença física, com esse afecto que só pode ser trazido pela presença corporal, e que torne esse momento mágico, único e irrepetível.
Com os nossos pais nós não podemos voltar atrás com o remote control...
Mia Couto
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