O erro humano básico, inato e congénito, é que a pessoa é vista, através dos seus próprios olhos, como sendo incompleta ou deficiente. Isso é o que deve ser combatido: mokṣa, então, é livrar-se desse erro.
Acertar o alvo (sādhana) na prática, então, é escolher correctamente uma prática que de facto possa facilitar esse processo chamado mokṣa.
(...)
Nas palavras de
Swāmi Dayānanda:
“Você não pode apagar um incêndio usando gasolina, só por que a gasolina é líquida como a água. Concluir que por ser um líquido, ela pode apagar o fogo, é equivocado. O fogo vai gostar desse alimento e o incêndio vai continuar, pior do que antes.
Não podemos nem devemos, então, realizar mais ações na esperança de que elas nos livrem da ignorância. Isso seria tão tolo como tentar apagar o incêndio jogando combustível nele. O único fator capaz de remover a ignorância, portanto, é o conhecimento.”
Conclusão: meu alvo é me livrar da ignorância. É para isso que pratico.
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O Ser, sendo ilimitado, não precisa de liberdade: ele já é a liberdade da ilimitação. O Ser não precisa “alcançar” a plenitude: ele já é a plenitude. Então,
não há mokṣa para o Ser: ele já é mokṣa.
O corpo físico, por sua vez, é um veículo. Independentemente de o usuário do corpo ter ou não ter mokṣa, o corpo segue sua própria agenda e vence pontualmente no seu prazo de validade, apesar de que alguns praticantes têm a ilusão de que um corpo de yogi seja algo especial, diferente dos demais corpos humanos.
Findo o prazo de validade, o corpo físico se desintegra. Isso significa que não há iluminação para o corpo material, independentemente do facto de que alguns poucos yogis conseguem uma longevidade superior ao século de vida, como foram os recentes casos dos mestres Kṛṣṇamacharya e Indra Devī.
Uma longa vida num corpo físico, por dilatada que seja, não pode ser confundida com eternidade.
Se mokṣa é livrar-se do senso de ser limitado, em mokṣa nos conhecemos como o Ser, que é intrinsecamente livre das limitações espaço-temporais. Obviamente, não estamos a falar de eternidade no sentido físico, já que o que é eterno ou ilimitado não está condicionado pelo tempo-espaço.
Então, por mais que usemos metaforicamente a expressão “iluminar o corpo”, a verdade é que não há iluminação para ele. Que mais nos resta, na lista dos candidatos a mokṣa dentro do complexo corpomente,
uma vez descartados o Ser e o corpo material?
O que sobra são os corpos subtil e causal, sūkṣma e karaṇa śarīra.
Para esses sim, há mokṣa. Então,
mokṣa é a libertação desses dois corpos, o subtil e o causal.
O corpo subtil é aquela associação de inteligência, ego, mente, vitalidade e órgãos sensoriais e de acção, jñānendriyas e karmendriyas.
O corpo causal é aquele que determina os nascimentos e traz o registo dos prārabdha karmas, os karmas que devem ser trabalhados a cada encarnação.
Liberdade é, neste contexto, eliminar o senso de limitação que mencionamos acima. Nada mais.
É um processo gnosiológico, que não envolve nenhuma outra mudança física ou energética.
A prática é para os corpos subtil e causal.
Cada um de nós tem uma diferente combinação de karmas que vai determinar um tipo diferente de corpo e uma série de processos aos quais esse corpo estará sujeito. Cada nascimento, em cada lugar, determina a exposição a diferentes elementos: nascer ou (escolher) viver num lugar frio ou quente, seco ou húmido, determina o tipo de relação que iremos ter com a natureza. Cada situação pontual responde a um tipo específico de karma. Agora, você e eu nascemos nestes corpos que chamamos nossos.
(...)
Portanto, precisamos olhar para aquilo que chamamos de prática pessoal de Yoga desde uma perspectiva mais ampla, embora essa não seja a visão preponderante nos dias actuais, em que muita, mas muita gente, pensa que Yoga seja apenas a prática dos āsanas e, no máximo, o relaxamento.
Dentre a miríade de técnicas que compõem a aljava de recursos do Yoga, destacam-se, para o haṭhayogi, o āsana, o prāṇāyāma, as mudrās e as técnicas de concentração e meditação. Um lugar central, embora nem sempre evidente, é ocupado pelas atitudes, yamas e niyamas, que fazem parte do código de conduta dos yogis.
Técnicas auxiliares a elas são os mantras invocatórios, que servem como molduras inicial e final para a prática, os bandhas, dṛṣṭis e visualizações.
Outros recursos importantes, aplicados fora da sala de práticas, são a dieta vegetariana e um estilo de vida em que o princípio áureo da não-violência esteja sempre presente. Isso inclui atitudes como o consumo consciente, a dedicação de alguns momentos do dia a acções centradas no bem-estar colectivo e outras que fazem parte da cultura do Yoga.
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Toda a qualquer prática de
Haṭha Yoga, do āsana ao yoganidrā, do prāṇāyāma à mudrā, são, ou deveriam ser, formas de reflexão sobre aquilo que já se conhece sobre si mesmo, nididhyāsana. Isso significa, dentre outras coisas, que
não é recomendável praticar sem estudar, assim como não é recomendável estudar sem praticar.
O
Viṣṇu Purāṇa é um antigo texto que compara o estudo e a prática com os nossos dois olhos. Sem ambos os olhos abertos, não é possível se ter uma visão cabal da realidade, uma vez que se perde a profundidade:
“Do estudo deve-se passar ao Yoga. Do Yoga deve-se passar ao estudo. Pela perfeição no estudo e no Yoga, a Consciência Suprema se manifesta. O estudo é um dos olhos com que se percebe o Ser. O Yoga é o outro.”
A
Śvetaśvatara Upaniṣad começa colocando estas questões:
“Qual é a nossa origem?
De onde nascemos?
Por que vivemos?”
Essas perguntas estabelecem o início de toda jornada pelo autoconhecimento.
A contemplação é um elemento fundamental da condição humana. Basicamente, reflectimos porque somos humanos.
Percebemos o corpo desde dentro dele.
No nididhyāsana, o corpo não é visto como um objecto qualquer, mas como o lugar no qual acontece a vida, uma expressão de Samaṣṭi, o Todo.
Na visão não-dualista, o físico é a corporificarão do Ser, e não existe sem ele.
O corpo humano não é uma máquina feita de matéria inconsciente animada pela mente, mas uma realidade vital animada pela presença do Ser que, aliás, está em todos os aspectos da criação.
Como Ser corporificado, esta estrutura física, viva e consciente, se vincula com o mundo.
Tocar é ser tocado.
Abraçar outra pessoa é ser abraçado por ela.
O abraço não é o contacto físico de dois corpos, mas o encontro de dois seres vivos. E, quando dois seres se encontram, não há duas dualidades corpo-mente tocando-se. Se você vive como Ser no corpo vivo, não há dualidade corpo-mente.
A separação surge quando olhamos para a vida desde a identificação com os desejos e aversões do ego.
O Ser não é limitado por tempo ou espaço. O corpo, por seu lado, sim, tem evidentemente limitações. Essas limitações são dinâmicas e têm seu próprio ritmo, pautado pelos processos de crescimento, aprendizagem, fortalecimento, maturidade, doença, envelhecimento e morte física.
As práticas do Yoga aprofundam a “relação” (se podemos falar numa), entre o Ser e o corpo, no sentido que, ao ampliar e enriquecer a mobilidade física e respiratória fica mais fácil compreender a si mesmo
como alguém que não se restringe à experiência corpórea.
Aumentar a mobilidade não é algo que apenas acontece no espaço físico ou vital; a expansão do corpo é o próprio espaço físico, crescendo.
Sabemos que as experiências, prazerosas ou não, ficam alojadas de forma dinâmica nos tecidos corporais e na mente subconsciente. O medo de repetir as experiências vinculadas com dor ou sofrimento restringe os movimentos físicos, respiratórios e energéticos, criando padrões de tensão crónica.
A prática de āsana e prāṇāyāma, dentre outros benefícios, pode ajudar a dissolver essas couraças e apagar esses registos dos nossos ossos, músculos e nervos. Essa qualidade da prática cria uma nova visão, através da qual permanecemos em contacto com essa pessoa simples e tranquila que somos.
Ao praticar, deixamos de lado todas as tarefas quotidianas.
A prática acontece num espaço reduzido: basicamente, um pequeno tapete estendido no chão.
Não há nenhum deslocamento físico para além desses limites.
No entanto, dentro desse espaço, investigamos com o corpo todas as direcções possíveis, observando conscientemente os padrões respiratórios e de mobilidade, e as eventuais dificuldades ou facilidades. Observando esses padrões, identificamos possíveis bloqueios ou cicatrizes e reconhecemos os sinais que as experiências passadas deixaram impressas no corpo.
Respiramos através do fácil e do difícil e reconstruímos a visão de nós mesmos como entidade vivente, plena e simples, nascida pela presença do Ser. Desta forma, investigando conscientemente movimento, permanência, respiração e auto-observação, eliminamos todos os obstáculos que os hábitos inconscientes e as experiências passadas impõem à nossa espacialidade e, consequentemente, à nossa mente.
A prática, assim, cumpre o seu propósito como
um momento para a reflexão sobre aquilo que somos.
Pedro Kupfer