domingo, 31 de maio de 2015
................ they thought it was a joke and applauded
A fire broke out backstage in a theatre.
The clown came out to warn the public; they thought it was a joke and applauded.
He repeated it; the acclaim was even greater.
I think that’s just how the world will come to an end: to general applause from wits who believe it’s a joke.
Soren Kierkegaard
Saúde Mental...como os computadores
"Fui convidado a fazer uma palestra sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maikóvski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crónica. Maiakóvski suicidou-se.
Estas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental?
Saúde mental, essa condição em que as ideias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado, nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco à vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!), ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito perigosa…
Não, saúde mental elas não tinham.
Eram lúcidas demais para isso.
Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idiotas de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. É claro que nenhuma mãe consciente quererá que o seu filho seja como Van Gogh ou Maiakóvski. O desejável é que seja executivo de uma grande empresa, na pior das hipóteses funcionário do Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível ser elefante ou tartaruga a ser borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão, com excepção do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de si mesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.
Sinto que os meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.
Nós somos muito parecidos com computadores.
O funcionamento dos computadores, como toda a gente sabe, requer a interacção de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente coisa dura e a outra denomina-se software, coisa mole.
A hardware é constituída por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito.
A software é constituída por entidades espirituais – símbolos, que formam os programas e são gravados nas disquetes.
Nós também temos um hardware e um software.
O hardware são os nervos, o cérebro, os neurónios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso.
O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória.
Da mesma maneira como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa mais importante é a linguagem.
Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.
Nós também.
Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.
Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.
Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso de símbolos.
Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.
Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz.
Pois não é isso que acontece connosco?
Ouvimos uma música e choramos.
Lemos os poemas eróticos do Drummond e o corpo fica excitado.
Imagine um aparelho de som. Imagine que o gira-discos e acessórios, o software, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e se arrebata de emoção!
Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seu hardware não suportou.
A beleza pode fazer mal à saúde mental.
Sábias, portanto, são as empresas estatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suave estado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.
Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receita que, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afectado pelas perturbações que afectaram os senhores que citei no início, evitando assim o triste fim que tiveram.
Opte por um software modesto.
Evite as coisas belas e comoventes.
Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque pode ser tomado à vontade, sem contra indicações.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais.
A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato diferente. Por isso as pessoas de boa saúde mental têm sempre as mesmas ideias. Essa quotidiana ingestão do banal é condição necessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental.
E, aos domingos, não se esqueça do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.
Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal.
Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é.
E, ao invés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos.
Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já não saberá mais como eles eram."
Rubem Alves
sábado, 30 de maio de 2015
Transcendence - A Nova Inteligência
Transcendence - A Nova Inteligência
2014
Realizador: Wally Pfister
Johnny Depp: Will Caster
Will Caster é um dos mais importantes investigadores no campo da Inteligência Artificial, dedicando toda a sua vida a criar uma máquina capaz de pensar e sentir por si mesma.
As suas experiências e criações controversas tornaram-no famoso na sua área de estudo, mas transformaram-no também num dos principais alvos dos grupos extremistas antitecnologia.
Com o projecto quase concluído, Will é atacado por um grupo terrorista e deixado gravemente ferido. Antes que ele morra, Evelyn, a sua mulher, insere no seu cérebro um protótipo que lhe retira a consciência e a transfere para um supercomputador.
Evelyn verifica que a mente de Will ressuscitou no processador da máquina e que continua a funcionar na perfeição. Porém, Caster revela uma vontade de adquirir conhecimento que parece ter perdido qualquer noção dos limites.
Decidido a ganhar poder e controlar o mundo, ele tem um objectivo muito específico: tentar convencer a mulher a ligá-lo à internet para que ele se possa propagar por todos os computadores existentes e criar uma inteligência colectiva.
Apesar de isso significar o sucesso de décadas de estudo e total dedicação, Evelyn percebe o impacto que poderá ter não apenas na sua vida, mas na de toda a Humanidade.
Realizado por Wally Pfister (conhecido pelos seus vários trabalhos como director de fotografia dos filmes de Christopher Nolan), um "thriller" de ficção científica que conta com Johnny Depp, Paul Bettany, Rebecca Hall e Morgan Freeman nos principais papéis.
Qual é o sentido da vida? - Neil deGrasse Tyson
Neil deGrasse Tyson é talvez o astrofísico mais carismático que já existiu.
Com muito bom humor ele é capaz de entreter e informar ao mesmo tempo.
Numa palestra do astrofísico em Boston (EUA), um menino de seis anos fez uma pergunta muito simples — mas também muito antiga.
“Qual é o sentido da vida?”
É claro que Neil não deixou o menino sem resposta.
O resultado foi mais um vídeo sensacional do astrofísico.
Com muito bom humor ele é capaz de entreter e informar ao mesmo tempo.
Numa palestra do astrofísico em Boston (EUA), um menino de seis anos fez uma pergunta muito simples — mas também muito antiga.
“Qual é o sentido da vida?”
É claro que Neil não deixou o menino sem resposta.
O resultado foi mais um vídeo sensacional do astrofísico.
A fuga
Eu não aparecerei quando tu chamas,
Pois estou já contigo ao teu chamar.
Quando em ti penso, estás dentro de mim,
E tudo é já teu próprio pensar.
Tua presença de ausência se veste
Em teu corpo, onde a alma escondida.
É em minha mente que inteira estás
E é em mim que tu és possuída.
Fora de ti, dado ao espaço e ao tempo
Teu corpo, mero tu, de mim ausente,
Partilha a mudança, o tempo e o lugar,
Pertence a outra lei, de ti diferente.
No meu sonho de ti nada te altera
Em outra, que contigo se compara.
Tua presença corpórea é só a parte
De ti, que a ti de ti separa.
Por isso chama, mas sem me esperares.
Tua voz, ao meu sonho acrescentada,
Juntará mais beleza ao meu pensar
Teu corpo, vivo na mente habitada.
A tua voz ouvida da distância
Mais aproxima tua sonhada presença.
Mais nítida e clara que parecia,
Na minha fantasia fica imensa.
Não chames mais. Tua voz duas vezes
Repetida no espaço verdadeiro,
Quase seria como a realidade.
O segundo som, o eco do primeiro.
Chama uma só vez. E que eu imagine
No segundo apelo, de olhos cerrados,
A visão do teu corpo a cintilar
Na memória visível dos teus brados.
O resto será teu prolongamento,
Olhos fechados p’ra não sentir,
No apelo premente de meu sonho.
Fica longe, calada, mas sem vir,
Pois virias perto de mais à vista
E de meu pensamento irias para ti
Vestindo em mim teu corpo sonhado
(O sonho do teu corpo é infinito)
Com teu limite, o visualizado.
Fernando Pessoa
In, Poesia Inglesa II
Temos medo do fundo do poço
Temos medo de chegar ao fundo do poço e, mais do que isso, temos medo de ficarmos estagnados no fundo do poço. Vivemos a tentar evitar cair nele porque existe uma consciência comum de que quem o alcança não sairá dele tão facilmente. Será?
Mas o que é o fundo do poço?
Temos tanto medo dele que até evitamos pensar nele. Para mim, chegar ao fundo do poço pode ser uma desistência em massa. Uma paragem brusca, uma desaceleração. Um intervalo. Uma necessidade de voltar ao ponto zero e ficar ali por um tempo.
Chegar ao fundo do poço pode ser um cansaço que vem se acumulando na alma e cavando um buraco fundo onde são depositados aqueles sentimentos que não tivemos tempo de encarar e lidar na nossa alucinada maratona de matar um leão por dia.
O fundo do poço é um depósito de nós mesmos, um porão onde nunca entramos, onde vamos pondo tudo aquilo que ainda não pudemos nos desfazer e desapegar, tudo aquilo que deixamos para pensar e resolver depois. Todos aqueles sentimentos ‘inúteis’ e ‘feios’, que se ficarem a habitar quotidianamente a nossa alma, nos travam o rápido caminhar. Então tomamos a decisão mais fácil, tira-los da vista. Vão para o porão da alma, vão para o fundo do poço.
Ninguém quer chegar ao fundo do poço, ninguém quer passar um bom tempo no fundo do poço, ninguém quer mostrar ao mundo o seu fundo do poço. A vida é tão curta, queremos mostrar ao mundo o que em nós é jardim e casa arrumada, os ambientes sorridentes, bem iluminados e arejados, festivos. Aprendemos desde cedo a cimentar os nossos próprios porões, a trancar a sete chaves e esquecer o acesso. Temos vergonha de dar qualquer pista de que estamos perto do fundo do poço e temos pavor de pensar em perder algum tempo de vida nesse lugar mofado, escuro, cheio de entulhos e fantasmas.
Se por qualquer motivo, a vida traz à tona o nosso fundo do poço, a nossa primeira reacção é querer disfarçar e sair dali o quanto antes. Queremos pegar impulso e voltar para a nossa incessável engrenagem diária, voltar a nos encaixar, voltar a sermos bonitos, bem resolvidos, como toda a gente. Queremos recuperar o equilíbrio.
Por que temos tanto medo do fundo do poço?
Temos medo do desconhecido, queremos percorrer apenas as estradas mapeadas. Ao invés de tentarmos ser mais humanos, empáticos, profundos com esses nossos lados, fingimos que eles não existem. Marginalizamos o que em nós é obscuro e insólito. Tudo o que é desconhecido causa-nos medo. Não queremos sentir medo e nem causar medo. Então seguimos nas nossas velhas estradas rasas e pavimentadas.
Temos medo também do nosso próprio silêncio. Falamos muito de tudo e de todos o tempo todo para não deixarmos o nosso pensamento escutar os ecos da nossa alma. Sabemos falar sobre tudo, mas não sabemos expressar o que em nós é grande e misterioso. E no nosso fundo do poço, o silêncio grita. E temos medo de escutá-lo. Temos medo das verdades que os nossos silêncios trazem.
Além disso, temos medo de mostrar ao mundo que estamos no fundo do poço. Não aceitamos admitir que não queremos mais participar da maratona de matar um leão por dia, que fraquejamos, que perdemos, que estamos frustrados, que precisamos de um bom tempo sozinhos para processar e limpar o velho porão cheio de sentimentos mofados e mal cheirosos que se não forem organizados nalgum momento, deteriorarão a nossa alma. Temos vergonha social de admitir o nosso fundo do poço.
E, finalmente, temos medo também de nunca mais sairmos dele. Temos medo de não conseguirmos voltar, de não termos forças para enfrentar tudo, temos medo de ficarmos para trás, de perdermos tempo, e de perdermos a vida. Presos e estagnados num porão que parou no tempo.
Temos tantos medos!
Engraçado, temos medo de perder tempo e de perder a vida. Mas, perder um pedaço do que somos realmente, mesmo que feio, mesmo que sombrio, é viver por inteiro?
Queremos seguir a vida apenas com as nossas vitórias estampadas na nossa fachada.
Ao encobrir o nosso fundo do poço, enganamos o mundo, mas ele continua grande e profundo em algum esconderijo de nós mesmos.
É… mas e se aceitamos ficar um tempo no fundo do poço?
E se olharmos para os medos e aprendermos a encarar a nós mesmos de frente?
E se concordarmos em permanecer quietos e silenciosos depois que tudo se esgotou (amor, trabalho, dinheiro)?
E se ao invés de sairmos a correr procurar outro amor, trabalho, dinheiro, esperarmos um pouco, escutarmos o silêncio?
E se ousarmos usar o fundo do poço para fazer um retiro existencial?
Quase como um templo de meditação, fecharmos as janelas para o mundo e tentarmos ouvir essas versões clandestinas de nós mesmos.
E se aprendermos a aceitar o que em nós parecia inaceitável?
Já que o fundo do poço é onde tudo se esgotou, não temos mesmo nada mais a perder.
Então nos demoremos um pouco nele!
Pode ser que percebamos que o que eram fantasmas aterrorizadores são, na verdade, uma grande parte do que nos constitui.
Sair rapidamente do fundo do poço pode significar voltar para o mesmo velho caminhar.
E tudo pode tornar a ficar razoavelmente bem, na medida em que continuarmos nos equilibrando entre cavar e camuflar buracos.
Ficar um tempo no fundo do poço pode significar encontrar riquezas escondidas, mapas de tesouro, caminhos alternativos e verdades ocultas. E aí poderemos voltar à superfície sem ajuda de escadas e esforços de impulsos, porque teremos desenvolvido asas.
Clara Baccarin
Emocionada...
Digo tantas vezes isto...que me sinto no fundo do poço.
A verdade é que já caí no fundo de 3 poços diferentes...o último, deixei de ver a luz do dia, e demorou 6 anos até ganhar asas e voltar a ver a luz do dia de novo...
Nada voltará a ser como dantes...
sexta-feira, 29 de maio de 2015
Quando as coisas são dolorosas
“Quando as coisas são dolorosas,
vemo-las no campo das emoções
e não no campo da consciência."
João Redondo
Psiquiatra, Coordenador da Unidade de Violência Familiar do Serviço de Psiquiatria do CHUC, em conferência, Estreito de Câmara de Lobos, 2005.
"O modo como o outro nos fez sentir, embate primeiro no campo das emoções.
É o cordão que nos liga à evolução das espécies, ao crepúsculo que nos tornou humanos, à força que não nos separa da infância.
A dor ou o conforto põe-nos a nu, e maturidade, diplomas ou capacidade intelectual, pouco servem perante as dolorosas sensações que chegam.
Do profundo poder que escorre delas, será preciso contar com um longo trabalho do pensamento e da linguagem, da consciência, para as compreender, aceitar e as tornar suportáveis.
Dão alento aos dias, as outras, as coisas calorosas que dispensam o raciocínio."
falo contigo... ou pelo menos tento
Com palavras usadas
gastas pelo tempo e o hábito,
cujo último alento já se diluiu.
Com palavras, como sonhos, queimadas pela vida,
nesta noite chuvosa, falo contigo
ou pelo menos tento, ligeiramente ébrio,
extraindo cada sílaba do país do nunca jamais.
E sentindo essa repentina lucidez
com a qual, de imediato, rompemos a rotina de ser e
conhecer-nos,
sentindo, digo, essa rara sensação distante e exangue
do whisky, da noite e do silêncio;
do ardente desespero com que aceitamos a derrota,
dessa vertigem, às vezes -só às vezes -tua e minha,
na qual morremos sorrindo de olhos abertos.
Sentindo o pouco que é um beijo ao fundo da tua língua
ou os teus olhos espraiados nos meus,
ou as nossas mãos unidas no ar,
percorrendo um museu de assumidos fracassos.
Desfilam, batalhão desolado de fantasmas,
nomes e nomes de tão distintos ecos.
Pretendemos, com abolidos rostos, datas caducadas
e cidades inatingível, responder a uma velha questão
cuja resposta só a morte já conhece.
Anos e anos, voluntários exílio de seres e países,
os filhos que não quis ter, os que tu sim tiveste,
o tremor do desejo que ainda guardas na tua pele,
o meu eterno navegar de cama em cama,
reunem-se e afirmam o seu destino
frente à cerimónia do amanhecer.
Juan Luis Panero
O Ursinho Polar
Era uma vez um ursinho polar.
Um dia o ursinho foi ter com a mãe e perguntou-lhe a tremer:
- Oh Mãe!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho??
E a mãe respondeu-lhe:
- Claro que és um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro. Concerteza que és um urso polar! Qual é a dúvida?! Agora duvidas da tua família? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que és o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso que és hoje. Seu ingrato… depois de tudo o que fiz por ti… desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes.
E a mãe ficou a lamentar-se da sua triste sina e da ingratidão do ursinho.
O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o avô e perguntou-lhe:
- Oh Avô!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
Ao que o avô respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar:
- Oh meu neto! És um ursinho dos mais puros, um ursinho puríssimo! Todas as gerações antes de nós eram ursos polares da raça mais pura da espécie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raça de ursos polares de que há memória. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,…
E enquanto o avô enrolava os bigodes e relembrava o passado o ursinho correu para o pai:
- Oh Pai, eu sou mesmo um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
- Claro que és!
Mas pressentindo que não era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraçou-o e perguntou-lhe:
- Por quê, meu filho, por que perguntas se és mesmo um ursinho polar, meu querido filho?
E responde o ursinho a tremer, quase a chorar e abraçando-se a si próprio: “tenho frio!...”
Esta história, que é o pretexto para vos contar uma outra história dentro da história, pode ser lida como uma anedota, uma estória inconsequente que nos faz sorrir ou embevecer ao imaginar o ursinho cheio de frio na sua pele.
Mas esta mesma história também pode ser lida metaforicamente, se lhe impusermos uma certa grelha de leitura; a grelha de leitura de quem pensa o mundo em termos de arquétipos, de grandes princípios universais que se repetem milhões de vezes, em miríades de formas diferentes, mas que nos ensinam sobre os temas fundamentais e eternos da natureza humana através, e apesar, das suas múltiplas experiências humanas no mundo.
A grelha de leitura de quem vê a vida como a manifestação de processos dinâmicos e energéticos regidos por leis rigorosas e que têm como fundamento, e como destino mais glorioso, a produção de consciência.
Era uma vez um ursinho polar.
Todas as histórias começam com “era uma vez…”. Naquele tempo, in illo tempore, num tempo remoto, sem data nem início, não num momento determinado do passado, porque de repente já havia - já tinha começado… sem começar. Os tempos assim, sem tempo, criam um rompimento no fundo da memória, e assim nos podemos abrir a uma história eterna, que sempre existiu e sempre existirá, e ela assim pode fluir através de nós, sem estranheza e sem necessidade de reconhecimento, e a história circular pode manifestar-se num ponto do tempo, o do momento em que ouvimos a história pela primeira vez, de cada vez. O ponto no círculo do eterno que é o eterno aqui e agora.
Era uma vez é a ligação do aqui e agora com outro aqui e agora que tanto existe no passado como existirá no mesmo sítio no futuro, sempre no mesmo sítio e em todos os tempos possíveis, ao mesmo tempo. Ou em sítio nenhum, em tempo nenhum. Simplesmente uma vez.
Era uma vez… um ursinho polar.
Um ursinho polar é uma personagem com quem é fácil identificarmo-nos.
Provavelmente dócil, fofinho, peludo, inofensivo – e branco. Uma personagem do imaginário infantil, com reminiscências de peluche e a pureza da branca de neve. O arquétipo perfeito da parte mais inocente, principiante, inofensiva e desprotegida de nós.
Um dia o ursinho polar foi ter com a mãe e perguntou-lhe a tremer: - tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?
Não é difícil assumir, ou imaginar, que o ursinho tremia por estar inseguro, ou com medo no momento de fazer a pergunta, porque temos a tendência profundamente humana de projectar a nossa própria subjectividade sobre o exterior e sobre os outros, interpretando – e reduzindo – tudo à nossa própria escala.
Assim como ao deprimido tudo parece triste e sem graça e ao agressivo tudo é sinal de ameaça hostil, à pessoa que não confia no seu próprio valor qualquer comentário dos outros soa a julgamento depreciativo e criticismo e ao sexualmente reprimido tudo parece imoral, sujo e mau – assim estamos todos condenados a fazer julgamentos que nascem das nossas interpretações subjectivas, assumindo que é a verdade a nossa própria produção subjectiva de significados.
Como diz o outro, a um homem com um martelo tudo lhe parece um prego. Mas este não era um homem com um martelo, era um ursinho polar a tremer.
E quando treme o ursinho polar ao dirigir-se à mãe, é fácil assumir que é por desconforto emocional, insegurança ou por estar amedrontado quando lhe pergunta sobre a sua verdadeira origem: tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho, purinho?
A primeira pessoa para quem nos viramos em busca de conforto e segurança, perante as inquietações da existência ou simplesmente para encontrar colo, calor e comida, é a nossa mãe.
Desde o nascimento estamos instintivamente programados para buscar um seio e nesse seio refúgio, espelho da nossa identidade, confirmação da nossa existência, protecção, sobrevivência.
Todos nascemos com a expectativa arquetípica de que um mamífero mais forte, mais seguro, mais auto-suficiente nos proteja e cuide até sermos capazes de o fazer por nós próprios.
E sabemos que é da qualidade dessa primeira interacção que depende a futura capacidade de nos tranquilizarmos a nós próprios e de cuidarmos dos outros, de nos sentirmos merecedores de colo e carinho, de confiar que a vida é boa e sempre satisfará as nossas necessidades de afecto, segurança, protecção e nutrimento, venha ele sob a forma de amor, dinheiro, alimento ou gratificação e bem-estar emocional. E de podermos dar aos outros o que nós próprios recebemos, porque é difícil poder dar o que se não recebeu.
E sabemos, por isso, que a capacidade instintiva da mãe empatizar com o filho, reflectir os seus sentimentos e saber acolhê-los, de sintonizar o seu ritmo emocional com o ritmo da sua criança, saber espontanea e imediatamente como responder a esses estímulos emocionais – essa capacidade não nasce da reflexão, da análise, de ponderação das várias possibilidades, da lógica e do questionamento, de ler livros ou assistir a cursos sobre como cuidar do bebé.
Nasce, sim, de um instinto inato que eclode nas próprias entranhas, do à-vontade com os próprios sentimentos, com a qualidade da sua própria experiência emocional, da qualidade da sua relação com a sua própria mãe e com a capacidade daquela lhe ter espelhado de forma pura os próprios sentimentos – e da capacidade de receber, simplesmente, o que o filho lhe traz a cada novo momento, aceitando e validando os estímulos e reacções emocionais pelo que são – sentimentos que, pela sua própria natureza, não obedecem a regras da lógica, não precisam de justificação, e não têm nada que ver com o próprio desempenho como mãe.
Mas para isto, é preciso que a mãe não interprete pessoal e subjectivamente as reacções emocionais do próprio filho – isto é, que saiba aceitar a dinâmica própria dos sentimentos do outro sem que tudo tenha necessariamente que ver consigo, com o seu valor como mãe, com o seu desempenho materno. Em suma, sem que a insegurança do filho active a sua própria insegurança interna. Se não, a insegurança ou instabilidade no filho vão fazer emergir a dolorosa insegurança e instabilidade na própria mãe, que não vai poder acolher, aceitar e validar os sentimentos do outro sem julgar ou julgar-se, sem questionar ou questionar-se, sem duvidar de si própria, sem cair na facilidade da auto-justificação, na culpabilização ou no lamento.
Mas esta ursa não tinha espaço para acolher os sentimentos do filho, porque perante a inquietação o que respondeu foi: “claro que és um ursinho polar. Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro. Concerteza que és um urso polar! Qual é a tua dúvida?! Ai agora duvidas da tua família? Depois de tudo o que fiz por ti, ainda vens duvidar que és o mais especial dos ursinhos polares e que dei tudo para fazer de ti o urso polar que és hoje. Seu ingrato… depois de tudo o que fiz por ti… desde que nasceste nunca mais voltei a ursar como ursava antes”.
A resposta instintiva desta mãe não foi a de aceitar e validar o que o ursinho lhe trazia. De ficar com a pergunta e abrir-se ao que ela traria por detrás. De fazer mais perguntas para se certificar da verdadeira pergunta do filho.
Esta ursa não sabia que por detrás do discurso manifesto existe sempre um discurso latente, isto é, que uma coisa é o que se diz e outra é o que realmente se quer dizer.
A resposta instintiva desta mãe foi a de invalidar a pergunta do filho sem sequer perceber qual era a pergunta. Esta mãe não tinha espaço. Escondeu-se por detrás da lógica, e da genética (“Eu sou uma ursa polar pura, o teu pai é um urso polar puro”) para demonstrar que a pergunta do filho estava errada e não tinha razão de ser.
Depois, sentindo-se acusada, defendeu-se acusando: “ai, agora duvidas da tua família?” E, à boa maneira de quem não sabe lidar com o mal-estar do outro sem se sentir por ele posto em questão, fez o filho sentir-se mal por sentir como ela própria assumira que ele sentia.
“Controla a culpa e controlas o filho”, lê-se na cartilha maternal de algumas mães, e esta fazia parte desse bando. Depois de tudo o que fiz por ti, lamentava a ursa, ainda tens a coragem de pôr em questão a tua mãe, as tuas origens, a tua educação. Como se fosse dela que se tratava, e não do filho. Como se fosse a sua dádiva, o seu empenho, a sua entrega, o seu altruísmo, a sua generosidade, a sua capacidade maternal, a sua imagem, o seu valor, que estivessem em jogo; e não, simplesmente, os sentimentos do filho – dos quais ela nem realmente se apercebeu, de tão auto-envolvida que estava com o seu próprio drama emocional.
O ursinho suspirou, cabisbaixo, e sobrecarregado com o peso da culpa foi ter com o avô e perguntou-lhe: - Oh Avô!, tens mesmo a certeza que eu sou um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
Na ausência de eco, e de resposta, por parte daqueles de quem mais imediatamente esperamos apoio, entendimento, compreensão e afecto, viramo-nos para outras figuras significativas na nossa vida afectiva.
E foi o que fez o ursinho, quando foi ter com o avô para lhe levar a questão que o atormentava desde o início da história: serei mesmo um ursinho polar? Ao que o avô respondeu numa voz rouca e calorosa, enrolando os bigodes com a pata direita e o focinho impondo-se orgulhosamente no ar - Oh meu neto! És um ursinho dos mais puros, um ursinho puríssimo! Todas as gerações antes de nós eram ursos polares da raça mais pura da espécie mais pura, os pioneiros do glaciar. Tu descendes da mais pura raça de ursos polares de que há memória. Sabes, quando eu era um ursinho da tua idade,…
O avô ficou contente pela oportunidade de dissertar sobre a pureza da raça e a graça da sua genealogia. Possivelmente pouco habituado a ter platéia para as suas divagações, recordações e memórias, aproveitou a pergunta do ursinho para rebuscar no baú das memórias – afinal, era um avô - todos os galões que confirmassem o valor dos antepassados fundadores e assim mesmo dos descendentes actuais, e na sua voz rouca quase adivinhamos o orgulho de pertencer a tal linhagem, a força da tradição, o poder quase sagrado dos mitos fundadores.
E o ursinho talvez tivesse ficado a ouvir e aprender, imaginamos, se não estivesse tão angustiado com a questão original que o levara de parente em parente em busca de uma resposta. Às vezes, o passado não tem como responder ao presente, embora o tenha fundado.
Cada novo momento de vida emerge e ultrapassa o momento imediatamente anterior que lhe deu origem, o que quer dizer que o futuro é sempre mais rico do que o presente.
Se assim não fosse, e se o passado fosse o limite do presente, o presente limitar-se-ia a repetir o passado e o futuro, o presente e o passado seriam todos a mesma coisa.
E porque nesta situação não era o passado que servia à questão do ursinho, o ursinho seguiu adiante.
E enquanto o avô enrolava os bigodes e relembrava o passado o ursinho correu para o pai:
- Oh Pai, eu sou mesmo um ursinho polar, mesmo purinho purinho?
- Claro que és! Mas pressentindo que não era bem isso que o ursinho procurava, o pai abraçou-o e perguntou-lhe: - Por quê, meu filho, por que perguntas se és mesmo um ursinho polar, meu querido filho?
E no pai o ursinho encontrou finalmente a resposta que procurava. Não tanto a confirmação de que era mesmo um urso polar, porque essa já a mãe e o avô lha haviam dado e o mal-estar ainda assim subsistira; o que o ursinho encontrou foi um espaço de receptividade: um abraço e a vontade de o compreenderem, de o escutarem, de o receberem na sua dúvida, no seu questionamento, na sua incerteza, na sua necessidade de confirmação.
Por que perguntas, que é como quem diz, o que é que se esconde por detrás da tua pergunta? O que é que queres perguntar, perguntando o que estás a perguntar? O que há, que te leva a colocar essa questão? Qual é o mal-estar que posso tentar mitigar?
E quando o ursinho responde, a tremer, quase a chorar e abraçando-se a si próprio: “tenho frio!...”, tudo se desvela, tudo se desvenda, tudo se resolve.
O ursinho tremia era por causa do frio, e não por qualquer outra razão que qualquer um de nós, ou dos seus familiares, pudesse ter imaginado. Mas o frio, aqui, ao invés de encerrar a história e dá-la por terminada, abre caminho a uma nova história, a outra história, à “verdadeira” história.
O ursinho sentia-se inadequado; sentia-se profundamente desconfortável por estar aquém do que seria de esperar de um urso polar, em falta para com aquilo que define um habitante do Ártico. O ursinho sentia-se corroído, imaginamos – isto somos nós a projectar; but then again, que podemos nós fazer, quando afirmamos seja o que for, a não ser apropriarmo-nos da nossa própria subjectividade? - pelo sentimento de inadequação por não estar à altura das expectativas, das funções, do papel de um urso polar. Adivinhamos-lhe a vergonha, o desconforto na própria pele, o medo de não ser suficientemente bom, a ambivalência de saber intelectualmente, por um lado, que um urso polar não tem frio e a honestidade em admitir, por outro lado, o que verdadeiramente sentia – o frio – e a dissonância por se saber um urso polar.
E aqui encontramos mais um tema arquetípico da nossa existência: para cada papel que desempenhamos existe um conjunto de atribuições, expectativas, funções e capacidades intimamente a ele associadas.
Espera-se de um urso polar que coma peixe, que esteja coberto de pelo e largas camadas de gordura, que viva confortável no seu habitat glaciar. Não se espera que tenha frio, assim como não se espera que suba às árvores, que rache cocos com os dentes ou que acasale com morsas.
A existência de papéis confere uma identidade social a cada um dos elementos de um grupo, atribui-lhes funções e comportamentos relativamente previsíveis, gostos, preferências, rotinas e padrões. Os papéis contribuem para a estabilidade e para a coesão social, de modo a que cada um sabe o que deve fazer e o que esperar de cada um dos outros.
A aprovação dos outros, o sentimento de integração no grupo, o sentimento de adequação e normalidade vêm com a capacidade de desempenhar adequadamente esses papéis.
O caos social e a alienação individual nascem quando os indivíduos se recusam, se sentem incapazes ou indisponíveis para desempenhar adequadamente os seus papéis – como o ursinho que tinha frio.
E se grande parte do nosso sentimento de valor nos é devolvido pela aprovação dos outros, pelo sentimento de encaixar adequadamente no nicho que nos é atribuído pelos nossos papéis e pela nossa desenvoltura em assumi-los, compreendemos o quão inadequado, inferiorizado e inseguro se sentiria o ursinho polar que tinha frio.
Era um ursinho deslocado, condenado à marginalização ou à auto-exclusão, à revolta e à alienação – ou um ursinho condenado a lidar sozinho e secretamente com a sua própria falha apercebida, processo tão mais angustiante quanto mais o ursinho se obrigasse, a prazo, a ocultar de si próprio e dos outros a verdade do seu interior, a verdade da sua hipotermia.
E a prazo, à medida que mais e mais energia fosse mobilizada para defender o corpo do frio, ou para viver à altura de um papel para o qual não tinha capacidade, o ursinho deprimiria e sucumbiria, finalmente, ou ao frio ou à evidência da necessidade de se agasalhar – defraudando assim tudo quanto seria esperar de um ursinho polar mesmo purinho, purinho.
E quem sabe, o mais brilhante dos psicoterapeutas de ursos viesse a perguntar-lhe um dia directamente, olhos nos olhos e focinho no focinho, a mais valiosa das perguntas que se pode fazer a um urso que deprimiu, isto é, que esgotou toda a sua energia vital a tentar defender-se da espontaneidade e da verdade dos seus próprios impulsos mais autênticos, provavelmente por se sentir manietado pelas regras, expectativas, ou ameaça de retaliação por parte dos outros: - então e, diga-me lá, seu ursinho, contra quem é que está deprimido?
E se fosse um psicoterapeuta comediante, com uma sensibilidade especial para a semântica e para as ironias da existência que se podem evidenciar quando se fazem malabarismos com as ideias e as palavras, como se as palavras fossem coisas, e não faz falta atirar o livro do Foucault ao ar para fazer malabarismos com as palavras e as coisas, talvez o psicoterapeuta de ursos lhe perguntasse até contra quem é que o ursinho polar estava... polarizado.
Mas não; não foi preciso chegar a tanto.
Porque este ursinho foi capaz de procurar ajuda para lidar com o seu próprio senso de inadequação, e porque encontrou no pai a receptividade à sua angústia, e pôde desabafar e admitir perante o outro o terrível segredo que o consumia.
E em vez de continuar a ocultar dos outros a verdade de quem era, e a sofrer secretamente a grande dor aparentemente e à partida inconfessável que sentia, o ursinho procurou – e encontrou – o meio e o contentor com quem partilhar a verdade de quem era; apesar de ter consciência do que deveria sentir (ou, neste caso, não sentir) e de antecipar, eventualmente, as possíveis consequências de não estar à altura do seu papel, das expectativas dos seus parentes, da sua raça, da sua sociedade e da memória de dezenas de gerações antes dele, que habitam ainda gravadas em cada um dos seus genes.
E o ursinho encontrou no pai um confidente, e no confidente, confiança.
Astrologicamente, falaríamos dos arquétipos do Sol e de Saturno, e da necessidade de os integrar, assim: o Sol refere-se à capacidade de se assumir na integridade de quem se é e na necessidade de ser reconhecido, aceite e encontrar aprovação para nossa identidade, e Saturno simboliza a capacidade de estar à altura dos papéis sociais que assumimos.
Por isso se fala em Saturno como “respons-abilidade”, ou seja, a capacidade (habilidade) de dar responsa, isto é, resposta; e qualquer interacção entre Sol e Saturno simboliza, assim, a necessidade de assumirmos responsavelmente (Saturno) quem somos (Sol).
Por isso, também, qualquer interacção entre Sol e Saturno num tema astrológico fala da necessidade de encontrar aprovação social, isto é, exterior, para quem somos.
E por isso, ainda, as interacções entre o Sol e Saturno falam da necessidade de iluminar (Sol) os nossos medos e sentimentos de inadequação (Saturno), de não estarmos à altura, de não sermos suficientemente bons.
E por isso falam também da capacidade de nos aceitarmos na nossa imperfeição e na capacidade de admitirmos que somos quem, e como, somos a cada momento de vida.
Por isso falam também da capacidade de nos aprovarmos (Saturno) a nós mesmos (Sol), e de trazer à luz do dia (Sol) o hiato entre quem somos (Sol) e o que acreditamos que deveríamos ser (Saturno), o que a nossa sociedade espera de nós (Saturno), o que as figuras de autoridade esperam de nós (Saturno), o que os nossos papéis sociais (Saturno) implicam, o que precisamos de ser (Sol) para termos aprovação, aceitação e estatuto (Saturno).
Por isso falam também na limitação (Saturno) dos níveis de calor (Sol) do organismo, manifestando-se como o frio crónico de que sofria o ursinho. E até pode ser, que no dia como aquele, o Sol e o Saturno do ursinho estivessem numa de trígono: ou não tivesse ele encontrado, no pai, uma figura de autoridade (Saturno) que o validou e amou no que ele estava a ser (Sol) naquele momento.
Quem sabe o ursinho tivesse nascido sob uma destas quadraturas, Sol-Saturno, e com uma Lua (a mãe) difícil, que não o soube conter.
Talvez o ursinho tivesse nascido com um Urano (o planeta da diferença, da originalidade singular, do inesperado e de tudo o que vai “contra” o que é normal, aceitável, aprovado ou esperado pelos outros) muito forte.
E talvez este Urano estivesse na Casa IV do seu tema astrológico, que é a Casa do “lar” em que se nasceu, sugerindo que o ursinho tivesse nascido a sentir-se alienado daquele meio, como se ali não pertencesse e não pudesse cumprir-se, ou ser feliz, no seu local de origem.
Talvez o tema astrológico do ursinho sugerisse a dificuldade em aceitar a encarnação como urso, pelo menos naquele glaciar e naquele tempo histórico, com o conjunto de papéis atribuídos aos ursos polares pela sociedade de ursos em que nasceu.
Talvez estivesse aí simbolizado um “karma” de não ser feliz enquanto não tivesse a audácia e a coragem de romper com os estereótipos sociais associados a ser urso.
Talvez o ursinho, mercê do Urano, estivesse condenado a tornar-se um ursano.
Talvez este ursinho estivesse condenado a sentir-se para sempre miserável, infeliz e inadequado na sua roupagem de urso polar, mobilizando todas as suas energias, que seriam cada vez menos, para estar à altura do que se espera de um urso.
Talvez aguardando a situação-limite do esgotamento ou de uma fuga desesperada e despreparada para outras paragens, quando fosse por demais insuportável viver à altura do que não se é.
Talvez ansiando secretamente encontrar um dia outro urso que fosse como ele, mas um que fosse suficientemente corajoso para lhe contar que também vivia com frio para que ele próprio não precisasse de o fazer – e ter ainda assim, e por causa disso, com quem se identificar clandestinamente e à margem das expectativas, para aliviar o peso da solidão e da alienação: outro alien como ele.
Quem sabe a que estaria o ursinho condenado? Felizmente não foi urso ao ponto de consultar um astrólogo ainda mais urso, daqueles que se põem a fazer vaticínios fatalistas e pré-determinados sobre o seu suposto “destino” - ou além de tudo o resto, ainda teria ficado com problemas que não existiam necessariamente, e com minhocas na cabeça para o resto da encarnação. Serviriam como isco para o peixe, mas não para muito mais do que isso. As minhocas, digo, porque vaticínios daquele tipo são de ursos que não pescam nada.
Mas porque foi capaz de o fazer – de se assumir em autenticidade, digo –: de admitir que tinha frio; e por não ter desistido de procurar quem o ouvisse, o contivesse e o ajudasse – ou, pelo menos, que o aceitasse -, o ursinho transcendeu o karma de ser um ursinho cheio de quadraturas da Lua, do Sol a Saturno e Urano na IV.
E assim, o ursinho inaugurou talvez uma nova era glaciar, em que pela primeira vez um urso polar admitiu que tinha frio, e talvez tenha com isso dado origem a uma nova sociedade de ursos no futuro.
Quiçá nesse momento o pai tivesse optado pelo amor ao seu filho, em detrimento da sujeição cega à tradição e à normalidade e tivesse escolhido ajudá-lo a ser quem ele era: um ursinho polar cheio de frio.
Quem sabe o pai tivesse dado início a uma campanha de sensibilização para os ursos polares que vivem com frio e outros ursinhos inadequados se tivessem permitido sair do segredo e do desconforto das prisões glaciares dos seus próprios papéis sociais e se tivesse criado um movimento dos ursos com frio; quem sabe naquele glaciar tivesse sido criado um programa especial para enviar para os trópicos os ursinhos que tivessem frio, ou passasse a ser socialmente aceite que os ursos que queiram pudessem usar casaco, gorro e samarra.
Quem sabe o pai tivesse pegado nas suas economias e enviado o ursinho para a savana africana, ou o tivesse inscrito num programa e intercâmbio com girafas calorentas. Ou criado, com ajuda de corvos de outros países, um crow-de-funding.
Quem sabe o que aconteceu a partir desse momento.
Mas podemos imaginar, sonhar, e supôr.
A nós, e por nós, só nos resta esperar que cada um de nós possa admitir, perante si próprio e perante os seus pares, o frio que cada um de nós sente – na certeza que não existe outro caminho para a integração emocional, para o poder pessoal, para a libertação da tirania dos papéis sociais, e para a evolução da sociedade de que fazemos parte. Não imaginamos o que fazemos pelo conjunto quando fazemos a nossa parte como partes.
E um dia, assim corajosos e inteiros, todos estaremos em harmonia connosco próprios e contribuindo à medida do nosso frio – e da nossa coragem para admitirmos quem somos - para um futuro em que a verdade de quem somos, e não a tradição e as regras, ditem os limites da integridade, da liberdade pessoal, e do saudável auto-respeito pelo que somos, sentimos, e precisamos para sermos felizes.
NUno Michaels
in, Tao en choice
quinta-feira, 28 de maio de 2015
Fala-me tu
"Fala-me tu do Amor e dessa coisa esquisita que é o tempo com quatro dedos de distância entre o ardor das línguas e a asfixia dos corpos.
Fala-me tu do Amor e desse desejo que arrasta a proximidade que anula todos os intervalos em pequenas existências que de tão insignificantes desaparecem numa doçura e amargura.
Conta-me do constante faz e refaz, de ressuscitar e morrer, de adormecer e sonhar, do conforto da luz dos dias na realidade que nos mata. Porque do Amor também se morre e também se vive, como alimentação programada às calorias necessárias para respondermos."
Al Berto
Artes Marciais
~Li Shifu
…um degrau de grande altura que requer imenso Gong (功) (esforço/mérito) e Fu (夫) (concentração / compromisso) para desenvolver a habilidade / a arte / a virtude.
A um nível rudimentar a Arte obtida pelo esforço, pelo mérito (marcial) tem aplicações de luta, ganho, competição, de domínio, de subjugar e vencer.
A um nível superior, a quinta essência da Arte obtida pelo esforço, pelo mérito (marcial) tem o condão de proteger a essência, resgatar o original e dominar o ego usurpador do ser.
Torna-mo-nos senhores de nós próprios podendo a partir desse instante auxiliar outros a libertarem-se de si próprios.
Interiormente o “outro”, o inimigo a derrotar, está em nós.
Exteriormente o nosso parceiro de luta é o amigo que nos ajuda a desenvolver essa habilidade.
É irrelevante quem vence um combate a nível exterior.
A um nível interno, perdemos todos sempre que alguém fica preso em si.
Existe Arte no Marcial, que é o mesmo que dizer que existe mérito no esforço comprometido de auto-superação, de libertação de todas as forças intrínsecas que nos aprisionam.
Na linguagem hindu, a quinta essência da arte marcial remete ao que poderíamos chamar “o poder de Shiva” ou em linguagem bíblica “a rendição ao senhor, ao poder divino”.
Existem mais formas de entender, mas fica agora ao leitor, o poder de, por seu esforço, encontrar a metáfora que lhe aprouver um possível entendimento, uma compreensão.
Vasco Daniel
quarta-feira, 27 de maio de 2015
................o que nos irrita nos outros
Tudo o que nos irrita nos outros,
pode levar-nos a uma compreensão
sobre nós mesmos.
Para evitar a sensação de que não somos bons o bastante, vemos os que estão ao nosso redor como se fossem suficientemente bons.
Inúmeros exemplos vêm à mente.
Alguns são triviais, enquanto outros são uma questão de vida ou morte.
A mais recente actriz de sucesso no cinema é criticada por perder peso demais, enquanto uma nação inteira se torna mais obesa.
Movimentos contra a guerra são denunciados como antipatriotas, enquanto todos estão a pagar impostos para matar cidadãos de um país que nunca fez mal algum à América.
Todos usam a projecção como uma defesa para evitar olhar para dentro de si mesmos.
Percebam que essa é uma defesa inconsciente.
O molde da projecção é a seguinte afirmação:
“Não posso admitir o que sinto, então, imagino que você sinta”.
Se você inconscientemente sente uma atracção sexual que considera tabu, tal como atracção por alguém do mesmo sexo ou pensamentos de infidelidade, você acha que os outros estão direccionando esse tipo de atracção a você.
A projecção é muito efectiva.
Um falso estado de auto aceitação é criado com base em “Eu estou bem, mas você não está”.
No entanto, a auto aceitação se estende a outras pessoas; quando você está bem consigo mesmo, não há motivo para determinar que o outro é que não está bem.
Você Está a Projectar?
Aqui estão as formas típicas que a projecção pode assumir:
Superioridade.
“Eu sei que sou melhor que você. Você deveria ver e reconhecer isso.”
Injustiça.
“É uma injustiça que estas coisas más aconteçam comigo” ou
“Eu não mereço isto.”
Arrogância.
“Tenho orgulho demais para me incomodar consigo. Até a sua presença me irrita.”
Defensiva.
“Você está a atacar-me, então, não estou a ouvir.”
Culpar os outros.
“Eu não fiz nada. É tudo culpa sua.”
Idealizar os outros.
“Meu pai era como um Deus quando eu era pequeno”,
“Minha mãe era a melhor mãe do mundo” ou
“O homem com quem eu me casar será o meu herói”.
Preconceito.
“Ele é um deles, e você sabe como eles são” ou
“Cuidado, esse tipo de gente é perigosa.”
Ciúme.
“Você está a pensar trair-me; posso ver isso.”
Paranoia.
“Eles querem apanhar-me” ou
“Eu vejo a conspiração que ninguém vê”.
Sempre que um destes comportamentos surgir,
há um sentimento oculto na sombra que você não consegue encarar.
Aqui estão alguns exemplos:
Camufla o sentimento de fracasso ou o de que os outros o rejeitariam se soubessem quem você realmente é.
A injustiça:
Camufla o sentimento de pecaminosidade ou a sensação de que você é sempre culpado.
A arrogância:
Camufla a raiva acumulada e, abaixo dela, há uma dor profundamente arreigada.
A defensiva:
Camufla a sensação de que você é indigno e fraco. A menos que você se defenda dos outros, eles começarão a atacá-lo.
Culpar os outros:
Camufla a sensação de que você está a agir errado e deveria envergonhar-se disso.
Idealizar os outros:
Camufla a sensação de que você é uma criança fraca e indefesa, que precisa de protecção e cuidados.
O preconceito:
Camufla o sentimento de que você é inferior e merece ser rejeitado.
O ciúme:
Camufla o seu próprio impulso de desvio, ou um senso de inadequação sexual.
A paranóia:
Camufla uma ansiedade entranhada e sufocante.
Como pode ver, a projecção é muito mais subtil do que se imagina.
No entanto, é uma porta aberta para a sombra.
E uma porta dolorosa, já que aquilo que é visto como falha nos outros mascara o seu sentimento em relação a você mesmo.
O ideal seria que pudéssemos parar de culpar e julgar de uma vez por todas.
Na realidade, desfazer a sombra é sempre um processo.
Para interromper a projecção, você precisa observar o que está a fazer, entrar em contacto com o sentimento oculto sob a superfície, e fazer as pazes com esse sentimento.
Deepak Chopra
O gato é neurótico mas brinca
O que espanta num gato é a maneira como combina a neurose, a desconfiança e o medo - para não falar numa ausência total de sentido de humor - com o talento para procurar e apreciar o conforto e, sobretudo, a capacidade para dormir 20 em cada 24 horas, sem ajuda de benzodiazepinas.
O gato é neurótico mas brinca(...)
Mas, acima de tudo, descobriu o sistema binário da existência.
Que é:
Dormir faz fome.
Comer faz sono.
Acordo porque tenho fome.
Adormeço porque comi.
Nos intervalos, faço as necessidades.
in, "Como é Linda a Puta da Vida"
Miguel Esteves Cardoso
...o lado cómico da questão
Don Juan
Actor andaluz Fran Perea, no papel de Don Juan
"Centrando-se numa das figuras românticas mais famosas da literatura e da ópera, o impetuoso sedutor Don Juan, a análise sociopsicológica de Winter baseia-se largamente no estudo da frequência de certos temas em documentos literários. Winter observa que, apesar da obrigatória condenação das acções de Don Juan como “perversas” e “malditas”, ele é de facto idealizado como “o maior sedutor de Espanha”. Assinala também que os motivos subjacentes de Don Juan são a agressão, o ódio e o desejo de humilhar e punir as mulheres – não os impulsos sexuais. Nota ainda algo de profunda importância psicológica e histórica: as atitudes extremamente hostis para com as mulheres são características de épocas em que as mulheres sofrem a máxima repressão por parte dos homens.
O caso clássico relevante que cita é o da Espanha onde emergiu a lenda de Don Juan, quando os espanhóis das classes superiores haviam adoptado o “costume mourisco de manter as mulheres em isolamento”. A razão psicológica por detrás desta hostilidade acrescida, explica Winter, é o relacionamento mãe-filho tornar-se particularmente tenso em períodos assim – a par da generalidade das relações feminino-masculino.
Contextualmente, torna-se evidente que a “motivação de poder” de Winter é, na nossa terminologia, a pulsão androcrática para conquistar e dominar outros seres humanos. Tendo estabelecido ser o rebaixamento das mulheres por parte de Don Juan uma manifestação desta “motivação de poder”, Winter tabula então a frequência das histórias sobre Don Juan na literatura de uma nação relativamente aos períodos de expansão imperial e de guerra. O que documentam as suas descobertas é aquilo que nós prediríamos socorrendo-nos do modelo de alternância gilânico-androcrático: historicamente, as histórias do mais famoso arquétipo de dominação masculina sobre as mulheres aumentam de frequência antes e durante os períodos de militarismo e imperialismo exacerbados.”
in, O Cálice e a Espada
Riane Eisler
Don Juan, personagem lendária da literatura espanhola criado por Tirso de Molina.
As visões acerca da lenda variam de acordo com as opiniões sobre o caráter de Don Juan, apresentado dentro de duas perspectivas básicas.
De acordo com uns, era um mulherengo barato, concupiscente, cruel sedutor que buscava apenas a conquista e o sexo.
Outros, porém, escreviam que ele efectivamente amava as mulheres que conquistava, e que era verdadeiramente capaz de encontrar a beleza interior da mulher.
As versões primitivas da lenda sempre o retratam como no primeiro caso.
Existe o Don Juan Tenório, do escritor José Zorilla, já envelhecido.
Don Juan de Cárcamo, de Miguel Cervantes.
Don Giovanni Tenorio, de Carlo Goldoni.
Don Juan Triunfante, no Fantasma da Ópera.
Don Juan, de Honoré de Balzac.
Don Giovanni, de José Saramago.
E claro, o Don Juan de Lord Byron.
Don Juan é uma das obras mais conhecidas de Lord Byron, sendo a que mais retrata a vida pessoal do autor.
A obra não foi concluída devido à morte de Byron.
É um poema satírico, bem ao estilo de Byron, baseado na lenda do Don Juan de Sevilha, que tinha fama de mulherengo.
Byron considera que ele não era mulherengo, mas sim muito facilmente seduzido pelas mulheres.
Relata que eram sempre elas que o seduziam a ele.
Ele completou 16 Cantos, deixando o 17º incompleto devido à sua morte em 1824.
Retrata a tragicomédia que foi a vida de Byron.
A Obra retrata um Don Juan vitimado por uma educação católica repressiva, sendo fruto inocente desta visão distorcida. Neste poema Don Juan é iniciado no verdadeiro amor pela bela filha de um pirata, Haidée, que o vende depois como escravo para a esposa de um sultão, a fim de satisfazer-lhe os desejos carnais.
O Don Juan de Byron é menos sedutor e mais uma vítima dos desejos femininos e de seus infortúnios.
Beppo e Don Juan são descontraídos no que diz respeito ao sexo, adultério, etc...mas não compulsivos.
Byron era considerado escandaloso, perverso, porque era irreverente:
Escarnecia da religião e das instituições religiosas, fazia pouco do Céu e da Vida Eterna, gozava com o Rei, era contra a servidão, era bastante atraente e tinha sempre mulheres apaixonadas por ele o que dava a entender que ele andava sempre a seduzir as mulheres e a usá-las em seu benefício.
Para além disso, era apaixonado por Augusta, a meia-irmã de Annabella.
Acabou por se casar com Annabella.
Mas cedo se separaram, e Annabella e a filha Ada foram viver fora de Londres e Byron nunca mais viu a filha.
Por isso haviam rumores de incesto e de loucura em torno de Byron.
Depois da separação, Byron lidou mal com os rumores e com as calúnias e foi para o estrangeiro, entre várias cidades, Veneza, onde teve muitas amantes, umas solteiras outras casadas, e prostitutas.
Byron tinha 30 anos na altura.
Depois apaixonou-se e pelo que consta foi fiel até ao resto da vida.
Por isso, é considerado por vários escritores ingleses, não como um sedutor, mas sim como um objecto de sedução. Tinha muitas mulheres que o queriam e o desejavam, tal como escreve em Don Juan.
Tom Disch, diz que Byron se assemelhava mais a Valentino.
A grande habilidade de Valentino era a forma como conseguia sugerir estar dominado pelo sentimento, principalmente sentimento erótico, e isso podia levá-lo a fazer coisas erradas, mas as mulheres eram arrastadas pelos sentimentos que pareciam provocar nele, e alinhavam de bom grado.
Byron poderia ser um daqueles homens que parecem ligar toda a sua necessidade de carinho, conforto e segurança física, ao sexo.
Acontece, principalmente aos homens que crescem sem mãe, ou que tiveram relações conflituosas com a mãe, como foi o caso de Byron.
Acho muito interessante esta relação tão próxima entre a Obra Don Juan e a vida de Byron, o seu autor.
Há um outro livro, "O Manuscrito Perdido de Lord Byron" de John Crowley, que já li há uns anos, que fala muito sobre isto, e que despertou ainda mais a minha curiosidade na altura...
É a outra face da moeda...
terça-feira, 26 de maio de 2015
Não te despedes de mim?
"...- Vou-me embora hoje.
Ele olhou-a demoradamente, como quem não quer perder nada.
- Não te despedes de mim?
Ele continuou a olhá-la, sem dizer palavra.
O que dizer quando o coração nega a partida?
- Vou levar-te comigo na alma.
Ele então chorou.
E quis partir com ela, escondido no fundo dos seus brincos ou nas palmas das suas mãos.
- Adoro quando brincas com os meus dedos.
Parece que queimam, que me inflamo ao teu toque.
E ele brincou mais uma vez.
Como se fosse a última.
E era mesmo..."
Junko Furuta
Ocorreu em 1988-89.
Uma adolescente japonesa, Furuta Junko, com 16 anos na época, foi capturada, mantida em cativeiro, estuprada, torturada e brutalmente assassinada.
O caso teve grande repercussão no Japão.
Em 25 de Novembro de 1988, quatro rapazes, incluindo Jō Kamisaku, na época com 17 anos (Kamisaku foi um novo sobrenome adoptado por ele após ser liberado da prisão), raptaram e mantiveram em cativeiro, uma estudante do terceiro ano do colegio de Misato, na cidade de Saitama, por 44 dias.
Eles mantiveram-na em cativeiro numa casa de propriedade dos pais de Kamisaku, localizada em Ayase, no distrito de Adachi, Tóquio.
Junko tentou escapar diversas vezes, implorando para que os seus pais a ajudassem, mas eles não fizeram nada, aparentemente por medo que Yokoyama os torturasse. Yokoyama naquela época era um líder de nível baixo da Yakuza, e afirmou que ele usaria os seus contactos para matar qualquer um que interferisse.
De acordo com os seus depoimentos em julgamento, todos os quatro a estupraram, bateram-lhe com varas de metal e tacos de golfe, introduziram objectos estranhos incluindo uma lâmpada de vidro na sua vagina, fizeram-na comer baratas e beber a sua própria urina, inseriram fogos de artifício no seu ânus e os acenderam, obrigaram Junko a masturbá-los, cortaram os seus mamilos com alicates, deixaram cair halteres sobre o seu estômago, e a queimaram com cigarros e isqueiros.
Uma das queimaduras foi uma punição por tentar ligar para a polícia.
Foi dito em depoimento também, que algum tempo depois dos primeiros actos de tortura, ela se tornou incapaz de beber água, o que a fazia vomitar todas as vezes que tentava.
A certa altura, as feridas eram tão graves que de acordo com um dos rapazes, Junko levava mais de uma hora para rastejar escada abaixo para usar o WC.
Eles declararam que "possivelmente mais de cem pessoas" sabiam que Junko Furuta estava aprisionada lá, mas não ficou claro se essas pessoas apenas visitaram a casa enquanto ela estava mantida prisioneira ou se também abusaram dela. Depois de os rapazes se recusarem a deixa-la ir-se embora, ela implorou em diversas ocasiões que a matassem e terminassem com tudo aquilo.
A 4 de Janeiro de 1989, após perderem um jogo de Mahjong solitaire, os quatro bateram-lhe com halteres, colocaram líquido de isqueiro nas suas pernas, braços, rosto e estômago e pegaram-lhe fogo.
Mais tarde naquele dia ela morreu pelo choque.
Os quatro adolescentes alegaram que não faziam ideia do quão grave era o estado de Junko, e que eles acreditaram que ela estava a fingir.
Em 5 de janeiro, os assassinos esconderam o seu corpo num tambor de 55 galões cheio de concreto.
Os perpetradores puseram o barril num terreno baldio recuperado em Kōtō.
Os adolescentes foram presos e julgados como adultos, mas pela maneira como o Japão lida com crimes cometidos por jovens, os seus nomes foram mantidos em segredo pela corte.
Os quatro alegaram culpa para serem acusados de "agressão física seguida de morte" ao invés de homicídio.
A família do líder vendeu a casa deles por aproximadamente 50 milhões de ienes e pagaram essa quantia como compensação de danos à família de Junko Furuta.
Os 3 cúmplices passaram oito anos numa prisão juvenil antes de serem libertados em Agosto 1999.
Em Julho de 1990 o líder do crime foi sentenciado em primeira instância a 17 anos de prisão.
O líder e os dois primeiros dos três cúmplices recorreram à sentença.
A instância seguinte deu sentenças mais severas ainda para os três que apelaram.
O líder recebeu uma sentença de 20 anos, a pena mais alta possível abaixo de prisão perpétua.
Pelo menos dois livros em japonês já foram escritos sobre o caso.
Junko Furuta.
The girl who went through 44 days of torture.
DAY 1: November 22, 1988:
Kidnapped
Kept captive in house, and posed as one of boy’s girlfriend
Raped (over 400 times in total)
Forced to call her parents and tell them she had run away
Starved and malnutritioned
Fed cockroaches to eat and urine to drink
Forced to masturbate them
Forced to strip in front of others
Burned with cigarette lighters
Foreign objects inserted into her vagina/anus
DAY 11: December 1, 1988:
Severely beat up countless times
Face held against concrete ground and jumped on
Hands tied to ceiling and body used as a punching bag
Nose filled with so much blood that she can only breath through her mouth
Dumbbells dropped onto her stomach
Vomited when tried to drink water (her stomach couldn’t accept it)
Tried to escape and punished by cigarette burning on arms
Flammable liquid poured on her feet and legs, then lit on fire
Bottle inserted into her anus, causing injury
DAY 20: December10, 1989:
Unable to walk properly due to severe leg burns
Beat with bamboo sticks
Fireworks inserted into anus and lit
Hands smashed by weights and fingernails cracked
Beaten with golf club
Cigarettes inserted into vagina
Beaten with iron rods repeatedly
Winter; forced outside to sleep in balcony
Skewers of grilled chicken inserted into her vagina and anus, causing bleeding
DAY 30:
Hot wax dripped onto face
Eyelids burned by cigarette lighter
Stabbed with sewing needles in chest area
Left nipple cut and destroyed with pliers
Hot light bulb inserted into her vagina
Heavy bleeding from vagina due to scissors insertion
Unable to urinate properly
Injuries were so severe that it took over an hour for her to crawl downstairs and use the bathroom
Eardrums severely damaged
Extreme reduced brain size
DAY 40: Begged her torturers to “kill her and get it over with”
January 1, 1989:
Junko greets the New Years Day alone
Body mutilated
Unable to move from the ground
DAY 44: January 4, 1989:
The four boys beat her mutilated body with an iron barbell, using a loss at the game of Mah-jongg as a pretext.
She is profusely bleeding from her mouth and nose.
They put a candle’s flame to her face and eyes.
Then, lighter fluid was poured onto her legs, arms, face and stomach, and then lit on fire.
This final torture lasted for a time of two hours.
Junko Furuta died later that day, in pain and alone.
Nothing could compare 44 days of suffering she had to go through.
When her mother heard the news and details of what had happened to her daughter, she fainted.
She had to undergo a psychiatric outpatient treatment .
Imagine her endless pain.
Her killers are now free men.
Justice was never served, not even after 20 years.
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