domingo, 27 de agosto de 2023

O anoitecer









“O anoitecer é por toda a parte um grande serviço” (Ferreira 
Gullar), torna-nos enfim distantes, a cada um sua época, sua 
forma de discrição, os seus actos isolados, as sombras que 
ganham vida de sóis ausentes, esse alimento a partir das 
reservas, a noite como projecção do desconhecido, um território 
que cresceu de tantas migalhas e conjecturas, com uma 
paciência infernal, primeiro receoso, depois admirado desses 
sentidos que se calibram nesta zona autónoma, suspensa, 
florescendo como a imagem sobre a água numa transformação 
que não se aquieta, aqui os juízos degeneram, os corredores 
aparecem desfeitos, um quarto não liga já com os outros nem 
com o resto da casa, ou até do mundo, em vez da pauta para soar 
em conjunto alto, há como uma trepidação debaixo das palavras, 
em vez de coordenadas fixas as raízes levantam-se rasgando os 
mapas, nos espelhos vês a terra revolvida e espalhada por ali 
a “tua grave ossada à beira de um mar sujo e ignorado”, por uns 
momentos as luzes ao longe lembram um trânsito de feras, certos 
textos indecifráveis abrem as suas flores e percebe-se a extensão 
dos campos de silêncio aceso, as palavras perdidas retomam o 
rumo, cada um é lembrado do ponto onde estava como se lhe 
fosse devolvido o corpo, esse “clarão soterrado”, a noite diz-nos 
onde estamos face a nós mesmos, não há atalhos e ninguém 
escapa do seu canto, o pó levanta-se das coisas, ergue-se numa 
precária constelação, se entrámos a medo, somos agora nativos 
desses impulsos que percorrem toda uma cena de caça, capazes 
de um desequilíbrio de forças a partir de elementos mínimos, 
pingar de manchas pulsantes um espaço perfumado de ervas, 
sentir o odor misturar-se entre a fome e a morte tão próximo da 
fonte, como quem devorasse o próprio estômago, ou a língua, 
mastigar-se aflito, radiante, nu e mortal.
 

Diogo Vaz Pinto



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