Gullar), torna-nos enfim distantes, a cada um sua época, sua
forma de discrição, os seus actos isolados, as sombras que
ganham vida de sóis ausentes, esse alimento a partir das
reservas, a noite como projecção do desconhecido, um território
que cresceu de tantas migalhas e conjecturas, com uma
paciência infernal, primeiro receoso, depois admirado desses
sentidos que se calibram nesta zona autónoma, suspensa,
florescendo como a imagem sobre a água numa transformação
que não se aquieta, aqui os juízos degeneram, os corredores
aparecem desfeitos, um quarto não liga já com os outros nem
com o resto da casa, ou até do mundo, em vez da pauta para soar
em conjunto alto, há como uma trepidação debaixo das palavras,
em vez de coordenadas fixas as raízes levantam-se rasgando os
mapas, nos espelhos vês a terra revolvida e espalhada por ali
a “tua grave ossada à beira de um mar sujo e ignorado”, por uns
momentos as luzes ao longe lembram um trânsito de feras, certos
textos indecifráveis abrem as suas flores e percebe-se a extensão
dos campos de silêncio aceso, as palavras perdidas retomam o
rumo, cada um é lembrado do ponto onde estava como se lhe
fosse devolvido o corpo, esse “clarão soterrado”, a noite diz-nos
onde estamos face a nós mesmos, não há atalhos e ninguém
escapa do seu canto, o pó levanta-se das coisas, ergue-se numa
precária constelação, se entrámos a medo, somos agora nativos
desses impulsos que percorrem toda uma cena de caça, capazes
de um desequilíbrio de forças a partir de elementos mínimos,
pingar de manchas pulsantes um espaço perfumado de ervas,
sentir o odor misturar-se entre a fome e a morte tão próximo da
fonte, como quem devorasse o próprio estômago, ou a língua,
mastigar-se aflito, radiante, nu e mortal.
Diogo Vaz Pinto
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