sábado, 8 de abril de 2023

Rio Profundo








Este livro é uma tentativa de esbater as diferenças entre as grandes religiões; ou como uma nova formulação de uma dicotomia antiga: “catolicismo europeu” versus “catolicismo japonês”. 
O facto de Endo ser um japonês católico, ínfima minoria, de ter estudado na Europa e de ter uma consciência aguda da rejeição da mundividência cristã no Japão fazem dele um caso singular. 
E é de ‘casos’ que “Rio Profundo” se ocupa, de uns quantos homens e de uma mulher que perderam alguma coisa, que procuram alguma coisa, que em geral não acreditam em nada, mas não estão fechados a essa possibilidade.

Romancista católico, Endo escolheu deliberadamente os lugares sagrados de uma outra religião para melhor transmitir aquela que foi a sua derradeira mensagem: a de um Deus universal que aceita todos aqueles que sofrem.

Tudo se passa nas margens do Ganges, o rio sagrado da Índia, em torno de cinco japoneses que para aí convergem numa viagem que é tanto física quanto espiritual. Assombrados pelo seu passado, todos eles enfrentam uma ampla gama de dilemas morais e vão em busca de algo que perderam. 
Entre um grupo de turistas japoneses que partiu para uma viagem à Índia, quem encontrará a paz e a regeneração da alma e do coração de que cada um tanto precisa?

Isobe ficou viúvo. Tinha um casamento convencional, um viver habitualmente sem grandes manifestações de afecto. Mas a morte da mulher, de cancro, transtorna-o, porque se apercebe do amor dela por ele, e porque ela se despediu manifestando uma surpreendente crença na reencarnação, um choque para Isobe, que só acredita no aniquilamento. 
Isobe, que chora a morte da mulher, procura um sinal da sua reencarnação.
Mitsuko, era voluntária no hospital onde estava internada a mulher de Isobe, na altura da sua morte.

Kiguchi, um sobrevivente dos horrores da guerra na selva da Birmânia, tem esperança de poder dar descanso às almas dos camaradas que viu morrer na Autoestrada da Morte. Durante a travessia da Autoestrada da Morte, apanhou Malária, e foi deixado para trás, mas o seu companheiro Tsukada ficou com ele, cuidou dele, procurou comida nas aldeias que estavam por perto. Era frequente os soldados japoneses, em desespero, suicidarem-se com granadas...Tsukada encontrou um pedaço de perna de um soldado e comeu essa carne para sobreviver. Deu a Kiguchi, dizendo-lhe que era carne de lagarto, mas Kiguchi não conseguiu comer. Sobreviveram os dois, regressaram ao Japão, deixaram de comer carne, casaram e tiveram filhos. Kiguchi, reconstruiu a sua vida, criou uma empresa de transportes. Tsukada, nunca conseguiu superar o trauma, e virou alcoólico. Acabou por morrer com cirrose no hospital, acompanhado pela mulher, Kiguchi e o Gastão, que ao lhe contar que um avião se tinha despenhado nos Andes, e que os sobreviventes que iam morrendo, diziam aos outros para comerem os seus corpos cadáveres para sobreviverem, permitiu a Tsukada morrer tranquilo horas depois.

A Estrada da Birmânia, foi construída entre os anos de 1939 a 1941, e unia a China à Índia e à Birmânia (atual Mianmar), com o objetivo de levar suprimentos dos Aliados da Segunda Guerra Mundial para a resistência chinesa à ocupação japonesa.
Com uma extensão de 1 154 km, cruza a parte montanhosa da Birmânia, China e Índia.
A estrada foi importante na disputa entre os ingleses e os japoneses, antes da sua entrada no conflito mundial. Ligava Lashio (norte birmanês) a Kunming (na China), e foi construída por trabalhadores chineses, com grande custo de vidas sobretudo devido a surtos de malária, nas florestas e montanhas. Tornou-se a mais famosa estrada do mundo na época, por onde passavam constantemente dezenas de veículos abastecidos de armamentos e munições para a China - o que a transformou no principal objetivo estratégico japonês na ocupação da Birmânia. 
O Japão tinha optado pela via bélica a fim de construir, na terminologia da época, uma "esfera da co-prosperidade asiática". Já tinha, em 1910, ocupado a Coreia e, após a I Guerra Mundial afasta-se da Sociedade das Nações. Aproveitando-se do Incidente da Manchúria de 1931, promove em seguida a ocupação da rica província chinesa, levando ao descrédito a organização internacional que então se tentava criar para evitar novos conflitos.
Em 1937 os japoneses levam o conflito ao restante da China, ocupando os portos e procurando interromper todas as vias externas que pudessem suprir de material bélico as tropas de Chiang Kai-shek, como ocorreu com a derrota da França em 1940, interrompendo a ligação entre Tonquim e o Iunão. 
No ano seguinte a tentativa de conquista da China passa a integrar o novo conflito mundial, com a enorme ofensiva militar japonesa a ocupar diversos países asiáticos. 
Para interrompê-lo, os ingleses lançaram um contra-ataque durante a estação seca de 1942-1943, a partir de Arakan. Os japoneses lançaram a sua última ofensiva em 1944 para deter o suprimento aos chineses, que foi detida pelo 14º Exército, formado por tropas anglo-indianas, na Batalha de Imphal-Kohima. Roosevelt, Churchill e os Chefes do Estado Maior aprovaram, em agosto de 1943, uma ofensiva ao norte birmanês, e com a chegada das monções, as tropas japonesas recuaram pela chamada Autoestrada da Morte, até finalmente serem capturados a 3 de maio de 1945.

A Guerra da Birmânia ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1941 com a invasão japonesa do país e encerrada com a vitória dos Aliados em 1945.


Numada, escritor de contos para crianças, que se separou dos animais que amava e, sobreviveu a uma doença grave, procura conforto junto da Natureza. Desde muito pequeno que era introvertído e muito tímido, e por isso não tinha amigos. Viveu a sua infância em Dalian, na Manchúria, que na altura era colonizada pelos japoneses, e que tinha sido ocupada antes pelos russos, Os seus amigos sempre foram os animais. Em Dalian, o seu melhor amigo era o seu cão, um Galgo Manchu chamado Negrito. Os pais decidiram divorciar-se, e a mãe decidiu voltar para o Japão e levaria Numada consigo. No dia da partida, Negrito correu atrás do carro até perceber que Numada o tinha abandonado. Numada nunca esqueceu o olhar de resignação e abandono de Negrito, e ali teve a sua primeira dolorosa experiência do que era uma separação.
Negrito foi o primeiro cão a ensinar-lhe que os animais podem "dialogar" com os humanos, e podem ser grandes companheiros de vida, capazes de compreender as dores de seus donos.
E foi assim que se apercebeu na universidade de que, a única forma de conseguir algo parecido na sua vida, seria através de uma literatura fabulísta, onde cães, gatos, pássaros, cabras, póneis, compreendem as tristezas das crianças. 
Já com uma carreira consolidada como escritor de livros para crianças, teve um pássaro muito raro dos trópicos, um Calau, a quem deu o nome de Pierrot (o calau fazia-o lembrar os quadros do Pierrot pintados por Rouault), e com quem teve um vinculo muito forte. Passados uns anos, Numada adoece com tuberculose, teve de ser internado no hospital, e antes de ir para o hospital, abriu a janela do escritório e libertou o Pierrot. De novo, uma situação imprevista, obrigou-o a separar-se do seu melhor amigo, o calau Pierrot.
A tuberculose piorou, teve de ser operado mas sem o sucesso desejado, e como Numada estava com muitas saudades do seu calau Pierrot, a família ofereceu-lhe um Mainá, com quem ele tinha longas conversas à noite. conversas que não conseguia ter com mais ninguém. A única hipótese de sobrevivência seria fazer uma cirurgia que tinha poucas possibilidades de sucesso. Com a enorme possibilidade de morrer durante a cirurgia, todas as noites Numada falava com o Mainá sobre o medo que tinha da morte. Foi operado pela terceira vez um mês depois... Numada, após uma paragem cardíaca, sobreviveu... e o Mainá morreu durante a cirurgia nesse mesmo momento, e Numada percebeu que o Mainá tinha dado a vida por ele. 
Antes do final da viagem à India, Numada foi a uma loja de animais comprar um Mainá, foi de carro até um Santuário de aves, e libertou o Mainá, devolvendo-lhe a liberdade como forma de gratidão. 

Mas o Ganges é também o local do reencontro de Otsu, um padre japonês rejeitado pelos seus irmãos católicos, e Mitsuko, a mulher que o seduziu nos seus tempos de estudante universitário e que o tentou arrancar à sua fé cristã,, numa aposta entre amigos.

Mitsuko, estudava Literatura Francesa na universidade, onde Otsu estudava Filosofia.
Nas aulas de Francês, andavam a ler um livro de Julien Green, em que a heroína, Moira, dada a folias, seduz um estudante puritano, Joseph, por puro gozo e desdém. Mitsuko era chamada de Moira pelos colegas de curso, e foi desafiada a fazer o mesmo a Otsu. Ela aceitou o desafio, seduziu Otsu até ele perder a virgindade com Mitsuko, e logo depois rejeitou-o. 
O prazer de se conspurcar a si mesma confundia-se com a repugnância das suas motivações.
Uns anos mais tarde, casou com  o milionário Yano, homem convencional, o oposto em tudo de Mitsuko. 
"Vou casar com este homem, para poder dominar os meus ímpetos de superioridade", 
disse ela para si, quando se conheceram.
Pouco depois de se terem casado, compreendeu a loucura da pressa de se corromper a si própria.
Durante a sua vida universitária, desprezou o seu corpo, envolvendo-se sexualmente com tudo o que era homem da universidade e fora dela.
Depois, casou porque algo igualmente destrutivo continuava a dominá-la. 
Ela desejava apagar a sua vida passada dos tempos universitários, queria casar com um homem que não tivesse interesse em compreender esse lado destrutivo que habitava nela, e desejava converter-se numa esposa vulgar, enterrando-se a si própria como um cadáver, entre pessoas que abominava, réplicas do marido.
"Yano, devorava-lhe o corpo, tal qual um cevado a lavadura da pocilga. A expressão desse homem, quando fazia amor com a mulher... Mitsuko conhecia isso muito bem por larga experiência - era exatamente a de qualquer outro: uns olhos injetados de sangue e uma respiração acelerada. 
Interrogava-se a si mesma se, no fundo, era uma mulher capaz de amar alguém. 
"Que Diabo quero eu afinal?" 
  

Otsu, que depois dos estudos teológicos na França, onde foi ordenado padre católico, vive num ashram, rejeitado pelos confrades dominicanos, e testemunha solidariedade para com os pobres, as prostitutas, os moribundos, nas margens do Ganges.

Há três momentos na relação de Mitsuko e Otsu: 
  1. os anos da universidade, 
  2. encontro em Lyon, 
  3. encontro em Varanasi(Benares). 
O fio desses três momentos é a confiança, quase infantil, de Otsu em Cristo, oposta à incredulidade religiosa e à ausência de amor de Mitsuko. 

Na universidade, Mitsuko relaciona-se com um estranho colega, de nome Otsu, estudante de filosofia, um jovem de aspecto nada atraente, tímido, de família católica devota, que estuda filosofia para compreender o espírito europeu. 

No seu encontro em Lyon, onde Mitsuko interrompe a sua lua-de-mel em Paris, Otsu explica-lhe que, depois de se ter sentido rejeitado por ela, ele tinha compreendido "aquele homem, que tinha sido rejeitado por todos”, e que o tinha seguido. Para não perturbar Mitsuko, para quem a palavra “Deus” não significa absolutamente nada, Otsu substitui o nome de Deus pelo de Cebola. 
Em seus diálogos, contudo, Otsu, há três anos na França, deixa entender claramente que a cultura europeia se choca com o caráter japonês:

“Não creio no cristianismo europeu. Estou cansado do modo de pensar das pessoas daqui. Seu modo de pensar, que corresponde às exigências de seu coração, é pesado para um asiático como eu. Cada dia é um inferno para mim. Quando procuro dizer a algum de meus colegas ou professores franceses como me sinto, eles dizem que a verdade não conhece distinção entre Europa e Ásia.
Não consigo entender a distinção tão taxativa entre o bem e o mal. Custa-lhes ver que também as coisas boas podem estar ocultas nas más."

Seu terceiro encontro se realiza em Varanasi, à beira do Ganges, onde Otsu, agora padre ignorado por seus confrades, vive como um sadhu (mas celebrando a missa privadamente), passa os dias na companhia dos harijan (“filhos de Deus”), isto é, os párias, carregando nos ombros os cadáveres dos pobres, das prostitutas, dos velhos e levando-os ao forno crematório na margem do grande rio Ganges. 
Otsu diz a Mitsuko que, se “aquele homem” vivesse hoje na Índia, faria a mesma coisa, carregando-os nos ombros como a cruz. E acrescenta: 

“Finalmente, decidi que o meu Cebola não vive só no cristianismo europeu. Ele pode ser encontrado no hinduísmo e também no budismo. Quando os cadáveres são envolvidos pelas chamas, faço uma oração ao meu Cebola:
‘recebe esta pessoa que te recomendo e toma-a nos braços’”.

Pelo fim do romance, Otsu vai em socorro de um turista japonês que não respeita os tabus dos hindus a respeito da cremação e tira uma foto da cerimónia. O turista é imediatamente atacado pelos participantes
e Otsu, como sempre, procura fazer a paz entre todos, embora saiba que o estrangeiro é culpado. Mas é ele que recebe os golpes; ele é atirado escada abaixo e fica com o pescoço partido. Dois dias depois, Mitsuko recebe a notícia de que seu estado se tornou crítico, e o romance termina aí.



É interessante o súbito aparecimento e o súbito desaparecimento de um personagem singular, a do estrangeiro chamado Gastão, de face equina como Fernandel, que, apesar do seu japonês lastimável e da sua falta de coordenação motora, ajuda, como voluntário no hospital e presta socorro a um paciente, Tsukada, que era amigo de Kiguchi, que se sente desesperadamente culpado por ter comido a perna de um soldado morto para sobreviver à fome, durante a guerra na Birmânia, quando atravessava a Autoestrada da Morte com Kiguchi. Gastão, que é católico (faz o sinal-da-cruz antes de comer) reza pelo doente moribundo, conta-lhe que muitos outros fizeram o mesmo em situações de desespero para sobreviver, e lhe restitui a paz antes de Tsukada morrer.

Endo parece insistir num ponto essencial nos caracteres literários que ele destaca, em Gastão, em Admirável Idiota, e em Otsu, em Rio Profundo, a saber, a simplicidade desnorteante da identificação com o Cristo compassivo.



Três grandes influências culturais do Japão estão na origem dos conflitos de Endo com o catolicismo e na fonte do conflito entre culturas, que repercute na adesão religiosa: 
1) a inexistência de um Deus único pessoal transcendente ao homem; 
2) a inexistência do senso do pecado e da culpa diante de Deus; 
3) o sentido da morte como um retorno à natureza.

O próprio Endo o expressa num de seus ensaios: 

“[…] o elemento na sensibilidade japonesa que desafia o cristianismo é uma tripla insensibilidade: a Deus, ao pecado e à morte”. 

Essa “absorção passiva, sem resistência, no todo; essa forma de panteísmo que não oferece mais que uma amálgama e uma extensão do indivíduo”  arrastou Endo, e outros, em direção à atração do vazio e do niilismo, propício ao suicídio. 
É então que ele se reergueu, reconhecendo a alternativa “grandiosa” oferecida pelo catolicismo. 
Em outras palavras, o solo religioso do Japão é animista, politeísta, holístico, absorvente, “natural”.  Endo se refere a essas influências com a palavra “pântano”. 
Para ele, o pântano é a região do lodo que recolhe a variedade dos elementos, os absorve, os aquieta em sua tepidez e os reduz à matéria informe; mas, paradoxalmente, acontece às vezes de ver desabrochar, aí, a flor do lótus.

Endo tentou superar o profundo conflito entre o catolicismo e essas influências que constituem a identidade japonesa a tal ponto que mesmo hoje pode-se dizer, que “um cristão japonês é sempre, em grande medida, um estrangeiro”. 

Endo não conseguiu resolver ou superar os seus dilemas religiosos-culturais. 
Não pode admitir que alguém seja capaz de permanecer um tempo na França sem voltar para o Japão mais magro, em consequência de um estado geral de angústia. 
Assim, desde os primeiros escritos até Rio Profundo, existe uma fricção evidente entre a maneira ocidental e a maneira japonesa de compreender o cristianismo. 
Nessa primeira fase a divergência é apresentada por meio de três figuras: 
  1. a do homem branco versus o homem amarelo, 
  2. a da forma côncava versus a forma convexa, e 
  3. a da incompatibilidade dos tipos de sangue. 

Fiquemos com a segunda forma. 
De acordo com Endo, toda a cultura japonesa, inclusive a religiosa, está contida nela mesma e voltada para si mesma:
ela não se abre para outras culturas nem para um Deus que transcenderia o homem ou a natureza. 

O cristianismo, ao contrário, e a cultura ocidental que dele deriva são convexos, isto é, abertos para fora, até um Deus transcendente. 
Não se pode estar ao mesmo tempo no côncavo e no convexo, e a relação entre cultura japonesa e religião cristã se faz, por isso, sob a escolha. 
Nessa fase, Endo escolheu viver como católico, e não como japonês, com as consequências psicológicas, e certamente religiosas, ligadas a essa escolha. 
Entre essas consequências psico-religiosas, pode-se contar a rigidez da justiça divina e a aniquilação de si mesmo diante da culpa, de que dão testemunho os missionários europeus que desertaram, os quais, ao contrário, invejam a despreocupação moral de suas mulheres japonesas.


Numa segunda fase, Endo consegue perceber que deve existir uma maneira japonesa de ser católico. Endo, nunca propôs “ajaponesar” o catolicismo ou mesclá-lo com o budismo ou o xintoísmo, precisamente porque essas posições religiosas são fundamentalmente antitéticas ao cristianismo. A maneira japonesa de ser católico, Endo a concebe como uma verdadeira humanização de Deus na pessoa de Jesus, seguido de perto por Maria e, na realidade, pelo conjunto de todas as Marias dos Evangelhos. Para Endo, com efeito, Jesus é a demonstração do Deus compassivo, misericordioso, próximo dos pobres, dos sofredores, dos fracos e dos pecadores. Jesus, psicologicamente, é como a mãe que, ao contrário do pai, não faz diferença entre os filhos nem impõe condições para reconhecê-los como seus.

A partir daí, não é mais necessário escolher entre o côncavo e o convexo: essa distinção
e outras, embora verdadeiras sob um ponto de vista, não são indispensáveis. Ao contrário, quando alguém pode abandonar-se à compaixão maternal de Jesus, pode também descer, de um modo criativo, ao que corresponde o solo morno da natureza e dele sair transformado, como a flor do lótus.

Alguns exemplos.
Gastão, em Admirável Idiota, rosto de cavalo, membros desproporcionados, andar desajeitado, comete ridículos enganos de linguagem com duplo sentido, corre atrás de cães asquerosos; em suma, não corresponde absolutamente ao estilo de gente de bem e se assemelha exatamente a um louco, separado dos comedimentos e conveniências sociais. Mas ele é, ao mesmo tempo, puro, inocente, esquecido de si, generoso até a loucura, pacificador dos inimigos, capaz de morrer e, talvez, de ser morto, em favor de quem quer matá-lo. 
A explicação? 
Gastão queria levar Cristo aos japoneses. 
Não o pôde fazer como padre missionário, por falta de inteligência. Fê-lo, então, como um católico sem qualidades.

Em Rio Profundo, Otsu é o personagem central: 
Bizarro como estudante universitário, que se afasta dos outros porque estuda e reza, enquanto os colegas de turma se divertem. 
Humano ao máximo quando se perde “como um porco” no corpo de Mitsuko.
Suspeito para os superiores religiosos da França por causa de suas dificuldades com o catolicismo europeu, vivendo fora de sua comunidade religiosa na Índia e, finalmente, vivendo e
trabalhando com as prostitutas e os cadáveres dos pobres nas margens do Ganges, até cair ferido de morte ao defender a sacralidade da cremação dos corpos contra a vã curiosidade de um turista fotógrafo. 

No entanto, Otsu é um padre, que testemunha, embora desconhecido, o Cristo pobre e compassivo. Feitas as contas, é ele quem tem razão, contra os colegas da universidade, contra Mitsuko, contra os superiores, contra os turistas, porque ele é um verdadeiro cristão que, como o Cristo, acolhe os mais fracos.

De um ponto de vista psicológico, 
qual é o encaminhamento da superação do conflito nessa segunda fase?  
O equilíbrio a que Endo chegou na segunda fase, pode ser compreendido mediante a referência ao conceito de amae muito próprio à psicologia afetiva do psiquiatra japonês Takeo Doi que apresentou ao Ocidente, em 1956, o conceito de amae, com o título
“Japanese Language as an Expression of Japanese Psychology”

Comparando-o com o conceito de amor (love), Doi insiste no aspecto passivo próprio de amae, isto é, o fato de “ser amado” (to be loved) por alguém significativo (em geral os pais), e não o facto de “amar” (to love) simplesmente. 

Segundo ele, o Ocidente, por influência da filosofia grega e do cristianismo, reforçou o sentido ativo de “amar”, a ponto de esquecer a pessoa que é o objeto do amor, enquanto a psicologia dos japoneses repousa no aspecto passivo que exprime o fato de “ser amado”. 

Reconheceu ele, no entanto, em estudos posteriores, que amae não indica um estado afetivo exclusivo dos japoneses, mas que, ao contrário, encontra-se em outras línguas, culturas e teorias psicológicas, conceitos e palavras parcialmente semelhantes. 

Etimologicamente, amae é o substantivo do verbo amaeru, que pode ser traduzido como “depender do, e confiar no amor de um outro”. A palavra tem a mesma raiz que amai, “doce”. E amaeru evoca o sabor de “doçura” que, segundo Doi, embebe as lembranças da infância de quase todos os adultos japoneses. 
O próprio Doi acrescenta que essa espécie de relação interpessoal, mesmo se tipicamente exemplificada pela criança que procura a mãe (e corre o risco de ser “estragada”), pode ser aplicada também ao adulto quando confia totalmente numa outra pessoa, pelo que a pessoa é ou pelo que ele espera dela. 

Para bem compreender o alcance do conceito de amae, sigamos a descrição que, nesse espírito, faz Kawai dos princípios “mãe” e “pai”:
“A função do princípio “mãe” é a de abraçar. 
Ela abraça cada coisa boa ou má, e segundo esse princípio toda coisa é absolutamente igual. Desde que são seus, todos os filhos são igualmente dignos do amor da ‘mãe’, e seu amor nada tem a ver com a personalidade ou a capacidade dos filhos. [...] 
Ao contrário, o princípio ‘pai’ está baseado na função de “separação”: 
toma e separa cada coisa; divide as coisas em ‘sujeito’ e ‘objeto’, bem e mal, em cima e em baixo, etc. 

Em oposição ao princípio ‘mãe’, de acolhimento igual a todos os filhos, o ‘pai’ faz distinção entre os filhos segundo suas capacidades e personalidades. 
No princípio ‘mãe’, todos os filhos são educados segundo a suposição ‘meus filhos são todos bons
filhos’, enquanto no princípio ‘pai’, os filhos são disciplinados segundo a norma:
‘meus filhos são apenas os que são bons’”
Parece, pois, que, se amae pode em geral referir-se aos pais, o conceito se relaciona sobretudo à mãe, que abraça seus filhos, ama-os incondicionalmente, julga-os todos bons filhos, mesmo se reconhece seus erros. 

É isso que Endo chega a propor como “cristão, japonês e escritor”, depois de ter analisado as oposições entre o catolicismo à ocidental e o catolicismo à japonesa: 
Deus é Jesus-mãe.

Há alguns anos, os pesquisadores do Centro de Psicologia da Religião de Leuven demonstraram que os crentes ocidentais conotavam o Deus do cristianismo de um modo complexo: 
sem dúvida como o pai que ordena e sanciona, mas mais ainda como a mãe que acolhe e protege, sendo seu conceito afetivo de Deus o de um Deus que exerce a função pai/mãe;
Os agnósticos privilegiavam as características maternas; 
os descrentes conotavam Deus tipicamente como um pai severo, que rejeitavam; se lhes fosse perguntado que Deus lhes seria conveniente, indicavam um deus com características inteiramente maternas.

Nos livros de Endo descobrimos uma dinâmica psicocultural diferente e específica: 
o Deus cristão que lhe convém é um Deus materno; 
este não suprime o pecado e a culpa, 
mas cobre-os com a incondicionalidade do amor materno e coloca-os no contexto mais geral da existência do mal, de que a mulher e a natureza são, aos olhos de um oriental, o depositário simbólico, da mesma forma como o são do bem. 

Essa percepção é explícita em Rio Profundo. 
Gastão e Otsu, 
homens, e não mulheres,
são testemunhas dessa dinâmica, como pessoas e seus atos. 

Parece, pois, que para Endo, a maneira japonesa de compreender psicologicamente o catolicismo difere da maneira ocidental europeia, na linha de uma percepção materna particular de Deus, elaborada a partir do conceito de amae. 

Seria necessário, conseguir equilibrar melhor a função simbólica do pai, tão essencial nas
fontes escritas e na experiência vivida do cristianismo, com a função simbólica da mãe. 
Dito de outra forma, 
seria necessário conseguir conciliar, no ser cristão e sobretudo católico, dois tipos de percepção: 
  1. a do afeto materno, e portanto da imanência, e 
  2. a da transcendência, que se ajusta bem com o corte introduzido pela função paterna.




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