terça-feira, 25 de abril de 2023

Café Amargo





Café Amargo, da autora Siciliana Simonetta Agnello Hornby, foi publicado em 2016, é uma escrita detalhada e carregada de factos históricos. Os factos históricos, são a principal personagem, mais do que a história familiar dos Sala e dos Marra – e até mesmo mais do que o romance clandestino de Maria e Giosué.

Com uma escrita envolvente, arrebata-nos a alma, espicaça-nos o pensamento, enriquece-nos o conhecimento e faz-nos pensar na evolução da sociedade, no muito que mudou, e no outro tanto cuja semente permanece adormecida mas assustadoramente pronta a germinar de novo, como por exemplo: o preconceito perante minorias, o racismo, novos tipos de colonialismo ( o petróleo, o gás natural, geopolítica, etc), o risco de novos conflitos mundiais (com o perigo acrescido de meios bélicos ainda mais potentes e evoluídos).

Conseguimos compreender o carácter fechado e intransponível dos sicilianos e conseguimos desculpá-lo, porque a miséria, a fome, a falta de trabalho, o abuso de poder por parte dos seus conterrâneos insulares e dos continentais, aliados ao poder da máfia siciliana, endurecem qualquer um que queira uma vida justa. 
Dos Fasci sicilianos à instauração do regime, das leis raciais à Segunda Guerra Mundial, a autora transforma a história e as escolhas nada óbvias de Maria na história de um segmento decisivo da Sicília e da Itália.

A autora dedica um capítulo a descrever a história da Sicília, a que chamou:
AS 3 INDÚSTRIAS SICILIANAS

"Não realizara [Ignazio Marra] os seus dois sonhos da juventude e da idade adulta:

Dividir os terrenos feudais nacionalizados na era dos Bourbon e os que haviam sido confiscados à Igreja pelos Saboia para distribuí-los pelos camponeses, vendê-los aos empresários agrícolas e dar-lhes a possibilidade de se juntarem em cooperativas e pequenas indústrias, ou seja, modernizar-se.
Nem conseguira alfabetizar os sicilianos para formar uma classe média de operários e empreendedores, professores, funcionários públicos.
Abandonada pelo Estado desde os motins de 1866, a Sicília tornara-se uma terra de bandidos e foragidos. O voto institucional levara a uma imprevisível revolução social:
A aristocracia dos antigos feudatários havia-se associado com os antigos arrendatários mafiosos, todos sedentos de poder e de dinheiro.
A Máfia infiltrara-se na classe média e nas profissões, assumindo as características industriais da burguesia: Ordem, Previdência, Circunspeção e Respeito. Com os nobres, partilhava o monopólio da Ordem, da Violência e do Trabalho.
Os agricultores acabavam assim trucidados, pelos proprietários das terras e pelos mafiosos.

Na Sicília, temos três indústrias:

A primeira, do ponto de vista económico, os nobres e os seus antigos arrendatários juntaram-se à Indústria da Prepotência: Atividades obscuras com o objetivo de evitar a atribuição de terrenos de antigos feudos, transferidos para os municípios com o objetivo de os distribuir pelos agricultores. E também pela exploração ilegal da população através da usura, pactos agrários a seu favor e contratos de arrendamento ilegais.
A segunda indústria, controlada pela Máfia Siciliana. Os bandidos reconhecem a sua existência e a sua autoridade. Negociar com a máfia é impossível. A miséria, violência e analfabetismo aumentam, e os sicilianos continuam a emigrar em massa.
A terceira, é a Indústria da Corrupção. Compreende as concessões estatais, o voto comprado, está presente na polícia, em todas as atividades civis. Ai de quem resista ou denuncie. Não apenas a mão da máfia e do nobre, mas também a do prefeito pousa com força nos ombros de quem ousa denunciar. A pena vai do afastamento à exclusão da sociedade civil. Depois, intensifica-se com o sequestro, perseguições aos familiares e com a morte exemplar." 




"Café Amargo", metáfora que caracteriza o percurso pessoal de amadurecimento e afirmação da alma feminina e, da determinação, coragem e resiliência de Maria ao longo do seu percurso de vida.
Maria é uma mulher de paixões, marcada também por vários sofrimentos que engole com altivez, como se fosse uma chávena de café amargo.

A ação vai acompanhando, com detalhes, fruto de um apurado trabalho de investigação documental, três momentos distintos da história da Sicília (e de Itália):
  1. o final do Século XIX quando os grandes latifundiários começam a ver chegar ao fim o sistema económico feudal que ainda persistia na ilha; 
  2. a I Guerra Mundial e o pós-guerra, a ascensão do Regime Fascista de Benito Mussolini; 
  3. a II Guerra Mundial e os violentos bombardeamentos que deixaram um rasto de destruição na Sicília, em especial na bela cidade de Palermo.

Os Marra, Ignazio Marra casado com Titina Tummia, são uma família tradicional com modestos recursos económicos, têm quatro filhos: Maria (a protagonista), Filippo, Nicola e Roberto.
E acolheram na sua casa,
Giosuè  Sacerdoti (filho de Tonino, um Judeu de Livorno, amigo de Ignazio que faleceu numa manifestação contra os latifundiários, e que antes de morrer, pediu que este cuidasse do filho), e Maricchia e Egle Malon ( Carlin Malon, amigo intimo de Ignazio, era pai de Egle e irmão mais velho de Maricchia, morreu de cólera, e Ignazio acolheu-as em sua casa). 
Ignazio casou-se com Titina Tummia (muito mais jovem que ele e originária de uma família nobre de barões, que nunca viu com bons olhos esta união matrimonial) e vivem uma sólida relação amorosa que os faz enfrentar juntos todos os obstáculos que vão surgindo, inclusive, o facto de Ignazio, apesar de ser um excelente Advogado, ser muitas vezes ignorado por potenciais clientes devido à sua visão política socialista.

" (...) embora devesse dar prioridade à instrução dos filhos varões em relação à sua adorada filha Maria, encorajava-a a considerar-se igual a qualquer outra pessoa e a fazer-se respeitar, numa realidade em que era impensável as mulheres terem direito a voto."


Os Sala, são uma família rica e influente, proprietários de minas de Enxofre e de um vasto património, e irão ficar ligados aos Marra através do casamento entre Maria Marra e Pietro Sala, que se apaixona à primeira vista pela bela jovem que vê pela primeira vêz em casa do pai, Ignazio, quando ali se dirigiu para tratar da compra de uma propriedade.

É um romance histórico que nos traça o percurso de vida da protagonista - Maria - uma mulher forte, determinada, e que sempre lutou para conciliar da melhor forma a rígida tradição cultural da Sicília que secundariza o papel da mulher, afastando-a de questões como a cultura ou a política, com a sua mentalidade mais aberta, o seu espírito naturalmente curioso, a sua paixão pela música e pelo conhecimento em várias áreas, fruto dos princípios transmitidos pelo seu progenitor - Ignazio Marra, um Advogado socialista fiel à causa política que abraçou.

"Vivemos numa realidade em que o abismo entre ricos e pobres é inultrapassável:
O Estado é considerado inimigo, a ordem pública é mantida pela máfia através do abuso e da violência; os políticos não têm fé nem objetivos que não sejam os seus interesses económicos: vendem-se por um lugar no governo. Os pobres, explorados pelos patrões e pela máfia, passam fome, e a sua única salvação é a emigração.
Somos um povo demoníaco."


Maria é a filha mais velha de um casal siciliano que se casou por amor. 
Os seus pais sempre educaram os seus filhos na defesa da igualdade de deveres e direitos e, por isso, quando Pietro, homem bem mais velho (Maria tem apenas 15 anos e Pietro 34), herdeiro de uma família abastada, se apaixona à primeira vista por Maria e pede a sua mão em casamento, esta é quem decide se deve aceitar a sua proposta ou não. Com pouco mais do que quinze anos, entrega-se a um matrimónio que trará mais desafogo à sua família e dar-lhe-á asas para voar, crescer como mulher e como amante. 
Ao lado de Pietro aprenderá as artes da sensualidade, do sexo, do amor, e absorverá como uma esponja, tudo o que o seu marido lhe transmitir sobre a história do seu país, de cidades como Roma, Nápoles, Modena ou Milão e de artefactos que o mesmo coleciona com avidez.
Assim, primeiro guiada pela mão do seu marido e gradualmente de forma independente, uma menina nascida no final do século dezanove floresce, torna-se uma mulher que brilha por si mesma, pela sua beleza abrasadora, pelo carinho e amor que devota aos seus, pelas obras que põe em marcha e pela justiça com que lida com tudo e com todos. 
É uma protagonista que nos conquista com uma facilidade tremenda, por quem torcemos do princípio ao fim e que queremos que seja feliz sempre. Junto dos seus filhos e junto daquele que a amou desde que uma pequenina Maria lhe pegou na mão e consolou um rapazinho derrubado pela dor de ter perdido o seu pai.

Assumindo-se como mulher de pleno direito, Maria toma decisões pouco comuns para a época. Mantendo as obrigações do seu casamento, a jovem sente liberdade para explorar os verdadeiros elos que a unem a Giosuè, que considerava como um irmão mais velho. Começa assim uma ardente história de amor que percorre mais de vinte anos de aproximações, separações e encontros clandestinos, tendo como pano de fundo uma sociedade em mudança.
Maria e Giosuè, que virão a descobrir que entre ambos existe uma relação que vai bem mais além da fraternidade, viverão um amor sincero, forte, e que irá enfrentar duras provas como a distância física, as convenções sociais ( Maria é ainda uma mulher casada e mãe de família), o horror da II Guerra Mundial e o racismo e anti semitismo bem marcantes aos quais Giosuè não passará incólume porque era judeu. Apesar de ter  começado por se afirmar enquanto Militar e consultor do regime Fascista, a verdade é que tudo mudará na sua vida com o surgimento do anti-semitismo muito por contaminação do regime Nazi, com o qual o Fascismo irá compactuar.

"Conhecer e admirar o que é belo contribui para o bem-estar das pessoas.
A beleza é um elemento fundamental da vida, por isso é necessário partilhá-la.
(…)
A Basília e o Coliseu desiludiram-me[Maria], são construções demasiado grandiosas para o meu gosto. Prefiro os edifícios mais pequenos.
- Nem sabes como fico contente por ouvir a tua opinião, detesto-os!
Em vez de edifícios majestosos construídos para intimidar o povo, prefiro uma joia do tamanho de uma unha, fruto de meses de trabalho.
Casaria contigo só por esse teu comentário."


Pietro Sala (um bon vivant, viciado no jogo da roleta e em cocaína, habituado a uma vida luxuosa, a gastos dispendiosos, ao convívio com a alta sociedade Europeia, a coleccionar arte, animais e plantas exóticos), e aqui surge a reflexão sobre a condição da mulher na sociedade ainda feudal da Sicília. 
Maria, que sempre sonhara formar-se e ser professora, aceita casar-se com Pietro, um homem mais velho que ela, que não ama, sentindo que, assim, libertará os pais do peso do seu sustento, sendo certo que estava disposta a trabalhar para sustentar os estudos dos irmãos e até de Giosuè (o seu melhor amigo, e que foi criado como se de mais um filho da família se tratasse).
Pietro virá a revelar um lado negro, que apenas vai sendo revelado ao longo do livro, e que, curiosamente, dará a Maria a oportunidade de se afirmar como uma mulher forte, lutadora, responsável e merecedora do afecto e apreço do sogro Vito, assumindo o papel de administradora do património dos filhos Anna, Vito e Rita, entrando na gestão directa dos negócios da família Sala, nomeadamente, das Minas de Enxofre.
Tudo isto, para evitar que Pietro, devido aos vícios que tinha, perdesse todo o património e levasse a família à ruína.

"Ao longo dos anos[Pietro]tivera aventuras com mulheres casadas e solteiras, o que não lhe agradara, mas sabia que aquelas traições aconteciam e que uma mulher sábia devia fechar os olhos àqueles deslizes, que, mais cedo ou mais tarde, acabavam.
A não ser que afetassem a união familiar, as aparências e as finanças da família.
(…)
Foste sensata em não enfrentar Pietro, minha filha.
O teu pai também teve amantes, discretamente.
Eu nunca o traí; fui sempre sua esposa, a sua mulher mais importante e a melhor.
Por isso, tolerei.
Se descobrisses que o teu marido trata as suas amantes como tuas iguais, estarias no teu direito de expulsá-lo da tua cama e de procurar outro.
Ele deixaria de ser digno de ti.
Se eu tivesse traído o teu pai, nunca lhe teria dito, teria mentido, como ele sempre fazia."


Irmãs de Pietro Sala: Giuseppina (Baronesa Tummia, por ter casado com Peppino Tummia, irmão de Titina), Sistina e Graziella, nunca aceitam Maria, que consideram inferior socialmente, e que lhes causa inveja devido ao facto de,  por ser uma pessoa bonita, inteligente, naturalmente sensível e bondosa, conquista as boas graças do Sogro - Vito Sala - e aprende até a lidar com Anna, a sogra que se encontra mentalmente doente. Estas 3 irmãs serão firmes oponentes de Maria, a qual sempre irão hostilizar e criticar abertamente, não escondendo o quanto a odeiam.

"Existem inúmeras mulheres que trabalham por necessidade, porque o seu espírito disso precisa ou – que é o melhor – para contribuir para o bem social…
Sabemos que um número crescente de mulheres tem de renunciar à alegria de formar uma família e, muitas vezes, sustentar com o trabalho a si mesmas e a outros; sabemos que muitas pessoas veem o trabalho da mulher fora do âmbito doméstico com olhos hostis, quase como  se hoje fosse possível passar sem ele nas fábricas, nas escolas e nos hospitais. Como se essas mesmas pessoas estivessem dispostas a dar pão e teto às mulheres desprovidas de meios e privadas de trabalho que não têm ninguém que as possa manter.
É necessário desenvolver um sentido de solidariedade feminina que torne mais sereno e apreciado o sacrifício e as dificuldades daquelas a que chamaria abelhas operárias, sacrifício gravíssimo para aquelas – e são muitas – que teriam dotes necessários para se tornarem abelhas-rainhas."



Especialmente marcante, duma violência extrema, é o retrato que a autora faz da vida nas Minas de Enxofre, em que relata as condições de vida desumanas a que são sujeitos os aprendizes de mineiro, que vêm mesmo a vida encurtada devido a tal facto e que nos mostra uma realidade bastante cruel que resulta de uma visão ainda feudalista da sociedade Siciliana, ainda herdeira de outras eras mais recuadas.

"A ignorância não é um pecado. Apenas se torna um pecado quando se insiste em permanecer ignorante."




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