sábado, 8 de abril de 2023

Não é inútil beijar as pedras









Todas as manhãs saía da solidão do bolor 
e vinha para a rua 
pintado de carne de fantasma.

E o espanto era que eu não ficasse esfarrapado nas árvores 
- nevoeiro com cabelos.

O espanto era que eu não atravessasse as paredes 
mesmo ao lado das portas.

O espanto era que eu continuasse fugidiamente real 
nos olhos dos outros.

Eu que muitas vezes chorava, muitas vezes ria, muitas vezes cantava 
- mas só para dar a ilusão de boca ao silêncio.

Eu, reflexo nas montras 
onde as mulheres de chuva me acariciavam com mãos de vidro.

Eu, corpo de fumo de um incêndio que não ardia.

Eu, a solidão das palavras.

Depois vieste tu.
Bateste à porta. Abriste a todos os alçapões.
Apagaste todos os frios. Varreste as raivas dos recantos.
E num despir de lágrimas disseste-me:
"Toma os meus olhos, são de carne mágica.
Vê-te nos meus olhos para seres real,
Abre-te nos meus olhos tão de espelho doido.
Veste-te dos meus olhos para além dos poços."

E eu pus-me a cantar a alegria do Segredo Novo.

(Não, não é inútil beijar as pedras.)


José Gomes Ferreira




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