sexta-feira, 2 de setembro de 2022

CHUVA DOMÉSTICA









 Concede o teu perdão àquele que foste ontem 
e não te conhece hoje debaixo do chuveiro.
As casas não sabem nada de nós próprios 
e são paredes de hábitos,
casulos seculares.
Há vinte anos tu eras diferente, as casas não sabem nada,
dizia o outro e bem,
muito menos o tu que foste ontem sobre o tu que és hoje 
debaixo do chuveiro.

O que tu foste ontem não tem nada que ver com essa barba grossa,
com essa dor no dedo grande do pé
e que te dizem ser gota, e essa excitação precoce 
que te vem da memória 
e começou agora, extemporânea e ridícula, quando o dedo te dói 
e o tempo, como se fosse um século, tem um dia de vida,
uma noite, e falavam do ébola a invadir a europa.

Toda esta chuva minúscula que te caí na boca,
todo este desabar de água controlada e tépida te leva a esquecer 
o que é uma epidemia, foi ontem?
Que estranhas criaturas, hiper-protegidas,
desfilaram ontem como um sonho e hoje de manhã 
são um como um pesadelo?
A verdade é só uma, o que tu foste ontem
já não te conhece.

Não consintas que deus te sobreponha os dias 
aos mistérios do tempo.
Exige a cada minuto o seu próprio prazer e desilusão.
Por alma dos que lá tens coça o dedo grande do pé 
e fecha-me essa torneira. Tu ainda não reparaste,
mas a casa de banho é agora um lago.


Armando Silva Carvalho
in, A Sombra do Mar




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