quarta-feira, 16 de junho de 2021

Dançando com o espantalho







Tenho dito ou insinuado aqui que amadurecer deveria ser visto como algo positivo e que envelhecimento não é revogação da individualidade. Um dos motivos de nossas frustrações, homens e mulheres, é vivermos numa cultura que idolatra a juventude e endeusa a forma física além de qualquer sensatez. Se maturidade é fruto da mocidade e velhice é resultado da maturidade, viver é ir tecendo naturalmente a trama da existência. Processo tão enganosamente trivial para aquele que o vive, tão singular para quem o observa. Tão insignificante no contexto da história humana. Seguindo esse fluxo, vestidos com nossas circunstâncias, carregando a bagagem que nos foi dada e a que fomos adquirindo, navegamos. Escolhemos algo do roteiro, desenhamos alguma coisa nas margens, acompanhados por presenças positivas mas também pelo monstro da nossa dificuldade de viver bem, sempre pronto a liquidar conosco. Não nos damos sempre conta dele: faz parte da nossa cultura, nossa educação, da mídia, da personalidade. Está nas revistas, na mente dos que nos rodeiam e dos que amamos, está dentro de nós. Cresce e prospera na medida em que não temos o costume de lidar com ele. O inimigo é variado, tem muitas cabeças. Somos muitos, dizia o demônio que possuíra um infeliz na literatura cristã. 

Todas elas nos controlam e inibem: a imposição e aceitação de modelos inatingíveis; a não-apreciação de si; a submissão a preconceitos, a ausência de valores pessoais; a frivolidade nos relacionamentos afetivos mais variados. O consequente temor do processo que em lugar de evolução e crescimento nos assusta como aniquilamento. 

Precisamos superar a ideia de que estamos meramente correndo para o nosso fim, num processo de deterioração e apagamento. Esse é o nosso fantasma mais destrutivo, pois se alimenta com nosso terror da morte, e cresce desmesuradamente porque nosso vazio interior lhe concede um espaço extraordinário. Se quisermos, mais que sobreviver, crescer enquanto humanos e pensantes, esse relógio sobre a mesa-de-cabeceira ou no pulso – especialmente o relógio em nossa mente – deve ser apenas aquilo que é: instrumento para medir e coordenar as atividades cotidianas. 

Para marcar as fases com seus encantos e limitações, sua riqueza e suas privações, mas de modo geral significando crescimento, não mutilação. A cada transição executamos nossos rituais, perdemos alguns bens e ganhamos outros, alguns duramente conquistados.

Falo dos bens de dentro.

Esses que nem o banco fechando nem país falindo caducam; esses que nem o amado morrendo a gente perde; esses que na dor nos iluminam, na alegria nos ajudam a curtir mais, e no tédio – quando tudo parece tão sem graça – agitam correntes submersas de energia mesmo se a superfície parece morta. Quando pensamos que tudo acabou, que nunca mais teremos alegria ou emoção, tudo isso que estava guardado e é bom emerge em plena vigência e força. É desses tesouros que eu falo: eles podem vencer o que nos paralisa. Hão de superar essa cultura do aqui e agora, do aproveitar, do adquirir, do estar na moda, do estar por cima, do estar-se agitando e curtindo sem parar. Na infância tudo é sempre agora.

Estamos ocupados em viver. Aos poucos se distinguem antes e depois, talvez pela separação momentânea de uma presença reconfortante que vai e retorna num tempo ainda não medido. A ausência se torna real num lampejo quando essa pessoa volta.”Ué, você não estava aí?” Por fim emergimos daquelas águas mornas e percebemos que existimos – no tempo.

Estamos em processo, em viagem, estamos em curso. O limbo assume nitidez e começa a nossa história. Quando menina eu gostava de levantar ao amanhecer e saborear o proibido, pois criança tinha de ficar quieta na cama até a mãe chamar. Ia até a janela e abria, devagar para não fazer ruído. Como era mágico o jardim naquela hora. Pleno da noite que terminava, pleno da espera pelo dia que ia começar.

Já naquela época a alternância dos dias não me parecia hostil, mas uma espécie de feitiço que provocava transformações: o casulo com a promessa de asas cintilantes. Por que necessariamente agora, com corpo agrandado, pele menos suave, rugas e experiência, estarei em declínio e não em natural transformação – como tudo o mais? O que é bonito num bebê desagrada num adolescente; o que num jovem deslumbra, numa pessoa madura pode ficar deslocado; assim como na velhice – se ela não for uma caricatura da juventude -, encanta o que é próprio dela. 

“Mas o que pode haver de positivo 
em ficar velho?” 
perguntaram-me um dia.
 
As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. 
Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro. 
Não será preciso nem mutilar-se com cirurgias além do razoável, maquilhagem exagerada, roupas extravagantes.., nem ocultar-se porque estamos maduros, ou já estamos velhos. Se a transformação que se efetua em nosso corpo é inexorável, sua velocidade e características dependem de genética, cuidados, saúde, vitalidade interior também. Com o inexorável só há uma saída, e não será fugir: é vivenciá-lo do melhor modo que posso. 
A questão não é que a vida fique suspensa, mas que a gente viaje com ela, em lugar de paralisar-se e ficar atrás.
Se não formos demasiado tolos, gostaremos de nossa aparência em todos os estágios. 
Olhar-se no espelho e dizer: “Bom, essa sou eu”. Nem extraordinariamente conservada nem excessivamente destruída. Estou como se está nesta fase. E se eu sou assim, gosto de mim. Sou a minha história. Pois não somos só nossa aparência; mas somos também nossa aparência. Negá-la é negar o que, afinal, nos tornamos. Por isso, se é melancólico negligenciar a aparência, é patético querermos parecer ter 20 anos aos 40, ou 40 aos 70. Deveríamos querer ser belas, dignas, elegantes e vitais pessoas – de 60 ou 80 anos. Felizes, ainda, aos oitenta anos.

Emprestaram-me um livro onde estava sublinhada a frase: a meta da vida é a morte. 
Bem, eu acredito que o final da vida é a morte, mas que a meta da vida é uma vida feliz. Palavras gastam-se como pedras de rio: mudam de forma e significado, de lugar, algumas desaparecem, vão ser lama de leito das águas. Podem até reaparecer renovadas mais adiante. Felicidade é uma delas. Banalizou-se porque vivemos numa época de vulgarização de grandes emoções e desejos, tudo fast food, prêt-à-porter, pronto para o micro-ondas, fácil e rápido… e tantas vezes anêmico. Se por encantamento e profissão escolhi o território das palavras, sei o quanto algumas se contaminam pelo uso e se tornam agressivas ou contraditórias, têm ares de ironia ou de ingenuidade. Tornam-se confusas e ineficientes, prestam-se a mal-entendidos ou clareiam mais o significado. Conheço um pouco o modo como se apoderam das nossas experiências e lhes dão rostos, roupas, ares que nem tínhamos imaginado. Gosto das coisas – pessoas e palavras – desconcertantes. Seus contornos imprecisos permitem que a gente exerça o direito de refletir e de criar em cima delas. Mas algumas palavras e circunstâncias me assustam quando espio por trás de seus sete véus.

Muitas revestem as transformações de nosso tempo, mudança de padrões de comportamento, progresso e avanço, mas também sombra e estéril angústia, desperdício. Algumas têm a ver com ideais que não só raramente atingimos, como, obtidos, pouco têm a ver com liberdade e com felicidade. O curso do tempo significaria me tornar cada vez mais completo, se eu não carregasse comigo o preconceito fundante de nossa época: só a juventude é bela e tem direito de ser feliz, a maturidade é sem graça e a velhice é uma maldição. A idade madura não precisa ser o começo do fim, idade avançada não precisa ser isolamento e secura.

Podem-se fortalecer laços amorosos, familiares, de amizade, variar de interesses, curtir melhor o gozo das coisas boas. Existir é poder refinar nossa consciência de que somos demais preciosos para nos desperdiçarmos buscando ser quem não somos, não podemos, nem queremos ser. 

“É assim, o tempo: devora tudo pelas beíradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação.” (O ponto cego, 1999)

Acompanhando-me neste livro o leitor me ajudará a desenovelar o tempo refletido, o tempo pensado, o tempo odiado e temido, o tempo conquistado. Por que teremos tanto medo dele? Por que, em que momento decidimos que ele será ameaça e não promessa? Ou: quando nos ensinaram a pensar assim… e por que aceitamos isso? Vivemos numa civilização que nos concedeu mais tempo mas detesta a passagem do tempo. “Você afirma que o tempo não existe… então, como escreve tanto sobre ele?”, pergunta a jornalista. Ela tem – e não tem – razão. Ele tem sido pano de fundo ou até personagem de obras minhas. Afirmando que ele não existe quero dizer que não existe como algo determinante de minhas crenças ou pessimismo, se eu não quiser assim. Não é uma poderosa entidade externa que a partir de certa idade (marcada aleatoriamente ou pelas organizações mundiais de saúde) me impele montanha abaixo sem que eu possa reagir. 
A gente pode reagir de muitas maneiras positivas: assumindo e apreciando cada fase de si; não se resignando ao pensamento massificado nem desistindo assim que as rugas se instalam; jamais caindo na falsa rebeldia que nos transforma numa caricatura de jovem.
Alguns conceitos vigentes sobre as alegrias possíveis na maturidade são patéticos. 
Uma mulher de 65 anos, independente, comprou um apartamento novo. Os comentários que escutava eram estimulantes, mas alguns a deixaram desconcertada: 
“Você, com esse belo apartamento agora, deve ter homens aos montes.” 
“Perto de seu edifício novo abriram uma academia de ginástica, moderna. Agora certamente você não terá dificuldade em encontrar garotões.” 
Nesse patético reino da futilidade, esses conceitos não mandam viver, mas congelar-se. Não propõem uma construção de valores positivos, mas a semeadura de uma vegetação rasteira de tolices. O tempo será aquele ogro que devora criancinhas, e os momentos de crise vão nos jogar de um lado para o outro como bonecos de trapo, seres humanos empalhados. Se meu olhar confere sentido ao real, também ao exterior, posso declarar que o mundo tem lugar para mim independentemente de minha beleza física ou aparência e idade. Mas se meu olhar enxergar tudo pelas lentes da superficialidade mais tola ou cínica, devo arrumar as malas e me recolher antes, bem antes da plenitude da maturidade. 

Como tantas coisas mais, viver vai modificar meu corpo. Sobre a minha alma vai exercer apenas o poder que eu lhe conceder. Só se permitirmos esse nosso companheiro mais íntimo – o tempo no qual viajamos – se tornará nosso carrasco.

Passaremos a nossa existência amarrados a um espantalho que em lugar de afugentar aves daninhas inibe a nossa possibilidade de voar. O jeito é virar o jogo. Aceitar como natural o que é natural, acolher bem o que não pode ser modificado. Há todo um leque de boas razões para viver bem e de coisas instigantes a descobrir, que antes 94 eu talvez não tivesse disponibilidade nem sabedoria para sequer tentar.

Somos tão frívolos que nos tornamos incapazes de amar a vida tal como nos é dada e conquistada em cada estágio. Somos dominados por uma inquietação que não é aquela positiva que nos leva a produzir, a nos abrirmos para novidades, mas agitação infantil de quem nunca se contenta porque não se encontra. Por isso se fragmenta e se perde. Se estamos fora dos padrões – convencionados pelos outros (nem sempre reais nem sempre muito respeitáveis) – por sermos muito grandes ou muito gordos ou muito velhos ou menos requintados ou menos ricos e menos poderosos, não nos permitimos ser naturalmente desejáveis e amorosos. Portanto, não nos deixamos ser amados. 

Um corpo maduro ou velho pode ser saudável e harmonioso assim como um corpo jovem pode ser doentio ou disforme.

Mas compararmos um corpo maduro ou velho a um corpo na plenitude do seu frescor é infantil e cruel. Ter mais tranquilidade, mais conhecimento e fortalecer conceitos próprios, em suma, ser um indivíduo, exige reflexão, exige firmeza e individualidade. Mas tais conceitos são antiquados. Fora de moda. Somos constantemente convocados para o que se chama aproveitar a vida – o que quer que isso queira dizer. Quando eu era jovenzinha escutava (ainda hoje às vezes) coisas como: 
“Não casem cedo, primeiro é preciso aproveitar!” 
Isso valia só para os rapazes: as meninas preparavam-se para ser submissas e gentis. 
Hoje escuto: 
“Não me inventem de ter filhos logo, primeiro aproveitem!”

Eu mesma não saberia dizer o que penso dessa expressão, até porque não a emprego. O que sei é que aproveitar não há de ser essencialmente adquirir, comprar, gozar, ter, viajar, dançar, transar, consumir. Tudo isso faz parte, e é ótimo, mas o que será exatamente esse aproveitar?

Para alguns, estar sempre na moda, ainda que o modelo oferecido esteja totalmente além (ou aquém) da nossa mais remota possibilidade. Para outros, ter materiais de consumo que não combinam com seu próprio desejo. Atrelados como animais indefesos a idéias que nem sequer aprovamos, somos vítimas de fantasias criadas e alimentadas pela mídia, pela indústria, pela moda, pelo comércio – que nos quer vender essas mercadorias iconizadas, valorizadas sobre todas as coisas: a beleza do momento, e a eterna juventude. O horror da diferença física está tão disseminado que não é incomum, indagando sobre alguma pessoa, ouvirmos a resposta no mínimo peculiar (acompanhada de um gesto significativo): “Como vai sua filha?” “Está goooooooooorda!” “E como está Fulano?” “Bom, este está imenso!” Não lhes ocorre que posso querer saber se a pessoa está viajando, se teve mais um filho, concluiu os estudos, está doente, ou alegre, que se aposentou, que voltou a se casar. 

Nossa obsessão atual é, antes mesmo de dinheiro e posição social, a aparência física. Então viver não é avançar, mas consumir-se e definhar. No entanto, faz parte de crescer que na infância meus ossos se alonguem, que meu sapato não seja mais tamanho 25. Faz parte de crescer que na maturidade o corpo mude e siga se transformando mais. 96 Faz parte do processo da vida, não da morte, que aos 60,70, 80 anos meu andar seja menos ágil, minha pele enrugada, meu corpo menos ereto, meus olhos menos brilhantes. Mas não faz parte que eu me considere descartável e me oculte na sombra sem direito a me movimentar, agir, participar ativamente – dentro de minhas naturais limitações. 
“Eu não vou à piscina há muitos anos, imagina se vou deixar alguém ver o meu corpo do jeito que está!”
 Procurando-se tal como era vinte ou quarenta anos atrás, quem assim fala terá a sensação de que não existe mais. De que a pessoa do espelho é não uma continuação daquela anterior, mas uma traição da natureza.
Independentemente de genética, possibilidades reais, idade, estamos sempre frustrados porque não somos mais louros, mais morenos, mais magros, mais altos, mais atléticos, não temos pele mais lisa, olhos mais sedutores. Por que razão aceitamos e cultivamos a ideia patética de que só a juventude é boa e bela, com direito de ousar, de renovar, de amar?

Direito de ser, de ter espaço? Boa parte dos nossos sofrimentos (falo dos dispensáveis) vem do fato de sermos tão infantis. Além da dor pelo que não somos fisicamente, sofremos pelo que ainda temos de fazer: Comprar todos os produtos. Frequentar todos os lugares da moda.

Sobretudo: nunca sossegar, nunca se contentar, nunca se aceitar. Parar para pensar, nem pensar: seria doloroso demais.

Isso não é sinal de uma mente inquieta, mas de uma alma precária. 
Isso não é viver a vida, muito menos aproveitá-la. 
Da mesma forma não se para de repente no meio dessa corrida para só então, subitamente, ter a consciência de que se existe como um ser humano complexo, com trajetória e destino. 
Não convocamos de repente, segundo nosso capricho, a hora de amar, hora de ser decente, generoso, de refletir, de olhar para dentro de mim e dos que vivem comigo. 

Hora de me questionar. 
Hora de mostrar aos filhos algo do que penso, hora de ser, com meu amor, um companheiro e cúmplice leal. Não funcionamos assim. Nossas fases não se compartimentam em diques e represas: são fluxo, água corrente. Portanto a hora é sempre. Mas tem de ser natural, tem de fazer parte do convívio, não ser um instante inserido no cotidiano como um corpo estranho quando estamos inquietos ou culpados. O amor que dialoga é um hábito. Se nunca exercido, não produzirá inesperadamente uma fruta madura e boa. Mesmo na sexualidade, apesar do alarde, da liberação e da incrível multiplicação de informações (a maioria bastante questionáveis), continuamos muito primários. Acabamos nos submetendo à obrigação de sermos sexualmente fantásticos (quase sempre mentira e empulhação por insegurança), mas como seres humanos possivelmente seremos precários. Se a mídia me oferece como ser feliz na cama – ou fora dela – em dez lições a preço módico, talvez fosse bom analisar e concluir que isso é engodo, que a felicidade amorosa não vem do desempenho, mas da ternura que aprimora e intensifica o desempenho.

Precisaríamos aprender a lutar contra os modelos absurdos; a descobrir quem sou, do que gosto, como gosto de ser – como fico mais feliz. 
Isso não está nas revistas, na televisão, nos palpites dos amigos: é íntimo, pessoal, intransferível. 
Cada um o precisa entender e construir. 
A felicidade é assim: cada um, a cada dia, aceita a que o mercado lhe oferece… ou determina a sua.


Lya Luft 
in, “Perdas e ganhos”




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