sexta-feira, 30 de outubro de 2020

D'este viver aqui neste papel descripto

 





“Coitados, pensavam que eu gostaria de ler histórias de pessoas sem contrastes, em que os bons são sempre bons e os maus sempre maus, e a bondade e a maldade se acham divididas por uma muralha da China bem definida, e ainda bem, para sabermos de que lado convém estar. Mas não...“

António Lobo Antunes
in, D'este viver aqui neste papel descripto

"Se és diferente de mim, não me diminuis, enriqueces-me" 
Saint-Exúpery

"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto."
Jorge Luís Borges


Trecho da apresentação da coletânea escrito por Maria José e Joana Lobo Antunes:

"As cartas que aqui se leem são transcrições integrais dos originais, apenas com a correção de gralhas e actualização ortográfica. Decidimos eliminar alguns nomes, usando letras que não as iniciais, para não ferir susceptibilidades das pessoas referidas e de suas famílias. [...] 
Julgamos que o interesse destas cartas vai muito além da identificação de todas as citações, poemas, livros e autores de que nelas se fala, e damos espaço ao leitor para as descobrir se assim entender. [...] 
Este é o livro do amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas. 
O resto é nosso. [...]
As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos na privacidade de sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de Guerra Colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém. Não vamos aqui descrever o que são estas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma diferente, seguramente distinta da nossa.
Mas qualquer que seja a abordagem, literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é extraordinária em todos os aspectos. [...] 
A escolha de as publicar não é nossa: é a vontade expressa de nossa Mãe, destinatária e conservadora deste espólio até há pouco tempo.
Sempre nos disse que as poderíamos ler e publicar depois de sua morte, e esse momento chegou agora." 
Maria José Lobo Antunes
Joana Lobo Antunes
Lisboa, Março de 2005

A correspondência inicia-se em 07.01.1971 e encerra-se em 30.01.1973. 
Seu conteúdo relata a saudade de António Lobo Antunes, suas leituras (romances e poemas), as influências culturais, o nascimento da filha (Maria José), os lugares pelos quais vai passando, na geografia do exílio: Ilha da Madeira, Luanda, Gago Coutinho, Chiúme, Ninda (as Terras do fim do mundo) e Marimba.

No início de 1961, em Angola, começou uma guerra pela independência daquela, então, colónia portuguesa, e que em 1962 e 1963 se propagou à Guiné e a Moçambique. 
A guerra haveria de acabar em 1974 e as colónias tornaram-se definitivamente independentes em 1975.
Durante 14 anos foram mobilizados 300 mil jovens portugueses. Entre eles, o médico, António Lobo Antunes, entre 1971 e 1973.  

Este livro é uma viagem pela experiência humana em aspectos que suprimem, de forma nítida e contundente, as diferenças supostas entre a Memória do real e a sua ficção.
D’este viver aqui neste papel descripto: cartas da guerra (2005),  reúne a correspondência enviada por António Lobo Antunes à sua esposa Maria José, aproximadamente, 300 cartas. 
Foram escritas durante dois anos, no início da década de 1970, durante o período da Guerra Colonial em África, por um médico (combatente e participante de um batalhão operacional) à sua esposa. 
Tais cartas relatam o seu quotidiano, as suas emoções, as suas impressões, o seu testemunho, e servem como verdadeiras declarações de amor à mulher amada. 
É um conjunto de cartas reais, enviadas por um homem, um médico com 28 anos, directamente do “campo de batalha” para a sua amada – muito amada – esposa com a qual se casara 6 meses antes, e de quem se despedira, temporariamente, ao ter de cumprir o serviço militar obrigatório (durante o regime fascista e salazarista português), deixando-a grávida da primeira filha do casal, impedido de acompanhar a gestacao, o nascimento e os primeiros meses de vida da filha. 
"Porque não nos deixam ser felizes? 
Porque nos tiram assim alguns dos melhores anos da nossa vida?"

Assim, quando, alguns anos depois de ter estado no “campo de batalha”, o jovem médico português, António Lobo Antunes inicia a sua carreira literária, seus temas são a guerra, a solidão, a reconstrução do passado por uma memória fragmentada e o choque que a morte produz nos homens e nas sociedades, o trauma da guerra, o exílio e a condição humana, marcada pela ausência de pertencimento e pelo isolamento, diante das transformações sociais e da incapacidade de interação com o outro. 
Seus romances, embora se baseiem em dados considerados factuais e verídicos, buscam, ficcionalmente, discutir como a sociedade portuguesa foi conduzida à guerra, como se comportou durante o período e como se reorganizou após o fim do conflito. Propõe, ao longo das últimas três décadas, uma profunda reflexão sobre a história recente de Portugal e seus desdobramentos na organização cultural, política e social do país, e sobre o seu reposicionamento na nova ordem mundial. 

Os seus personagens emergem das trincheiras de guerra, do horror letárgico de memórias traumatizantes, de relatos sombrios e confusos sobre a própria identidade e refletem as dificuldades em se fazer compreender pelos outros e de incorporar, novamente, os parâmetros sociais estabelecidos, após a experiência do exílio, da repressão salazarista e da morte pressentida.


"(...) No meio disto tudo começam a sobressair alguns personagens lendários. Um dos mais representativos é o Major, o segundo comandante, gordo e grande, senhor de máximas lapidares. Uma delas, que o retrata por inteiro, é a seguinte: 
«criada em que o patrão não se ponha, nunca chega a criar amor à casa». Como prova, o facto de a sopeira se ter ido embora assim que ele veio para o Ultramar. A essa criada («muito boa») ofereceu ele umas meias pretas («nº. 9, com pontos e vírgulas») com a condição de ela as vestir à sua frente. Chama a isso «acção psico-social» e diz que melhora imenso os almoços. À criada anterior deu ele, num momento de euforia, uma palmada no rabo, dizendo ao mesmo tempo "dá cá uma beijoca». A serva saiu aos gritos, voltou no dia seguinte com a mãe indignada, e a mulher do major esteve um mês sem lhe falar. Divide o acto segundo o qual a face do homem entra em contacto com o baixo-ventre da mulher em três categorias «picotage», «chaffurdage e «toute la langue», e é capaz de beber 3 garrafas de vinho rosé ao jantar e de cantar toda a Madame Butterfly. Gosta de ver as raparigas de meias pretas e cuecas encarnadas, «as cores da artilharia», e quando foi chefe da polícia da Madeira deitou todas as putas locais no sofá («de couro preto») do escritório. Às pretas, e como a carapinha lhe causa uma repugnância invencível, «ponho-lhes a cabeça debaixo do braço mas primeiro dou-lhes banho durante meia hora, ensaboo-as muito bem».
Como vês, pessoas de alto nível espiritual não me faltam. 
A máxima, então, é deliciosa. A palavra que ele emprega mais é «à ganância», que quer dizer grande quantidade. Mulheres «à ganância», tiros «à ganância", etc.(...)"


Os romances iniciais de Lobo Antunes ( Memória de Elefante - 1979; Os Cus de Judas - 1979; e Conhecimento do inferno - 1980) relatam situações vividas por seus narradores-personagens, autores, aparentemente, de relatos pseudo-autobiográficos, resultantes da guerra em África ou da vivência em Lisboa após o trauma sofrido no exílio.
A barbárie, o horror da morte, a crítica direta ou velada ao sistema e às instituições e o contato com o outro e com o que este representa como indivíduo ou como inimigo portador de ideologia e cultura diferentes são descritos nos seus livros. Os romances surgem como um espelho, capaz de retratar a política expansionista portuguesa.

Em alguns romances posteriores, de maneira direta pelo viés da autoficção, como, por exemplo, em Sôbolos Rios Que Vão, torna-se, ele mesmo, personagem dos seus romances. Noutros, resgata memórias, inventa outras, busca solucionar, através da ficção, o que a vida construiu sem resposta (aparente/aceitável), sem volta, sem saída.

A memória consagra as lembranças, a história evoca os vultos; 
a memória regista impressões, a história elenca factos; 
a memória confunde passagens, a história sinaliza as datas; 
a memória busca personae, a história congrega os nomes; 
a memória é lúdica, a história é cronológica; 
a memória motiva, a história impulsiona; 
a memória é literária, a história codifica; 
a memória simboliza, a história significa. 
Tal como se fossem faces da mesma moeda, porém, com valores díspares.

A Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar inicia-se nos primeiros meses do ano de 1961. 
Para os africanos, ficaria conhecida como Guerra de Libertação Nacional. 
Os conflitos entre portugueses e africanos iniciados nessa data irão durar até ao histórico dia 25 de abril de 1974, quando ocorre a Revolução dos Cravos.


O título da obra D’este viver aqui neste papel descripto é a citação de um verso escrito pelo poeta Ângelo de Lima (1872-1921) ao Prof. Miguel Bombarda. 
Esta referência encontra-se na página 237, na 143ª carta escrita por Lobo Antunes:

12.7.71
"Minha querida joia
Mais uma longa e triste segunda-feira, “deste viver aqui neste
papel descripto”, como o Ângelo de Lima diz numa carta ao
dr. Miguel Bombarda. Deste viver aqui neste papel descripto.
[...] Entretanto a história parece definitivamente empanada.
Raios a partam – mas que posso eu fazer? Que bonito é “deste
viver aqui neste papel descripto”!


Enquanto espera pelas cartas da esposa, Lobo Antunes percebe que a relação entre os soldados e os habitantes dos lugares pelos quais a tropa vai passando em Angola se dá, ora pelo confronto, mutilação e morte de rebeldes e soldados, ora pela postura de subserviência dos angolanos para com os portugueses.
O autor ainda revela na carta que os africanos são apelidados conforme suas compleições físicas e pela maneira como suas características e personalidade são notadas pelos soldados e oficiais da tropa. 

 António Lobo Antunes mostra todo o seu amor e desejo pela esposa, o sofrimento por estar longe, separados por milhares de quilómetros, a saudade e a angústia.
Mas mais que todo esse amor,  saudade e desejo, António Lobo Antunes mostra-nos também a guerra, a vida militar em Angola, o stress da guerra, o isolamento, estar constantemente em alerta, não dormir e não conseguir descansar durante dias seguidos, comer mal, não ter água e condições mínimas de higiene, as idas aos aquartelamentos longínquos, participar em ações de guerra, assistir a ferimentos graves e a mortes tanto de um lado como noutro.
Apesar de tudo isto António Lobo Antunes também relata o seu dia a dia, o seu relacionamento com os outros militares, com a sociedade civil (portuguesa e angolana), os seus serviços extras como médico a dar consultas à população, mostra também a sua preocupação com as coisas materiais, a procura de casa em Lisboa para viverem, a falta de dinheiro, os exames da faculdade da esposa e evidentemente a gravidez da mesma e a sua relação com a restante família. 
Também a parte literária não é esquecida, nestas cartas pede livros, dá a sua opinião sobre esses mesmo livros e autores, e fala já com a sua ironia da vida literária em Portugal, mas acima de tudo vai confidenciando à sua esposa como lhe vai correndo a escrita de um seu primeiro livro.

São as palavras de um apaixonado que é colocado numa situação extrema, de separação, isolamento e dureza incomparável, mas é ao mesmo tempo duro e assertivo, um testemunho de um período tenebroso que milhares de jovens que tal como António Lobo Antunes tiveram de atravessar e que do qual muitos não regressaram ou então regressaram com feridas profundas, tanto físicas como psicológicas e que infelizmente foram muito maltratados por quem mais os devia proteger após a guerra.



Na 70ª carta:

17.4.71
"Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu
miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via
Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha
margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha
preta minha branca minha chinezinha minha Paulina
Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha
heroína de Racine minha ternura meu goto de luar meu Paris
minha fita de cor meu vício secreto minha torre de
andorinhas três horas manhã minha melancolia minha polpa
de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas
Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha
ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo
minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela
acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha
mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura
de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu
domingo de Ramos meu setembro de vindimas meu moinho
no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário
minha história de quadradinhos meu recife de Manuel
Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina
meu verso de Hölderlin meu gerânio meus olhos grandes de
noite minha linda boca macia dupla como uma concha
fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso
minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo
pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso
etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha
excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha
eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais
alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão
de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada
meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope
meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre
ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha
contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu
pequenino queixo zangado minha transparência de tules
minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de
terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade
meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias
minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo
hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha arpa
meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para
o mar meu mangerico, meu cravo de papel minha Mandragoa
minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada
de aladino minha mulher."






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