sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

ODE À MULTIPLICIDADE


Anh Nguyen





Não compreendo tudo e até
me alegro por o mundo — como um irrequieto
oceano — superar a minha capacidade
de entendimento do sentido da água, da chuva,
dum mergulho no Lago do Padeiro, perto
da fronteira entre a Alemanha e a Chéquia, em
Setembro de 1980; um pormenor, sem grande
importância, um profundo lago germânico.
Deixem o não-oxigenado Ego serenamente
respirar, deixem o nadador cortar a linha
do meridiano, é de noite, os mochos acordam
do sono diurno, ao longe
preguiçosamente rodam os carros. Quem alguma vez
tocou a filosofia, está perdido,
não o salvará o poema, há-de
ficar sempre um resto, um arrependimento, uma saudade
impossível de quantificar. Quem alguma vez adquiriu a noção da desvairada
corrida da poesia não vai conhecer nunca mais
o pedregoso sossego da prosa familiar,
em que cada capítulo é o ninho
duma geração. Quem alguma vez viveu não
se vai esquecer do mutável prazer das estações
do ano, até com as bardanas e as urtigas
há-de sonhar, e com as aranhas não muito
mais feias do que as andorinhas. Quem alguma vez deparou
com a ironia vai-se rir às gargalhadas
durante a conferência do profeta. Quem alguma vez
rezou com mais do que uma boca seca
há-de lembrar-se para sempre da presença dum estranho eco
proveniente de uma das paredes. Quem alguma vez
ficou calado, não vai querer falar
no momento da sobremesa, quem ficou paralisado pelo choque
do amor há-de voltar aos livros de
rosto transfigurado.
Ergues-te, ó alma singular, perante
o excesso. Dois olhos, duas mãos,
dez engenhosos dedos e
um único Ego, um gomo de laranja,
a mais jovem das irmãs. O prazer
de ouvir não estraga o prazer
de olhar, mas a embriaguez da liberdade corrompe
o sossego dos restantes e suaves sentidos.
Sossego, espesso nada, cheio de doce
sumo como as peras em Setembro.
Os breves instantes de felicidade desaparecem
sob uma avalanche de oxigénio, no Inverno a gralha-calva
solitária golpeia com o bico o branco
gelo da lagoa, noutro momento
um par de pica-paus assustados
com um machado procura para lá
da minha janela um choupo suficientemente doente.
Uma mulher ausente escreve longas
cartas e a saudade intumesce como
ópio; no museu egípcio num papiro
castanho está espalhada essa mesma
saudade, mais velha alguns milhares
de anos, inabalável e inabalada.
As cartas de amor acabam sempre
no museu. Os curiosos são mais
tenazes do que os apaixonados. O Ego
sorve o ar com avidez, a razão acorda
do sono diurno, o nadador sai
da água. Uma bela mulher faz o papel
duma mulher feliz, os homens fingem ser
mais corajosos do que realmente são,
o museu egípcio não esconde as fraquezas
humanas. Existir, oxalá se possa ainda existir,
entregando-se talvez ao poder
duma das estrelas frias. E às vezes
troçar dela, por ser fresca e escorregadia
como uma rã num charco. O poema cresce
na contradição mas não consegue recobri-la.





Adam Zagajewski
in, Sombras de Sombras






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