quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Instruções para sair do deserto






Não fujas do que sentes. Não te escondas 
no que dizes. Não digas mentiras.
Sê a tua voz. Faz. Trabalha. Não te queixes. 
Não sofras por medo de sofrer mais.
Não mendigues jamais o que mereces.
Por exemplo, o amor. Fá-lo e tê-lo-ás.
Funda no fogo firme da su fogueira
o teu lar, o teu ofício. E agradece ao ar
que entre e saia de ti. Sê a janela
do que vive. Olha com cuidado.
Há olhares que podem envenenar o mundo.
Não deixes que apodreça o que sentes
dentro de ti. Faz exame de consciência
de vez em quando mas nunca esqueças
que é possível que sejas inocente.
Abre o teu coração couraçado 
à união do céu com o mar,
da luz com a sombra,
do canto dos grilos com o das cigarras.
Pinta de azul a alma. Troca
o que foste pelo que não serás.
Limpa a tua casa. Diz o teu abismo.
Cozinha. Convida. Canta. Dança. Abraça.
Tira o pó da tua voz. Rega as plantas.
As dos pés também, no mar, em marcha.
Não te detenhas. Diante de ti os teus passos,
as tuas pegadas de amanhã, esperam-te, chamam por ti.
Não olhes para trás. Não sejas a tua estátua
de sal. E sai de ti, do que pensas
de ti. Sai desse quarto
escuro onde escreves os poemas 
que dizem o que tens de fazer em vez de o fazer.
Põe-te a andar. Faz. Trabalha. Não te queixes.
Vira a página. Vê. Olha. Sê atento
e fica atento. Não esqueças o que vives .
Não esqueças o que acabas de viver.
Não esqueças o que acaba. Acaba. Vai
em busca de uma voz nova, longínqua.
Não fujas do que sentes. Não permitas 
que a vida se perca no vazio,
que a morte ao chegar encontre 
já feito o seu trabalho. Olha o céu 
como quem diz adeus,
como quem agradece.


Juan Vicente Piqueras





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