sábado, 26 de janeiro de 2019

À MARGEM DE MIM





À MARGEM DE MIM
NÃO HÁ HERÓIS
Digo-te do meu passado porque do futuro não sei. 

Sou do tempo em que não havia heróis. 
E eu também não o sou. 
O escuro continua a ser ele mesmo. 
Com tudo. Todas as sombras. Todos os mistérios. Todos os medos. 
Vejo-me deitado. Na minha cama. 
Com a porta aberta, a cabeça coberta e a luz acesa. 
Para os afastar. A eles. Aos (meus) medos. 
Mas sabes, eu sabia que eles não iam embora. 
Eu sabia que continuavam lá. 
Todos. Escondidos na luz. À minha espera. 
Porque eu nunca fui um herói. 
Fui sempre só um somatório de medos. 
Todos os medos. Na luz. 
Cheio de sombras escondidas.

Depois tu. 
O ter de crescer para ti. 
O ter de ser forte para ti. 
E contigo fui-os esquecendo. 
Arrumados. Em gavetas. 
Mas sabes, hoje tenho ainda os medos. 
E para além deles, um medo maior. 
O medo de chegar e já não seres tu. 
O medo que me esqueças. 
Porque é tanto o que já esqueceste. 
O pano em cima da mesa. 
Os medicamentos na caixa. 
O almoço. 
As horas. 
Até de ti. 
Só resto eu. E tenho medo. 
E agora não adianta cobrir a cabeça, abrir a porta, nem acender a luz. 
Não resulta. 
Não funciona com este medo. 
Embora acenda a luz por diversas vezes - para ver se estás. 
Embora deixe a porta aberta - para poderes circular. 
Embora cubra por vezes a cabeça - para ficar mais junto a ti. 

Um dia (breve) sei que serei eu. 
Sei que irei chegar e já não irás estar. 
Não vais ser mais tu. 
Não irei ser mais eu para ti. 
E eu, que não sou um herói. 
Que sou apenas um somatório de medos, a saltar das gavetas. 
Eu não sei. 
Como vou conseguir viver, sem mim, em ti.


Filipe Paixão




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