Gosto que as crianças tenham colo e que, por causa dele, fiquem de coração grande e de cabeça quente. Gosto que tenham regras mas que sejam perseverantes, engenhosas e autónomas (até nas malandrices com que nunca se cansam de esclarecer se merecemos ser seus pais). Mas não gosto das crianças que tentam ser aquilo que não são (a que, numa linguagem de todos os dias, chamamos... certinhas!). Não gosto. Reconheço que mereçam elogios na sala de aula, em festas da família alargada e nos mais diversos contextos sociais. Mas, ainda assim, e apesar de todos os elogios, não gosto de crianças que são sempre certinhas.
Regra geral, as crianças certinhas crescem dominadas pelo medo.
Medo das reacções mais intempestivas dos pais, medo da fragilidade que eles manifestam nas circunstâncias mais desconcertantes na vida de todos os dias, e medo de não cumprirem as expectativas de que (de forma mas mais ou menos subtil) lhes colocam sobre os ombros. Habitualmente, as crianças certinhas sentem que terão de ser mais ou menos perfeitas. E, pela vida fora, ficam demasiado agrilhoadas ao desconforto de que, não sendo perfeitas... não prestarem (como se errar não fosse aprender). Ou seja, aquilo que os pais descrevem como “auto-estima frágil”, começa, grande parte das vezes, sem que ninguém dê por isso, dentro de casa e pela mão deles.
Este lado certinho das crianças faz com que cresçam numa espécie de terra de ninguém, entre o mundo infantil e o dos crescidos.
Por um lado, por mais que se tentem enturmar com os amigos, parece faltar-lhes a autenticidade e a espontaneidade com que se brinca. Por outro, sempre que circulam pelo mundo dos mais velhos, fazem de conta que são adultas, com uma aragem que soa a falso, que não as torna nem cativantes nem bonitas. É natural que, sendo assim, as crianças certinhas acabem acantonadas numa área da sua vida que mereça o elogio dos pais: frequentemente, os resultados escolares. E que, contra a vontade de todos, passem a valer mais por aquilo que fazem do que por tudo o que são. Não é, portanto, por acaso que as crianças certinhas sejam, muitas vezes, exemplares, aos olhos dos outros, e “patinhos feios” à luz dos seus. E que, não sejam raras as vezes em que acabem num quadro de mérito ou de honra das suas próprias escolas.
Ora, não vejo que seja pecado ter bons resultados escolares, claro. Desde que, em cada escola, haja um quadro de honra para os alunos faladores. Não para os alunos insolentes nem para os que, sendo um bocadinho doentes, infernizam quaisquer atitudes pedagógicas dos seus professores. Mas, unicamente, para os alunos faladores.
Aqueles que chegam à escola com a vista na ponta dos dedos e que, seja em que idade for, nunca se cansam de perguntar porquê. Aqueles que intuem, dum jeito especial, que uma pergunta astuta é, ainda, melhor que uma resposta na ponta da língua. Aqueles que transbordam vida em todos os gestos e que, por mais que pareçam de cabeça no ar, são generosos, leais e põem coração em todas as “contas de cabeça”. Aqueles que acarinham o conhecimento quando se sentem acarinhados por um professor (a quem reconhecem a sabedoria, a bondade e o sentido de justiça com que aprende a com-pensar e a com-seguir).
Num mundo amigo das crianças devia bastar que elas fossem só crianças.
E que raramente (muito raramente) fossem certinhas. O melhor do mundo não são as crianças... certinhas! São as pessoas para quem a infância sempre rimou com dias despenteados e com pais firmes mas serenos para quem, por isso mesmo, o melhor do mundo é o futuro.
Eduardo Sá
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