A mais íntima ferida é herdada.
O onde, o como, o quando,
a morte, o nascimento,
língua, família, deus, tempo, amor:
o decisivo do que nos acontece,
e quem somos,
não é algo desejado nem escolhido.
E passamos a vida, no entanto, ou por isso,
crendo que o desejo é nosso deus,
e não uma rosa rara que em nós cultiva
o azar
que nos guia, nos cega e nos ignora.
Ninguém escolheu o mundo em que nasceu.
Nem sequer seu nome, sua memória.
O importante se impõe, não se escolhe.
E, no entanto, somos seres livres
para escolher entre dar e destruir
o que temos, deseja-lo, ama-lo
mais do que o que não há, lutar sem um mundo,
aceitar o que acontece e trabalhar
duro para que aconteça
o que de qualquer maneira vai acontecer.
Não há mais sabedoria ou remédio
que amar a vida mais do que o seu sentido
e deixar-se levar pelas águas selvagens
de estar aqui e, portanto, com sede de partir,
de escolher o que existe e, ai de nós,
ser quem somos, pródigos, saber
que não temos mais do que o que damos.
Chamamos liberdade a esta tarefa
minuciosa e secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, estender, dobrar,
guardar no armário, entre folhas de marmelo,
lençóis herdados da avó
que por sua vez herdou da sua, um estranho enxoval
para essa solidão que me tem algemado.
Juan Vicente Piqueras
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