terça-feira, 18 de outubro de 2022

Da esmola esquecida à pobreza vivida







Crescemos num país onde pedir esmola fazia parte do quotidiano. 
A pobreza expunha-se e reservava  lugares próprios para mendigar. 
Espalhava-se nas ruas autodelimitando o  espaço de cada um, nas entradas dos mercados , dos cinemas, das igrejas e nos corredores do Metropolitano. 

Pedir e dar juntavam-se em reciprocidade convencionada e, por vezes, automatizada. 
Elevar a voz,  em compasso dorido, determinava  um baixar de olhar para a mão estendida, pronta para a recolha da dádiva. Parcas, reduzidas e insuficientes as moedas caíam descompassadamente. 
A miséria crescia, espalhava-se, multiplicava-se e o país aceitava.  

Nas escolas aprendia-se a bem tratar os pobres. 
Nas igrejas invocava-se o reino dos pobres como sendo o reino de Deus. 
As famílias  promoviam  a poupança  contrapondo a existência de fome no país. 
E a miséria era uma da nossas  fatalidades, bem  portuguesa, tal qual  o tamanho e a localização do país. 

Para alguns era  um dos traços do génio português. 
Por esse mundo, ainda distante e não globalizado, nem sequer Portugal era designado por país periférico, já que a Europa, manta de retalhos, partilhava  apenas a mesma ancestral cultura multifacetada. O eixo da pobreza que nos atravessava,  fixava-nos no extremo ocidental de um continente onde  ambos, qual hóspede e hospedeiro, coabitavam   em  escuso e recíproco desconhecimento.

Para Fernando Pessoa,
" recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não nos é permitido recuperar. 
Vimos da sombra e vamos para a sombra. 
Só o presente é nosso, mas que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro? 
Assim toda a vida é fragmentária, a personalidade una é uma ilusão, não podemos apreender em nós uma constante que nos identifique."

A heteronímia pessoana produziu uma excelente obra literária que é portuguesa, mas o mesmo não aconteceu a  Portugal. Viemos da sombra, continuamos na sombra e vamos para a sombra? 
A pobreza continua em nós revestida de outras expressões em heteronímia actualizada. 

A visão condoída do pobre emergente de uma fatalidade lusitana não resistiu aos cravos de Abril. Contudo, o paradigma brutal da miséria apenas evoluiu  em direitos constitucionais previstos num estado social que nunca funcionou em plenitude. A incúria crescente dos governantes não estimulou a justiça social. A penúria tradicional  não foi extirpada, mas sim  reformulada porque passou a  atingir  diversas camadas sociais que, de crise em crise, foram engrossando a lista de novos pobres em tudo diferentes daqueles que piedosamente nos ensinaram  a respeitar. 

Portugal abriu-se ao mundo e  novos horizontes foram rasgados. 
A Europa recebeu-o, posicionando-o numa periferia subalterna que o agrilhoa. 
E ao colocar-se no mundo  a voracidade económica globalizou-o. 
E a escassez  foi massificada, a falta de recursos implantada, o acesso ao trabalho restringido. 
A  mundialização fez da pobreza  a reificação dos excluídos, a maior indignidade banalizada. 


Maria José Vieira de Sousa




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