domingo, 3 de maio de 2020

O colapso do mundo como o conhecíamos






Os riscos de decretar um Estado de Emergência são excessos de autoritarismos, tentação antidemocrática, reversão incontrolável de avanços sociais, erros de cálculo. A ilusão de que a declaração do estado de emergência resolve a pandemia ou pode esconjurar o inevitável colapso do mundo como o conhecíamos há algumas semanas é também um risco.
Não pode, nada pode.
George Orwell em 1984 ou Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo ficariam espantados connosco e com a nossa forma de viver, mesmo antes desta crise provocada por este ser minúsculo e invisível. Se nos vissem hoje, pensariam que, afinal, erraram por defeito…

Temo que a democracia seja a primeira grande vítima do que estamos a viver. 
Da pandemia e do estado de emergência. 
A democracia é uma complicação, implica diálogo, negociação, paciência, ouvir atentamente os outros que pensam de modo diferente de nós, o respeito pelas minorias, compromissos entre pontos de vista tantas vezes opostos, liberdade de pensar, fazer, dizer o que quisermos e até o direito ao “disparate”.
Com o limite da liberdade dos outros, como diria John Stuart Mill.
Mas é a única maneira decente de se viver com os outros.

Há situações-limite em que se podem admitir restrições à liberdade de imprensa, ou a outras liberdades. O contexto em que estamos poderá ser uma delas.
A necessidade de compatibilizar direitos ou liberdades constitucionalmente protegidos em conflito, aquilo a que por vezes se chama descortinar ou encontrar a sua “concordância prática”, pode justificar a aceitação de exceções normalmente inaceitáveis.
Por isso mesmo é, pelo menos, discutível que a declaração do estado de emergência, ainda que numa versão não muito extrema, seja a melhor decisão política, neste contexto.
Os perigos para a democracia são reais. 
Mas também é verdade que todos os contactos evitáveis potenciam enormes riscos de agravamento da situação em termos de saúde pública e do direito à saúde de cada um de nós. Não é uma decisão fácil, não tenho a certeza de qual eu tomaria se estivesse na posição de ter de o fazer.

Portugal e o mundo jamais serão como os conhecíamos há escassas semanas.
Mas é bom lembrar que o inferno já existia – e continua a existir – em muitas partes do mundo, do Sudão ao Congo ou da Faixa de Gaza ao Afeganistão ou à Síria e “por aí fora”.
Ou em geral nas zonas do globo onde a fome e as doenças evitáveis – além das guerras – matam muita gente todos os dias. É muito difícil, aliás, explicar a uma criança a razão pela qual metade do mundo morre de fome e a outra metade, de excesso de comida. E que as duas metades não são iguais.

Um terreno arde e, na primavera seguinte, o verde teima em reaparecer vindo de debaixo das cinzas. Podem vir “transtornados”, mas até em Chernobyl aparecem seres vegetais novos depois do desastre. Quem sabe haverá lições de solidariedade e de compaixão que poderão atingir e fazer infletir caminho aos mais empedernidos ou distraídos...

Olhando em volta, na verdade, não vejo grandes “líderes”. 
Vejo, aliás, vários que seria melhor que não estivessem lá.
Há exceções, e António Costa, em Portugal, é certamente uma. Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, outra. Talvez Justin Trudeau, no Canadá. Ou mesmo Angela Merkel. Mas não tenho a certeza de que a existência de “líderes globais” em sentido próprio seja ou fosse grande ideia. 
A menos que se esteja a falar de inspiração – e aí temos muita, em grandes poetas, músicos, escritores e pensadores. Artistas e criadores de todas as áreas em que os seres humanos se “excedem” na criação da beleza ou na desmontagem do desconcerto do mundo. Homens e mulheres, de todas as cores, feitios e nacionalidades, ou mesmo sem nenhuma.
Talvez esteja na altura de mudar o nosso conceito de “líderes”.
Lembro, em qualquer caso, que alguns dos maiores líderes políticos foram também (e não por acaso) grandes intelectuais, de Léopold Sédar Senghor e Agostinho Neto a Mitterrand ou Churchill. Ou Amílcar Cabral, ou o atual Presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, de quem tive a honra de ser colega e tenho a de ser amiga. Angela Merkel é doutorada em Química Quântica. E penso como Martin Luther King era um extraordinário pregador, que James Baldwin poderia tê-lo sido se o não tivessem perseguido, Angela Davis ainda hoje fala, escreve e pensa de forma brilhante. Ou como Mandela foi um ser de exceção “extremamente único”, e como Indira Gandhi ou Benazir Bhutto eram mulheres determinadas e grandes líderes, também assassinadas por isso mesmo.
Agora já não há “gente” assim?
Há claro, é preciso estar atenta e procurar.
Há promessas eloquentes, como Malala e Greta Thunberg, ou mesmo o jovem Miguel Duarte, que insiste em ajudar os migrantes e refugiados perdidos no mar, desafiando leis injustas e inumanas.

Mas, não tenho dúvidas de que estes tempos difíceis serão combustível para os populismos.


Teresa Pizarro Beleza





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