terça-feira, 17 de março de 2020

Quando Nietzsche Chorou - excertos





O convite impressionou Breuer pela ousadia, masculinidade; entretanto, dos lábios dela, parecia normal, genuíno - a forma natural como as pessoas deveriam conversar e viver. Se uma mulher aprecia a companhia de um homem, por que não dar-lhe o braço e pedir para o acompanhar? Contudo, que outra mulher sua conhecida teria proferido aquelas palavras? Estava diante de uma espécie diferente de mulher.
Aquela mulher era livre!
(...)
Para mim a palavra "dever" é pesada e opressiva.
Reduzi os meus deveres a apenas um: perpetuar minha Liberdade.
O casamento e o seu séquito de possessão e ciúme escravizam o espírito. Eles jamais me dominarão. Espero, doutor Breuer, que chegue o tempo em que nem o homem, nem a mulher sejam tiranizados pelas fraquezas mútuas.


- Atinge-se a verdade - continuou Nietzsche - através da descrença e do ceticismo, e não do desejo infantil de que uma coisa aconteça de certa maneira! O desejo do seu paciente de estar nas mãos de Deus não é verdadeiro. É simplesmente um desejo infantil, e nada mais! É um desejo de não morrer, um desejo do eterno mamilo intumescido que classificamos como "Deus". A teoria da evolução demonstra cientificamente a redundância de Deus, embora o próprio Darwin não tivesse a coragem de levar as evidências até à sua verdadeira conclusão. Certamente, o senhor tem que entender que nós criámos Deus, e que todos nós, agora  em conjunto, o matamos.
(...)
- Não é a verdade que é sagrada, mas a procura de nossa própria verdade! Haverá ato mais sagrado do que a auto-inquirição? A verdadeira escolha, a plena escolha - respondeu Nietzsche -, só pode florescer sob o clarão da verdade. Como poderia ser de outra forma?
- E meu paciente desta manhã? Qual é a sua possibilidade de escolha? Talvez a confiança em Deus seja a sua escolha!
- Isso não é escolha para um homem. Não é uma busca humana, mas sim a busca de uma ilusão externa a nós. Tal escolha, a escolha de outrem, do sobrenatural é sempre debilitadora. É sempre redutora do homem em si. Amo aquilo que nos torna mais do que somos!


"Qual é o sinal da libertação? Não se envergonhar perante si próprio!"


Assim como ossos, carne, intestinos e vasos sanguíneos estão encerrados numa pele que torna a visão do homem suportável, também as agitações e paixões da alma estão envolvidas pela vaidade; esta é a pele da alma.


- Ah! Existe uma importante distinção entre nós. Eu não alego que filosofo para si, enquanto o senhor, doutor, continua a fingir que a sua motivação é servir-me, aliviar a minha dor. Tais alegações nada têm a ver com a motivação humana. Elas fazem parte da mentalidade de escravo astutamente engendrada pela propaganda sacerdotal. Achará que alguma vez alguém fez algo totalmente para os outros. Todas as acções são auto-dirigidas, todo serviço é auto-serviço, todo o amor é amor-próprio. - As palavras de Nietzsche fluíram mais rapidamente, e ele prosseguiu célere. - Parece surpreso com este comentário? Talvez esteja a pensar naqueles que ama. Cave mais fundo e descobrirá que não os ama a eles: ama, isso sim, as sensações agradáveis que o tal amor produz em si! Ama o desejo, não o desejado. Assim, permita que lhe pergunte de novo: por que deseja servir-me? Novamente, pergunto-lhe, doutor Breuer - aqui a voz de Nietzsche se tornou severa -: quais são as suas motivações?
(...)
- O problema não é o que o senhor irá contar aos outros, confio na sua palavra. O que importa é o que irá contar a si mesmo e o que eu contarei a mim mesmo. Em tudo o que me contou sobre as suas motivações, não houve, a despeito da sua constante alegação de assistência e alívio do sofrimento, nada realmente sobre mim. É assim que deve ser. O senhor usar-me-á no seu auto-projecto: isso também é de esperar - assim funciona a natureza. Mas não vê que serei usado por si? A sua piedade por mim, a sua caridade, a sua empatia, as suas técnicas para me ajudar, para me tratar, os efeitos de tudo isso, tornam-no mais forte à custa da minha força.







Anotações do doutor Breuer sobre Nietzsche: 
A sua mente é original. Não consigo prever as respostas dele. Talvez Lou Salomé esteja certa; talvez  esteja destinado a ser um grande filósofo. Na medida em que evitar o tema dos seres humanos! Na maioria dos aspectos das relações humanas, os seus pontos cegos são prodigiosos. Mas, no que se refere às mulheres, é bárbaro, quase inumano. Qualquer que seja a mulher ou a situação, a sua  resposta é previsível: a mulher é predadora e maquinadora. O seu conselho sobre as mulheres é igualmente previsível: culpe-as, puna-as! Faltou um item: evite-as! Quanto aos sentimentos sexuais: terá algum? Verá as mulheres como perigosas demais? Ele deve ter desejos sexuais. Mas o que lhes fará? Estará reprimido, exercendo uma pressão que, de alguma forma, precisa extravasar? Será essa, pergunto-me, a fonte das suas enxaquecas?


Notas de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer: 
Como fazê-lo ver que os seus problemas clamam por atenção apenas para obscurecer aquilo que não deseja ver? Pensamentos mesquinhos infestam-lhe a mente como um fungo. Acabarão por lhe degenerar o corpo. Hoje, quando se foi embora, perguntei-lhe o que veria se não estivesse cego por trivialidades. Assim, indiquei-lhe o caminho. Ele segui-lo-á? Ele é uma mescla curiosa: inteligente mas cego, sincero mas tortuoso. Terá consciência da sua própria falta de sinceridade? Diz que o ajudo. Elogia-me.Terá ideia de como odeio dádivas? Saberá que as dádivas arranham a minha pele e destroem o meu sono? Será um daqueles que fingem dar - apenas para auferir dádivas? Não lhas darei. Será um daqueles que reverenciam a reverência? Será alguém que deseja encontrar-me em vez de se encontrar a si próprio? Nada lhe darei! Quando um amigo necessita de um local de repouso, é melhor oferecer-lhe um catre duro! Ele é envolvente e simpático. É necessário cuidado! Sobre algumas coisas persuadiu-se a elevar-se, mas as suas entranhas não se persuadiram. Sobre as mulheres, é quase desumano. É uma tragédia chafurdar naquela lama! Conheço essa  lama: é bom olhar para baixo e ver o que superei. A maior árvore ascende às maiores alturas e mergulha as raízes mais para o fundo, para dentro da escuridão - mesmo para dentro do mal; mas ele nem se eleva nem cai. O desejo animal drena-lhe a força - e a razão. Foi ferido por três mulheres e sente-se grato para com elas. Lambe as terríveis garras dessas mulheres. Uma delas borrifa-o com o seu almíscar e finge sacrifício. Oferece a "dádiva" da servidão - a servidão dele. A outra atormenta-o. Finge fraqueza de forma a encostar-se a ele quando anda. finge dormir, para repousar a cabeça na masculinidade dele e, quando se cansa desses pequenos tormentos, humilha-o publicamente. Terminado o jogo, ela vai em frente e continua os seus truques contra a vítima. Ele está cego a tudo isso. Apesar de tudo, ama-a. Não importa o que faça, ele compadece-se da sua posição de paciente e a ama. A terceira mulher o mantém-no em cativeiro permanente. Mas prefiro essa. Pelo menos, não esconde as garras!


- Aqui, o senhor diz que se preocupa demais com as opiniões dos seus colegas. Conheci muitas pessoas que não gostam de si mesmas e tentam superar isso persuadindo primeiro os outros a pensarem bem delas. Feito isso, começam a pensar bem de si próprias. Mas essa é uma falsa solução, isso é submissão à autoridade dos outros. A sua tarefa é aceitar-se a si mesmo, e não encontrar formas de obter a minha aceitação.
- Tem razão: a derradeira meta é ser independente das opiniões dos outros, mas o caminho para essa meta - falo por mim, não por si... é saber que não ultrapassei os limites da decência. Preciso de ser capaz de revelar tudo sobre mim a outra pessoa e saber que também eu sou... simplesmente humano. - Como reflexão posterior, Breuer acrescentou. - Humano, demasiado humano!


- Sim, particularmente em "A Gaia Ciência". Nesse livro defendo que as relações sexuais não diferem de outras relações, já que também envolvem uma luta pelo poder. O desejo sexual é, no fundo, um desejo de dominar totalmente a mente e o corpo de outrem.(...)
 - Sim, sim! - insistiu Nietzsche. - Olhe mais profundamente e verá que o desejo sexual também é um desejo de domínio sobre todos os outros. O "amante" não é alguém que "ama": pelo contrário, ele almeja a posse exclusiva da amada. Seu desejo é excluir o mundo inteiro de um certo bem precioso. É tão egoísta como o dragão que guarda o tesouro! Não ama o mundo; pelo contrário, é totalmente indiferente às outras criaturas vivas. Não o disse o senhor mesmo? Por isso, ficou satisfeito quando a Bertha disse que o senhor seria para sempre o único homem da sua vida.
- Mas o senhor está a roubar a sexualidade do sexo! Sinto os meus impulsos sexuais no membro genital, mas  não numa arena mental abstrata de luta pelo poder!(...) Como pode negar o verdadeiro erotismo? Ignora o impulso, o anseio biológico que está entranhado em nós, que nos permite reproduzirmo-nos! A sensualidade faz parte da vida, da natureza.
- Faz parte, mas não é a parte superior! Na verdade, é o inimigo mortal da parte superior.
Aqui, deixe-me ler uma frase que escrevi de manhã cedo. - Nietzsche colocou os óculos de lentes grossas, foi até à escrivaninha, pegou num caderno já gasto e percorreu as páginas cobertas de rabiscos ilegíveis. Deteve-se na última e, com o nariz quase a tocar nela, leu: - A sensualidade é uma cadela que nos morde o calcanhar! E quão habilmente essa cadela sabe mendigar um pedaço de espírito, quando se lhe nega um pedaço de carne. - Fechou o caderno. - Assim, o problema não é que o sexo está presente, mas que faz desaparecer outra coisa: algo mais valioso, infinitamente mais precioso! O desejo, o estímulo, a voluptuosidade... é o que nos escraviza! A ralé desperdiça a vida como suínos alimentando-se na vala do desejo. Grande paixão é necessária para derrotar a paixão! Demasiados homens foram despedaçados na roda de uma paixão inferior.(...)
- A sua afirmação anterior sobre a reprodução como meta primordial... deixe-me perguntar-lhe isto. - Nietzsche espetou o dedo por três vezes. - Não deveríamos criar, não nos deveríamos transformar, antes de nos reproduzirmos? A nossa responsabilidade para com a vida é criar o superior, não reproduzir o inferior. Nada deve interferir com o desenvolvimento do herói, dentro de si. Se o desejo o impede, então também este precisa de ser superado.





Agora precisa aprender a reconhecer a sua vida e a ter a coragem de dizer "Foi assim que escolhi!". O espírito de um homem constrói-se a partir das suas escolhas!(...)
- Caso escolha ser um dos poucos que participam do prazer do crescimento e da alegria da liberdade sem Deus, terá que se preparar para a dor máxima. Estão interligados e não podem ser experimentados separadamente! Se desejar menos dor, terá que reduzir, à semelhança dos estóicos, e renunciar ao máximo prazer.(...) Nietzsche disse, que o crescimento é a recompensa da dor...(...)
 - Exactamente! Disse-o bem! É precisamente esse o problema precisamente! E porquê nenhum crescimento? Porquê nenhum pensamento mais digno? Esse era o sentido da minha pergunta final ontem: o que estaria a pensar se não estivesse preocupado com esses pensamentos estranhos?(...) Não vê, Josef, que o problema não está no seu sentimento de desconforto? Que importância tem a tensão ou pressão no seu tórax? Quem foi que lhe prometeu conforto? Você dorme mal! E daí? Quem foi que lhe prometeu um sono tranquilo? Não, o problema não está no desconforto. O problema é que sente desconforto pela coisa errada! - Nietzsche olhou para o relógio. - Vejo que o estou a reter para além da hora. Encerremos com a mesma sugestão de ontem. Por favor, pense no que pensaria, se Bertha não lhe enchesse demasiado a mente.


Anotações do doutor Breuer sobre Nietzsche: 
Num dos seus livros, argumenta que a estrutura moral pessoal de um filósofo determina o tipo de filosofia que cria. Acredito agora que o mesmo princípio se aplica a esse tipo de aconselhamento: a personalidade do conselheiro determina o foco do seu aconselhamento. Desse modo, devido aos seus temores sociais e à misantropia, Nietzsche escolhe um estilo impessoal e distante. Claro que não está consciente disso: o que faz é desenvolver uma teoria para racionalizar e legitimar o foco do seu aconselhamento. Assim, não oferece qualquer apoio pessoal, jamais estende uma mão consoladora, olha para mim de uma plataforma elevada, recusa-se a admitir os seus próprios problemas pessoais e não se dirige a mim de uma forma humana.(...) Estamos mobilizados para uma estranha luta! Para ver quem consegue ajudar mais o outro. Perturba-me essa competição: receio confirmar para ele o seu incipiente modelo de "poder" das relações sociais. Talvez eu deva agir como Max preconiza: deixar de competir e aprender o que puder com ele. É-lhe importante ter o controle. Vislumbro vários sinais de que se sente vitorioso: diz-me o quanto tem para me ensinar, lê-me as suas notas, olha para as horas e dispensa-me, altivamente, marcando o nosso próximo encontro. Tudo isto é irritante!

Notas de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer: 
Às vezes, é pior para um filósofo ser compreendido do que ser mal compreendido. Ele tenta compreender-me bem demais; ele adula-me na tentativa de obter orientações específicas. Quer descobrir o meu rumo e usá-lo também como o seu. Ainda não compreende que existe o meu rumo e o rumo dele, mas que não existe "o" rumo. Não pede directamente orientações, mas adula-me e finge que a sua adulação é outra coisa: tenta persuadir-me de que a minha revelação é essencial ao processo do nosso trabalho, que o ajudará a falar, que juntos nos tornaremos mais "humanos", como se chafurdar juntos na lama significasse ser humano! Tento ensinar-lhe que os amantes da verdade não temem águas tempestuosas ou turvas. O que tememos são as águas rasas! Se a prática médica deve servir de guia para o nosso empreendimento, não deverei chegar a um "diagnóstico"? Eis uma nova ciência: o diagnóstico do desespero. Diagnostico-o como alguém que deseja ser um espírito livre, mas não consegue libertar-se dos grilhões da crença. Quer apenas o sim, a aceitação da escolha, nada do não, da renúncia. Ilude-se a si mesmo: faz escolhas, mas recusa-se a ser aquele que escolhe. Sabe que é um desgraçado, mas não sabe que o é pela coisa errada! Espera que eu lhe traga alívio, conforto e felicidade. Mas tenho que lhe dar mais desgraça. Tenho que transformar a sua desgraça trivial na desgraça nobre que originalmente foi. Como expulsar a desgraça trivial da sua torre? Tornar novamente o sofrimento honesto? Vali-me da sua própria técnica: a técnica da terceira pessoa, que aplicou em mim na semana passada, na sua desajeitada tentativa de me induzir a entregar-me aos seus cuidados; eu instruí-o a olhar para si do alto. Mas foi forte demais; quase desmaiou. Tive que me dirigir a ele como a uma criança, chamá-lo "Josef, para o reanimar. A minha carga é grande. Trabalho para a sua libertação. E também para a minha. Mas não sou um Breuer: compreendo minha desgraça e ela é bem-vinda. Além disso, Lou Salomé não é uma aleijada como Bertha. Porém, sei o que é ser atormentado por alguém que amo e odeio!


 - Metas? As metas estão na cultura, no ar. Nós respiramo-las. Todas as crianças com quem cresci inalaram as mesmas metas. Todos queríamos sair do gueto judaico, subir na vida, ter sucesso, riqueza, respeitabilidade. Era o que todos queríamos! Nenhum de nós jamais se pôs deliberadamente a escolher metas; elas estavam mesmo ali, as consequências naturais do meu tempo, do meu povo, da minha família.
- Mas não lhe serviram, Josef. Não foram, suficientemente firmes para sustentar uma vida. Bem, talvez fossem bastante firmes para alguns: para os sem-visão, ou para os medíocres, que passam a vida toda atrás de objetivos materiais ou mesmo para os que alcançam o sucesso mas têm o dom de continuamente fixar novas metas fora do seu alcance. Mas você, como eu, é um homem de visão. Você olhou para longe demais na vida. Você viu que era fútil atingir metas erradas e fútil fixar novas metas erradas. Multiplicações por zero dão sempre zero! Não tomar posse do seu plano de vida é deixar que a sua existência seja um acidente.
 - Mas - protestou Breuer - ninguém desfruta de tal liberdade. Não se pode fugir da perspectiva da sua época, da sua cultura, da sua família, do seu...
- Certa vez - interrompeu Nietzsche - um sábio judeu aconselhou os seus seguidores a romper com os seus pais e as suas mães e a procurarem a perfeição. Esse poderia ser um passo digno de um rapaz infinitamente promissor! Essa poderia ter sido a dança correta com a melodia certa.


Anotações do doutor Breuer sobre Nietzsche:
Repeti-lhe as minhas preocupações com o envelhecimento, com a mortalidade e com a falta de sentido da vida - todas as minhas meditações mórbidas. Ele pareceu estranhamente intrigado com o meu antigo refrão do rapaz infinitamente promissor. Não estou certo de ter entendido o seu objectivo ainda - se é que existe algum! Hoje o seu método está mais claro para mim. Como acredita que a minha obsessão por Bertha serve para me desviar dessas preocupações existenciais, o intento dele é confrontar-me com elas, trazê-las à tona, provavelmente aumentar a minha aflição ainda mais. Como tal, espicaça sem dó e não proporciona qualquer ajuda. Dada a sua personalidade, é claro que não tem nenhuma dificuldade em fazê-lo. Não parece acreditar que um método de discussão filosófica me possa afectar. Tento mostrar-lhe que tal método não me afeta. Mas ele, tal como eu, vai experimentando e improvisando métodos, à medida que avança. A sua outra inovação metodológica de hoje foi empregar minha técnica de "limpeza de chaminé". É-me estranho ser o limpa-chaminés, e não o supervisor - estranho, mas não desagradável. O desagradável e irritante é sua grandiosidade, que se manifesta repetidamente. Hoje, afirmou que me ensinar o significado e o valor da vida. Mas não agora! Ainda não estou preparado para isso!!!


Anotações de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer:
Eis um homem tão oprimido pela gravidade - pela sua cultura, posição, família -, que jamais conheceu a sua própria vontade. Tão preso à conformidade, que parece espantado quando falo de escolha, como se estivesse falando uma língua estrangeira. Talvez a conformidade sufoque os judeus - a perseguição externa une um povo tão estreitamente, que o indivíduo singular não consegue emergir. Quando o confronto com o fato de que permitiu que a sua vida fosse um acidente, ele nega a possibilidade de escolha. Diz-me que ninguém imerso numa cultura tem hipótese de escolha. Quando delicadamente o confronto com a ordem de Jesus de romper com os pais e a cultura na busca da perfeição, ele declara que o meu método é etéreo demais e muda de assunto. É curioso como ele teve o conceito ao seu alcance numa idade precoce, mas nunca desenvolveu a visão para o enxergar. Ele era "o rapaz infinitamente promissor" - como todos nós somos -, mas nunca entendeu a natureza da sua promessa. Ele nunca compreendeu que o seu dever era aperfeiçoar a natureza, superar-se a si mesmo, à sua cultura, à sua família, ao seu desejo, à sua natureza animalesca brutal, para se transformar em quem era. Naquilo que era. Ele nunca cresceu, nunca se desvinculou da sua primeira pele: confundiu a promessa com a realização de objetivos materiais e profissionais. E quando atingiu esses objectivos sem nunca ter aplacado a voz que lhe dizia "Transforma-te naquilo que és"; voltou a cair no desespero e invectivou a partida que lhe tinham pregado. Ainda agora não consegue captar a verdade! Existe esperança para ele? Pelo menos pensa sobre as questões corretas e não recorre a embustes religiosos. Mas é medroso demais. Como lhe devo ensinar a tornar-se duro? Ele uma vez disse que banhos frios ajudam a enrijecer a pele. Haverá uma receita para enrijecer a determinação? Ele chegou à percepção de que somos regidos, não pelo desejo divino, mas pelo desejo do tempo. Percebe que a vontade é impotente contra o "assim aconteceu". Terei a capacidade de lhe ensinar a transformar o "assim aconteceu" no "assim o quis"?
Ele insiste em tratar-me pelo meu nome, embora saiba que não é da minha preferência. É um pequeno tormento; sou forte o bastante para lhe conceder essa pequena vitória.


Ao Breuer descrevia-lhe a sua angústia, mas Nietzsche descartava-a como trivial:
- Claro que sofre, é o preço de ter visão. Claro que sente medo, viver significa correr perigo. Fortaleça-se! - exortava ele - Não é nenhuma vaca, nem eu apóstolo da ruminação.


- Sou um escravo da obsessão: ela nunca me deixará descobrir como escapar. Por isso, pergunto-lhe sobre a sua experiência com a tal dor e sobre os métodos que usou para escapar.
- Mas foi exactamente isso que tentei fazer na semana passada, quando lhe pedi para se observar a si mesmo a uma grande distância - respondeu Nietzsche. - Uma perspectiva cósmica atenua sempre a tragédia. Se subirmos bastante, atingiremos uma altura da qual a tragédia deixará de parecer trágica.


- O problema, Josef, é que sempre que abandonamos a racionalidade e recorremos às faculdades inferiores para influenciar os homens, o resultado é um homem inferior e mais vulgar. Quando diz que deseja algo que funcione, tem em mente algo capaz de influenciar as emoções. Bem, existem especialistas nisso! Quem são eles? Os sacerdotes! Eles conhecem os segredos da influência! Manipulam com musica inspiradora, diminuem-nos, erguendo pináculos e naves monumentais, encorajam o desejo de submissão, oferecem a orientação sobrenatural, a protecção contra a morte, até mesmo a imortalidade. Mas veja o preço que cobram: escravidão religiosa; reverência pelos fracos; estase; ódio ao corpo, à alegria, a este mundo. Não, não podemos recorrer a esses tranquilizantes, a esses métodos anti-humanos! Precisamos encontrar formas melhores de aperfeiçoar os nossos poderes da razão.
- O director da peça encenada na minha mente - respondeu Breuer-, aquele que decide enviar-me imagens de Bertha e da minha casa a arder, não parece afectado pela razão.
- Mas sem dúvida - e Nietzsche agitou seus punhos cerrados -, tem que perceber que não existe realidade em nenhuma das suas preocupações! A sua visão de Bertha, a aura de atracção e amor que a rodeia, na verdade não existem. Esses pobres fantasmas não fazem parte da realidade numenal. Qualquer visão é relativa, tal como qualquer conhecimento. Inventamos as nossas experiências. E aquilo que inventamos podemos destruir.


Anotações de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer
Apresenta-se como bom; não causa mal nenhum, a não ser a si e à natureza! Preciso de fazer com que deixe de ser um daqueles que se julgam bons, porque não têm garras. Acredito que tenha que aprender a blasfemar antes de eu poder confiar na sua generosidade. Não sente raiva! Terá assim tanto medo que alguém o magoe ? Será por isso que não ousa ser ele próprio? Por que anseia apenas pequenas felicidades? E chama a isso virtude. Quando o verdadeiro nome é covardia! É civilizado, delicado, um homem bem-educado. Domou a sua natureza selvática, transformou o seu lobo num cão de raça. E chama-lhe moderação. Quando o verdadeiro nome é mediocridade!...Agora confia e acredita em mim. Dei-lhe a minha palavra de que me esforçarei para o curar. Mas o médico deve primeiro, como o sábio, curar-se a si próprio. Só então o seu paciente poderá contemplar com os seus olhos um homem que se cura a si próprio. Contudo, eu não me curei a mim mesmo. Pior, sofro das mesmas aflições que atormentam Josef. (...) ...Hoje vejo quanto mudou... menos tortuoso... e já não me tenta adular, já não se tenta fortalecer demonstrando a minha fraqueza. O ataque frontal aos seus sintomas, que me pediu para lançar, é o mais terrível chafurdar em águas rasas que alguma vez empreendi. Eu deveria ser alguém que eleva, não que rebaixa! Ser tratado como uma criança cuja mente precisa de uma bofetada quando se porta mal, está a rebaixá-lo. E a mim também! SE UMA CURA REBAIXA O MÉDICO, CONSEGUIRÁ, POR ACASO, ELEVAR O PACIENTE? Há-de existir um caminho mais elevado.


Notas de Friedrich Nietzsche sobre o doutor Breuer
Hoje, o rumo do nosso trabalho mudou completamente. A chave? A ideia de significado, em vez de "origem"!(...)A "origem" a causa da histeria? Impossível! Não, aquilo não foi a "causa", mas sim uma manifestação - de uma angústia, uma Angst persistente e mais profunda! Por isso, a cura de Josef foi tão evanescente. Temos que nos voltar para o significado, o sintoma não passa de um menageiro com a notícia de que a Angst está a irromper das profundidades do Ser! Preocupações profundas com a noção do finito, com a morte de Deus, com o isolamento, com o propósito da vida, com a liberdade - preocupações profundas trancadas durante toda uma vida - rompem agora as suas cadeias e batem às portas e janelas da mente. Exigem ser ouvidas. Não apenas ouvidas, mas vividas! Aquele estranho livro russo sobre o Homem Subterrâneo continua a espantar-me. Dostoievski diz que certas coisas não devem ser contadas, excepto aos amigos; outras não devem ser contadas nem aos amigos; finalmente, existem coisas que não se contam nem a si próprio! Certamente, são as coisas que Josef nunca contou sequer a si mesmo, que agora irrompem dentro dele. Consideremos o que Bertha significa para Josef. Ela é fuga, fuga perigosa, fuga do perigo da vida segura. É também paixão, mistério e magia. Ela é a grande libertadora trazendo a suspensão da sua sentença de morte. Ela tem poderes sobre-humanos; é o berço da vida, a grande madre confessora: ela perdoa tudo que é selvagem e bestial nele. Proporciona-lhe a vitória garantida sobre todos os competidores, através do amor perdurável, da companhia eterna e da existência perene nos sonhos dela. É um escudo contra as garras do tempo, oferecendo a salvação do abismo interno e a segurança do abismo inferior. Bertha é uma cornucópia de mistério, protecção e salvação! Josef Breuer chama-lhe amor. Mas o seu verdadeiro nome é prece. Os curas paroquiais, como o meu pai, sempre protegeram os seus rebanhos de Satã. Pregam que Satã é o inimigo da fé, que Satã, de modo a minar a fé, assume qualquer disfarce - e nenhum deles mais perigoso e insidioso do que o manto do ceticismo e da dúvida. Mas quem nos protegerá a nós - os santos céticos? Quem nos advertirá das ameaças contra o amor à sabedoria e o ódio à servidão? Será essa a minha missão? Nós, os céticos, temos os nossos inimigos, os nossos Satãs que minam as nossas dúvidas e espalham as sementes da fé nos locais mais subtis. Deste modo, matamos os deuses, mas santificamos os seus substitutos: professores, artistas, mulheres bonitas. E Josef Breuer, um cientista de renome, beatifica durante quarenta anos o sorriso adorado duma menina chamada Maria. Nós, os que duvidamos temos de estar vigilantes. E fortes. O impulso religioso é feroz. Vejam como Breuer, um ateu, anseia por persistir, por ser eternamente observado, perdoado, adorado e protegido. Será a minha missão a do sacerdote do incrédulo? Devo dedicar-me a detectar e destruir os anseios religiosos, quaisquer que sejam os seus disfarces? O inimigo é assombroso; a chama da crença é alimentada incessantemente pelos temores da morte, do esquecimento e da ausência de sentido. Onde nos conduzirá o significado? Se eu descobrir o significado da obsessão, os sintomas de Josef desaparecerão? E os meus? Quando? Bastará um rápido mergulho na "compreensão"? Ou a submersão terá que ser prolongada? E que significado? Parece haver vários significados para o mesmo sintoma e Josef ainda não começou a esgotar os significados da sua obsessão por Bertha. Talvez tenhamos que descascar os significados um a um, até que Bertha deixe de significar qualquer coisa que não ela própria. Uma vez despojada dos significados excedentes, vê-la-á como o ser humano, demasiado humano, assustado e despojado, que ela, ele e todos nós realmente somos.


- Não ensino, Josef, que se deva "suportar" a morte ou "aceitá-la". Isso, seria trair a vida. Eis minha lição: Morra no momento certo! Viva enquanto viver! A morte perde o seu terror quando se morre depois de consumida a própria vida! Caso não se viva no tempo certo, então nunca se conseguirá morrer no momento certo.(...)
Breuer fez uma pausa. Sabia que Nietzsche tinha razão. Deixou de resistir e voltou a sua atenção para dentro: - Terei consumido a minha vida? Consegui muitas coisas, mais do que qualquer um esperaria de mim: sucesso material, avanço científico, família, filhos... , mas já falámos de tudo isto antes.
- Apesar disso, Josef, evita a minha pergunta. Viveu a sua vida? Ou foi vivido por ela? Escolheu-a? Ou escolhe-o ela a si? Amou-a? Ou lamentou-a? Eis o que quero dizer quando pergunto se consumiu a sua vida. Esgotou-a? Lembra-se do sonho em que o seu pai presencia, impotente, rezando, uma qualquer calamidade que caiu sobre a sua família? Não será como ele: impotente, lamentando a vida que nunca viveu?(...)
- E isto é, Josef, creio eu, a principal fonte da sua angústia. Aquela pressão precordial... é porque o tórax está a explodir de vida não vivida. O tiquetaque do seu coração marca o tempo que se esvai. A avidez do tempo é eterna. O tempo devora e devora, sem dar nada em troca. Que terrível ouvi-lo dizer que viveu a vida que lhe foi atribuída! E que terrível encarar a morte sem nunca ter reivindicado a liberdade, mesmo em todo o seu perigo!


-Tudo que adoro agora, Friedrich, é o pensamento de que cumpri o meu dever para com os outros.
- Dever? Como pode o dever preceder o seu amor por si próprio e pela sua própria busca de liberdade incondicional? Se não se realizou pessoalmente, então "dever" é um mero eufemismo para proveito dos outros, visando o engrandecimento deles. Breuer reuniu a energia para mais uma refutação.
- Existe uma coisa que é o dever para com os outros, e tenho sido fiel a esse dever. Pelo menos aí tenho a coragem das minhas convicções.
- Melhor, Josef, é muito melhor ter a coragem de mudar as suas convicções. O dever e a fidelidade são patranhas, cortinas para esconder o que está por trás. A auto-libertação significa um sagrado não, mesmo ao dever. Pretende tornar-se em si mesmo - continuou Nietzsche. - Quantas vezes o ouvi dizer isso? Quantas vezes se lastimou de que nunca conhecera a liberdade? A sua bondade, o seu dever, a sua fidelidade... são essas as barras da sua prisão. Perecerá dessas pequenas virtudes. Tem que aprender a conhecer a sua maldade. Não pode ser parcialmente livre: também os seus instintos anseiam por liberdade; os seus cães ferozes no porão...rosnam por liberdade. Escute atentamente: não os consegue ouvir?
- Mas não posso ser livre - invocou Breuer. - Estou ligado aos laços do sagrado matrimónio. Tenho um dever para com os meus filhos, os meus alunos, os meus pacientes.
- Para formar crianças, precisa primeiro de estar formado. Senão, terá filhos por força de necessidades animais, ou da solidão, ou para tapar os seus buracos. A sua tarefa como pai não é produzir outro eu, outro Josef, mas algo mais elevado. É produzir um criador. E a sua esposa? - prosseguiu Nietzsche inexoravelmente. - Não será tão prisioneira do casamento como você? O casamento não deveria ser uma prisão, mas um jardim onde algo mais elevado é cultivado. Talvez a única forma de salvar o seu casamento seja desistir dele.
- Estou preso aos votos do matrimónio.
- O casamento é algo grandioso. É grandioso serem sempre dois, permanecer apaixonado. Sim, o matrimónio é sagrado. Porém... - a voz de Nietzsche foi se extinguindo.
- Porém? - perguntou Breuer.
- O matrimónio é sagrado. Porém - a voz de Nietzsche tornou-se áspera - é melhor acabar com o matrimónio, do que deixar que ele acabe consigo!(...)
-Quis dizer apenas que a relação conjugal só é ideal quando não é necessária para a sobrevivência de cada parceiro. - Sem notar qualquer sinal de esclarecimento no rosto de Breuer, Nietzsche acrescentou. - Quis dizer apenas que, para se relacionar plenamente com outro, precisa primeiro de se relacionar consigo mesmo. Se não conseguirmos abraçar a nossa própria solidão, simplesmente usaremos o outro como um escudo contra o isolamento. Só quando se consegue viver como a águia, sem absolutamente qualquer público, se consegue voltar para outra pessoa com amor; só então se é capaz de preocupar com o engrandecimento do outro ser humano.
Ergo, se é incapaz de desistir do casamento, então o casamento está condenado.







- Acredito - respondeu Breuer - que o fator mais poderoso foi identificar o inimigo certo. Tendo compreendido que preciso combater o inimigo real - o tempo, o envelhecimento, a morte - , percebi que a Mathilde não é minha adversária nem salvadora, mas simplesmente uma colega de jornada, enfrentando o mesmo ciclo da vida. De algum modo, esse simples passo libertou todo o meu amor aprisionado por ela. Hoje, Friedrich, amo a ideia de repetir minha vida eternamente. Finalmente, sinto-me capaz de dizer: "Sim, escolhi a minha vida. E muito bem escolhida."
- Sim, sim - disse Nietzsche, apressando Breuer. - Vejo que mudou. Mas quero saber o mecanismo, como isso aconteceu!
- Só sei dizer que, nos últimos dois anos, fiquei muito assustado com o meu próprio envelhecimento ou, conforme o Friedrich disse, com o "apetite do tempo". Lutei contra ele, mas às cegas. Ataquei a minha mulher em vez do inimigo real e, finalmente, em desespero, procurei a salvação nos braços de alguém que não tinha como me salvar. - Breuer pausou, coçando a cabeça. - Não sei o que mais dizer, excepto que, graças a si, percebo que a chave para viver bem é primeiro, desejar aquilo que é necessário e, depois, amar aquilo que é desejado.









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