terça-feira, 10 de março de 2020

Elizabeth Costello




John Maxwell Coetzee, 
o Mestre do Desconforto 



Coetzee tem uma habilidade de sintetizar em 20 páginas o que outros escritores escrevem em 200, e nem sempre conseguem expor as coisas tão bem como ele o faz em apenas 20 páginas.
Não é diferente com este romance que tem como personagem-título a romancista australiana Elizabeth Costello, alter ego de Coetzee, que teria ficado famosa pelo romance "A casa da rua Eccles “com o personagem principal Marion Bloom, mulher de Leopold Bloom, protagonista de Ulisses (1922) de James Joyce.

Este foi o primeiro trabalho de Coetzee depois do premiado "Desonra".
Em Elizabeth Costello ele utiliza um recurso narrativo de metaficção para refletir sobre a literatura e o trabalho dos escritores, através de oito palestras da escritora de sessenta e seis anos de idade, defensora dos animais, em diferentes situações que ela vivencia ao viajar pelo mundo recebendo prémios literários. Nunca fica claro se estamos diante de uma obra autobiográfica, de ficção ou ensaio filosófico onde não faltam citações a romancistas consagrados como Swift, Daniel Defoe e Kafka e filósofos como Kant e Wittgenstein.

Difícil é escolher e destacar alguns trechos, mas o capítulo sobre Eros e as relações eróticas entre homens e deuses é magistral:
"Amor e morte. Os deuses, os imortais, foram os inventores da morte e da corrupção; porém, com exceção de dois ou três exemplos notáveis, não tiveram coragem de experimentar sua invenção em si mesmos. Por isso é que têm tanta curiosidade sobre nós, são tão infindavelmente inquisitivos. (...) Dos dois, deuses e mortais, somos nós que vivemos com maior urgência, que sentimos com maior intensidade. Por isso é que não nos podem tirar da cabeça, não podem passar sem nós, nos vigiam incessantemente e nos espionam. É por isso, afinal, que não baixam uma proibição ao sexo connosco, simplesmente regulam quando, de que jeito e com que frequência. Inventores da morte; inventores do turismo sexual também. Nos êxtases sexuais dos mortais, o frisson da morte, suas contorções, seus relaxamentos: falam disso sem parar quando bebem demais - com quem primeiro experimentaram isso, como foi. Eles gostariam de ter aquele arrepiozinho inimitável em seu repertório erótico, para temperar os acasalamentos entre eles. Mas isso tem um preço que não estão dispostos a pagar. Morte, aniquilação: e se não existir ressureição?, pensam, apreensivos."

Destaco também a declaração da escritora no surpreendente último capítulo onde, longe do céu e do inferno, ela sofre para escrever uma das melhores definições já pensadas sobre literatura:
"Sou escritora, uma mercadora de ficções. Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam. Mudo de crença como mudo de casa ou de roupas, de acordo com minhas necessidades. (...) Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito."

Ao discursar para uma plateia de académicos sobre o realismo, no primeiro capítulo de Elizabeth Costello, a escritora, que dá nome ao aclamado livro de J. M. Coetzee, questiona as excessivas interpretações a que submetemos as obras literárias:
“Houve um tempo que sabíamos. Costumávamos acreditar que quando o texto dizia ‘Havia um copo d’água sobre a mesa’, havia de facto uma mesa com um copo d’água sobre ela, e bastava olhar para o espelho-palavra do texto para vê-los. Mas isso tudo terminou. O espelho-palavra se quebrou, irreparavelmente, ao que parece.” Diz também: “Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu. Poderíamos considerar trágico esse evento, não fosse pelo fato de ser difícil respeitar um fundo que cai, seja ele qual for – isso agora nos parece uma ilusão, uma dessas ilusões sustentadas apenas pelo olhar concentrado de todos da sala. Removam seu olhar apenas um instante, e o espelho cai ao chão e se parte.”

Depois, na segunda palestra fala sobre as Ideias e as Humanidades como Ciências Humanas, sobre o Helenismo, a sociedade sem classes, e fala das Humanidades não como o coração de qualquer Faculdade, mas sim como algo mal equacionado desde o início, algo de errado no facto de se ter alimentado esperanças e expectativas em relação às Humanidades que estas nunca poderiam vir a concretizar. O objecto de estudo das Humanidades é o Ser Humano, e a natureza humana está condenada, mas tal não nos impede de tentar melhorar, certo?

E por falar em Humanidades, em Fevereiro morreu o escritor George Steiner com 91 anos. Ele questionou bastante a importância das humanidades e da comunicação nos dias de hoje.

  • O que são hoje as Humanidades? 
  • Será que compreendemos plenamente o papel atual das chamadas humanidades quando o progresso científico e tecnológico segue caminhos inesperados e imprevisíveis? 

Basta lermos os grandes humanistas ao longo da história para percebermos que não podemos fechar-nos dentro de fronteiras rígidas, como se nos devêssemos ater apenas ao formalismo de algumas categorias tradicionais. Quando Dostoievski, no livro “O Idiota”, põe na boca de Hipólito a pergunta ao Príncipe Michkine se haverá uma beleza que salve o mundo, não há uma resposta, apenas silêncio. É desse silêncio que Steiner, na prática, se ocupava – uma vez que não podemos descurar a emoção, a arte, a criatividade, a graça, a emoção e o espírito, mas temos de ligar-lhes o cuidado e a atenção.
E se é verdade que há muito barulho à nossa volta, o certo é que temos de saber ver e ouvir, de modo que a indiferença e a idolatria não ocupem o espaço do sentido e da dignidade do ser. Por isso acho que devemos valorizar o silêncio, que permita ouvirmo-nos uns aos outros, e distinguir o que tem valor.
Steiner costumava lembrar que por trás da casa de Goethe há um campo de concentração e que grandes atrocidades foram cometidas por quem dizia amar a arte. Eis por que não basta invocar as humanidades, é fundamental torna-las humanas.
“Toda a minha vida me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam. (…) Passo o dia todo com os meus alunos a ler o «King Lear» e, ao voltar para casa, estou tão possuído interiormente por esse texto que não ouço os gritos de alguém na rua. Alguém grita por ajuda e eu não ouço. Sempre me intrigou até que ponto a ficção – e ficção é a palavra-chave – pode ser mais poderosa do que a realidade. Passei a vida a ensinar as pessoas a ler e a amar o que leem. Mas questiono-me a mim próprio sobre o perigo imenso de nos identificarmos com a ficção”. - George Steiner
"De que falamos quando se trata de literatura?
Em bom rigor é da própria vida. O mesmo se diga das diversas artes – quando ouvimos Vivaldi, Bach, Mozart, Beethoven ou Mahler somos transportados para um domínio que supera a nossa natureza, mas que não pode fazer-nos esquecer que somos imperfeitos. Lembro-me de Dante e da sua viagem com Virgílio, e percebo que a vida tem inúmeras cambiantes, contraditórias, enigmáticas, sempre difíceis. Não é o facto de podermos usufruir do que há de mais sublime que muda a nossa natureza. E não é essa limitação que nos pode fazer negar a importância da dimensão artística – para compreendermos a relação entre a razão e a emoção e para entendermos que nunca sabemos o suficiente para ser intolerantes. A cultura é um talento cheio de ambiguidades, e se Tolstoi não foi capaz de nos libertar da imperfeição, pelo menos, foi quem nos abriu os olhos para a força emancipadora das diferenças e das convergências… Caldéron de la Barca disse-nos que a “vida é sonho”, mas não nos apresentou uma fuga à realidade, uma procura da realidade humana, do mesmo modo que Platão nos fala da alegoria da caverna… Perante os gigantes devemos ficar calados – mas temos de preservar a liberdade e o sentido crítico."
- George Steiner 

George Steiner procurou assegurar que não houvesse uma humanização da mentira.
E chega à cultura científica, não numa lógica positivista ou naturalista, mas como a procura da capacidade criadora – que faz com que se encontrem o artista e o investigador científico, o romancista e quem descobre um novo tratamento para uma doença até então incurável…
Diz-nos que a cultura científica tende a não conhecer a hipocrisia e a não fazer bluff.
Quem faz batota é obrigado a sair do jogo.
Nas ciências sociais talvez seja mais fácil fazer batota…
É certo que as coisas não são tão simples assim.
Mas do que se trata é de nos aproximarmos das Humanidades que se tornem humanas e humanizadoras…

Mais poderosas que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. E este funciona através da linguagem. Como poderemos proteger-nos? Por vezes vivemos como se a memória fosse retrospetiva. Tratar-se-ia de considerar o mundo como um grande museu. Uma das razões para o otimismo de Steiner tem a ver com o facto de a ciência se ocupar do futuro. Mas não basta ver o mundo através desses contrastes.
"O Admirável Mundo Novo de Huxley reserva-nos muitas perplexidades e desenha um futuro inquietante. As Humanidades têm de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto. Mas agora surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização?" George Steiner 
Quanto a isso Steiner não estava certo quanto à resposta.
O nacionalismo é um poderoso veneno do nosso tempo.
O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente.
A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento.
Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores.

O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como separação, indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Tem de se promover a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem…
Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se focam exclusivamente no acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural.

A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner permite-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. O livro é ainda hoje uma referência para os que pensam pela sua cabeça, mas Steiner compreende que a criatividade e a resposta humana aos diferentes desafios vão depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a responder de um modo múltiplo…



E voltando ao livro, Costello passa boa parte do tempo a questionar os seus valores como escritora, e sobre o poder dos livros e da literatura. As palestras de Costello são tão repletas de reflexões filosóficas, com uma amplitude tão grande de temas – a voz das mulheres nos romances, as relações sexuais entre deuses e humanos, o realismo na ficção, o romance africano, o futuro da humanidade – que o livro com certeza merece uma segunda leitura.

Numa dessas palestras, falou sobre os direitos dos animais, e compara os matadouros, pesqueiros e laboratórios aos campos nazistas, para desconforto da plateia, e evoca o conceito de “ignorância involuntária” ao mencionar que todos ali presenciavam ou ao menos sabiam dessa matança, à semelhança dos alemães, e preferiam o silêncio. Afirma que não há diferenças entre o sofrimento animal e o humano porque o que nos garante certa “superioridade” se baseia num princípio essencialmente tautológico, a razão:
“Pois vista de fora, sob o prisma de um ser alheio a ela, a razão é simplesmente uma vasta tautologia. É evidente que a razão validará a razão como princípio primeiro do universo. O que mais poderia fazer? Destronar-se? Os sistemas de raciocínio, como sistemas de totalidade, não têm esse poder.” O valor essencial para os animais, é a sensação de ser, algo que obviamente não pode ser plenamente desfrutado por um animal confinado. A plenitude de ser é um estado difícil de sustentar em confinamento”. 
A argumentação pode ser rebatida, como o será ao longo do jantar que se segue à palestra, mas ainda assim é difícil ficar incólume ao argumento de que presenciamos assassinatos em grande escala e ficamos indiferentes a eles. Podemos nos posicionar contra agressões frontais, como o uso de animais em cruéis testes laboratoriais, mas somos, na maioria das vezes, capazes de lidar com a ideia de rebanhos em matadouros sem grandes crises de consciência.
“Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menos urgente ou desconfortável para a pessoa que está colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultante desse sofrimento? A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum- razão, autoconsciência, alma- com os outros animais? (E o corolário que se segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a tratá-los como quisermos, aprisionando-os, matando-os, desrespeitando seus cadáveres). Volto aos campos de extermínio. O horror específico dos campos, o horror que nos convence de que aquilo que aconteceu ali foi um crime contra a humanidade, não reside no fato de que a despeito de os matadores partilharem com suas vítimas a condição de humanos, eles as terem tratado como piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está na foto de os matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas vítimas, assim como todo mundo. Disseram: São eles naqueles vagões de gado. Não disseram: Como seria para mim estar naquele vagão de gado? Disseram: Devem ser os mortos que estão a ser queimados hoje, pesteando o ar e caindo em forma de cinza em cima dos meus repolhos. Não disseram: Estou a queimar, estou a transformar-me em cinzas. Por outras palavras, eles fecharam os seus corações. O coração é sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro. A simpatia tem tudo a ver com o sujeito e pouco a ver com o objeto, o “outro”, como percebemos de imediato quando pensamos no objeto não como um morcego (Posso partilhar o ser de um morcego?), mas como outro ser humano. Certas pessoas têm capacidade de se imaginar como outra pessoa, há pessoas que não têm essa capacidade (quando essa falta é extrema, chamamos essas pessoas de psicopatas), e há pessoas que têm a capacidade, mas escolhem não exercê-la.” O que me fez pensar: O que é sagrado e o que é profano? O que é puro e o que é impuro? No modismo da alimentação vegetariana ou “funcional”, não há certo elitismo que separa aqueles que podem embarcar nessa nova relação com os alimentos em relação à população comum, preocupada com a subsistência? Ela diz também: “É uma terrível ironia. Uma filosofia ecológica que nos diz para viver lado a lado com outras criaturas se justifica apelando para uma ideia, a ideia de uma ordem superior a qualquer criatura viva. Uma ideia, afinal- e esse é o caráter esmagador dessa ironia- que nenhuma criatura é capaz de entender, a não ser o Homem. Toda a criatura viva luta por sua vida própria, individual, e recusa, por meio da luta, render-se à ideia de que o salmão ou o mosquito pertencem a uma ordem de importância inferior à ideia do salmão ou à ideia do mosquito. Mas quando vemos o salmão a lutar por sua vida, dizemos que ele é simplesmente programado para lutar; dizemos, com Tomás de Aquino, que ele está trancado na sua escravidão natural; dizemos que não tem consciência de si.” 

No fim da palestra sobre a ética contida na decisão de se alimentar de animais, enquanto Costello é levada pelo filho de carro para o aeroporto, desenrola-se uma das cenas mais sensíveis de todo o livro. John pergunta porque ela abraçou com tanta intensidade a causa animal. E ela responde:
“…não sei mais onde estou. Aparentemente, eu me movimento perfeitamente bem no meio das pessoas, tenho relações perfeitamente normais com elas. É possível, me pergunto, que todas estejam a participar de um crime de proporções inimagináveis? Estou a fantasiar isso tudo? Devo estar louca! No entanto, todos os dias vejo provas disso. As próprias pessoas, de quem desconfio, produzem provas, exibem as provas para mim, me oferecem. Cadáveres. Fragmentos de corpos que compraram com dinheiro.” 
Enquanto ela chora, o filho abraça-a e conforta-a dizendo-lhe:
“Calma, calma, já está quase no fim”.

O contraste entre a aridez dos embates filosóficos e as experiências emocionalmente desgastantes da vida real permeiam todo o livro.








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