terça-feira, 26 de novembro de 2019

O Homem Livre




Só se pode sentir o que é o amor 
ao compreendermos a maneira como vivemos. 


A maioria de nós deseja uma definição do amor, ou buscamos aquele estado que chamamos “amor universal”, "cósmico”, “divino”, etc. etc., sem compreender nossa existência diária.


  • Não conhecemos, na vida quotidiana, nenhuma espécie de amizade, bondade, delicadeza? 
  • Nunca somos generosos, compassivos? 
  • Jamais temos o sentimento de ser espontaneamente bons para com alguém, ou em que revelamos grande humildade? 
  • Tudo isso não são expressões do amor? 
  • E, quando amamos alguém, não há então um sentimento total em que o “eu” é inexistente? 


O que geralmente acontece é que nos identificamos com uma pessoa, uma família, uma nação, um partido, uma ideologia, e, nessa auto-identificação com algo, encontro grande intensidade de sentimento, de ação; mas não nos esquecemos realmente de nós mesmos.
Pelo contrário, com a identificação nos expandimos.

O movimento, o partido, a ideologia, a igreja, ou o que quer que seja com que se identificou a mente, é um prolongamento do “eu”. O homem que, consciente ou inconscientemente, se identificou com algo, não tem amor, ainda que fale de amor. 

Quando falais sobre vosso amor à pátria, isso não significa que amais a pátria, constituída de pessoas, de entes humanos; o que amais é puramente a ideia de pátria, com a qual vos identificastes e pela qual estais dispostos a matar e a morrer. 

Assim sendo, consciente ou inconscientemente, a mente se identifica com alguma coisa — um movimento, um partido, uma ideologia, uma família, uma religião, um guru — e essa mente é incapaz de amar; afigura-se-me importante compreender isto, porque muita gente boa se perde por causa da identificação, por não perceber sua falsidade. 

E se a identificação, 
a que chamamos “amor”, 
não é amor, 
que é então o amor? 

Sem dúvida, o amor é o estado de espírito em que o “eu” perdeu toda a sua importância. 
Amar é ser amistoso. Compreendeis, senhores?
Quando amais, não tendes inimizade e não causais inimizade.
E vós causais inimizade ao pertencerdes a religiões, nações, partidos políticos.
Se possuís muitas terras, imensas riquezas, enquanto outro, pouco ou nada tem, causais inimizade, ainda que frequenteis os templos, ou mandeis construir templos com vossas riquezas.
Não tendes afabilidade quando estais em busca de posição, poder, prestígio.

Sim, todos vós acenareis com vossas cabeças e concordareis comigo, mas continuareis por vossos velhos caminhos; e a tragédia é, não a vossa falta de amor, porém, a falta de compreensão de vosso modo de vida, o não-percebimento do significado da maneira como realmente estais vivendo. Se realmente sentísseis isso, seríeis generosos. 

Por certo, a generosidade da mão e do coração é o começo da afabilidade; e onde há afabilidade não se necessita de justiça por força da Lei. Existindo afabilidade, há bondade, compaixão espontânea. Ocasionalmente, tendes sido amistosos, afáveis, sem pensardes em vós mesmos, sem estardes preocupados a respeito de vossa pátria, de vossos problemas.

E quando transcendemos tudo isso, surge algo completamente diverso — um estado em que a mente é compassiva e, todavia, “indiferente” . Conhecemos a indiferença no sentido de “desapego”, sendo este o resultado de cálculo, um ato concebido pela mente, a fim de proteger-se contra a dor. 

Conhecemos também a indiferença da mente que diz:
“Passei por muitas penas e angústias, e agora vou ser indiferente.”
Ora, isto é também ação da vontade.

Mas eu me refiro a uma indiferença totalmente desligada da indiferença intelectual concebida pela mente que deseja resistir ao sofrimento. Há uma indiferença originada da compaixão; a mente é compassiva e, todavia, “indiferente”. 
Já tivestes alguma vez tal sentimento?
Ao verdes um ser a penar, tratais de socorrê-lo e, entretanto, sois “indiferente” nesse próprio processo de socorrer.

Mas, em geral, que fazemos nós?
Apiedamo-nos porque vemos sofrimento, e desejamos alterar as coisas, promover uma reforma e, desse modo, nos lançamos de corpo e alma à ação; mas a mente de tal maneira está empenhada em produzir um resultado, que perde o “senso” da compaixão. 

Assim, se observardes o funcionamento de vossa própria mente, vereis que todas essas coisas se passam no quotidiano viver. Conheceis momentos de compaixão, momentos de amor, de generosidade, porém eles são bem raros.


 Todas as nossas ações calculadas 
se baseiam nesse processo de 
“vir a ser” algo importante, 
e só a mente que esta livre do “vir a ser” 
pode conhecer aquele amor 
que dissolve nossos numerosos problemas.




Jiddu Krishnamurti






Sem comentários:

Enviar um comentário