segunda-feira, 15 de abril de 2019

Aparição


Casa do Alto
Alto de S. Bento
Évora





Pela última vez, durmo na Casa do Alto.
É uma noite sem lua mas com um céu vivo de estrelas.
Mas a minha atenção prende-se à cidade, à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno, um incêndio lavra interminávelmente, iluminando a noite. É uma "queimada", suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos.
Cidade, minha cidade... Que a terra tenha razão sobre ti, que essa força que mal sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e outro ignorado recomeço - que me importa?
A minha vida é "a" vida, só existe o que sou: não se imagina quem se não é..
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
...
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas.
Alguém deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao desastre. Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possivel construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o sei, não o sei...
...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.
...

Fecho o álbum, acendo um cigarro.
Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso: procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero «saber», sei já há tanto tempo... Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição.
Porque o escrevo de novo?
A verdade é que nada mais me importa.

E, todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma regulamentação é já do lado de fora.
Quem é fiel a uma certeza e a pode «ver» quando lhe apetece?
A fidelidade é então só teimosia ou cedência à parte convencional da «nobreza de carácter», da «honradez». Não é isso, não é isso que eu quero.
Em que iluminação eu acredito quando falo em nome dela e a imponho a Ana, aos outros?
Falo de cor - a iluminação é então a minha noite de secura.

Por isso, quando ela volta, eu me abro à sua devassa, à acidez da sua presença.
Por isso eu recebo ainda agora e falo dela e me aqueço e queimo ao seu lume.
Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim?
O que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte.
Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.


VERGÍLIO FERREIRA
in, APARIÇÃO






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