domingo, 10 de fevereiro de 2019

O Pavilhão das Peónias




A ópera kunqu (forma ancestral de ópera chinesa):


"O amor é de origem desconhecida, embora se torne cada vez mais profundo. Pode vitimar os vivos e o seu poder faz reviver os mortos. Esse mesmo amor não atinge a sua plenitude se alguém vivo não estiver disposto a morrer por ele ou se ele não puder restituir a vida a alguém que morreu. E, uma vez que neste mundo abundam os amantes que sonham, o amor que surge nos seus sonhos será necessariamente irreal? Pois não faltam neste mundo amantes que sonham. Só para aqueles cujo amor atinge a plenitude na almofada, e para quem o afecto de aprofunda apenas depois de se retirarem, o amor é completamente físico."
Prefácio de "O Pavilhão das Peónias"
Tang Xianzu
1598


A longa peça de 55 cenas, de Tang Xianzu (1550-1616), fala no amor de Liu Mengmei (cujo nome significa ameixoeira), um jovem estudante, e Tu Liniang, a filha de um alto oficial em Nan-an, na província de Kiangsi.
No jardim familiar, Tu Liniang adormece e sonha com um rapaz com quem acaba por ter relações sexuais no Pavilhão das Peónias. Ao acordar, não consegue esquecer o seu amado. Infeliz, deixa de comer e é-lhe diagnosticado mal de amor. Antes de morrer, Liniang pinta um auto-retrato e enterra-o debaixo de uma árvore do jardim, uma ameixoeira, onde mais tarde os seus restos são sepultados.
Pouco depois, o governador Tu, seu pai, é transferido para um posto militar no norte de Kiangsu.
Liu Mengmei está a caminho de Kwangtung, onde vai fazer o exame imperial em Hangchow. Mas adoece e a sua recuperação faz-se na casa de Verão do jardim da família Tu.
Debaixo da árvore, Meng-mei encontra o retrato de Liniang, que encontrou em sonhos, e deseja revê-la. Os seus desejos são concedidos. Uma noite Liniang aparece-lhe e pede-lhe para abrir o caixão. Liniang é encontrada viva, tão fresca e bonita como sempre.
O casal vai então para Hangchow, onde Mengmei completa o exame, mas o anúncio do resultado da prova é atrasado pela crise nacional, provocada pela invasão de um líder rebelde. Preocupada com o seu pai, Liniang pede ao marido que procure o governador, levando o seu auto-retrato para se identificar.
Por essa altura, o governador Tu já calara a rebelião. A vitória era celebrada com um banquete no seu escritório, quando chega Liu Meng-mei, clamando ser o genro do convidado de honra da festa.
O governador Tu, já informado da violação da sepultura da filha, suspeita tratar-se de um impostor. Prende-o e leva-lo sob escolta para Hangchow, onde pede uma audiência ao imperador.
Chegado a Hangchow, Liu Mengmei é salvo por um oficial, procurando o académico com honras de excelência no exame imperial. Por fim, numa audiência em frente do trono, Liu Mengmei prova a sua inocência com a ajuda da sua mulher ressuscitada. A peça termina, como era habitual nestas obras, com uma promoção do oficial e uma reconciliação familiar.




No Pavilhão das Peónias, uma rapariga de 16 anos escolhe o seu destino, preferindo morrer a viver uma existência que não deseja. Foi a primeira peça de ficção chinesa que retratou uma mulher pensante e revoltada contra os preceitos tradicionais, tendo fascinado as mulheres da época, que podiam ler a ópera mas não estavam autorizadas a vê-la ou ouvi-la.

Uma tendência começou, então, a aparecer: Tal como a protagonista da história, raparigas cultas e abastadas, geralmente entre os 13 e os 16 anos, com casamentos combinados, padeciam de mal de amor, deixando de comer e acabando por morrer. A esperança destas adolescentes era poder escolher o seu destino após a morte, como fizera o fantasma de Liniang. Moribundas, muitas escreveram poemas de amor, publicados após a sua morte, nomeadamente Xiaoqing e Yu Niang.

Esta é uma história de ficção passada no Terraço Panorâmico onde os mortos espreitam os vivos. Fala no Espelho da Retribuição, no tribunal dos juízes infernais e nos ritos do culto dos antepassados. Mas fala sobretudo nos sonhos e esperanças de uma menina que ainda quer ser noiva fantasma. Mais do que tudo, que não quer acreditar que morreu em vão.


O Pavilhão das Peónias teve impacto porque descreveu, com coragem, a curiosidade da mulher pelo sexo, o que foi sempre um tabu numa sociedade regida rigorosamente pelo confucionismo. O imperador podia ter três mil concubinas mas as pessoas comuns não podiam namorar livremente.

O autor da ópera, Tang Xianzu (1550-1616), é dos maiores dramaturgos da China.
O Pavilhão das Peónias, é considerado um dos Quatro Grandes Dramas Clássicos Chineses.
Através dos sonhos e da morte, O Pavilhão das Peónias narra o complicado romance de Du Liniang e Liu Mengmei e é classificado com outros três dramas Tang baseados em sonhos, a Lenda do Gancho de Cabelo Púrpura, Registo de Handan e Registo do Ramo do Sul como os Quatro Sonhos de Linchuan.
Como a peça romântica Tang mais famosa, O Pavilhão das Peónias tem sido encenado repetidamente ao longo de quase quatro séculos e continua a gozar de grande popularidade entre os amantes da ópera chinesa.

Esta história foi renovada através da adaptação do escritor de Taiwan, Bai Xianyong, estando na moda nos últimos anos.

Tam Mei Leng, professor de chinês na Universidade de macau disse:
“Tang Xian-zu acabou o Pavilhão das Peónias em Agosto de 1598, pouco depois de se demitir do cargo público que ocupava. Preferiu demitir-se por não suportar mais a burocracia da dinastia Ming, e nem esperou pela autorização imperial, limitando-se a abandonar as suas funções e regressar à sua cidade natal, LinChuan.

A burocracia e o comportamento dos académicos era muito estranha durante a maior parte da dinastia Ming. A maioria dos académicos e dos políticos era muito decente e honrada no trabalho, mas tinha uma vida dupla, indo a bordéis e adorando ver imagens pornográficas.
A hipocrisia das pessoas transformou o fim da dinastia Ming numa situação intolerável. Foi por isso que Tang escreveu esta história: Para exaltar o amor verdadeiro e mostrar que este sentimento tem o poder de fazer renascer as pessoas.
Tang quis mostrar a obra como um sonho entre um casal de namorados, ou seja uma história de amor para intelectuais. Este álibi conseguiu convencer os académicos da dinastia Ming que adoraram a ópera, mas o verdadeiro objectivo do autor foi de mostrar a perda do amor, ou melhor, o coração real das pessoas.
O Pavilhão das Peónias foi banido no fim da Dinastia Qing, em 1868, com o Imperador Tongzhi. Mas não por muito tempo, já que os imperadores da dinastia Qing não desgostavam da obra. Aliás, só a baniram para mostrar a sua autoridade ao povo.
Nos anos 60, a ópera foi de novo banida na Revolução Cultural por razões políticas. Considerava-se que a obra representava o passado que se queria esquecer para reformar o país, para além de ser considerada demasiado lasciva.
Actualmente, a juventude não tem grande paciência para ler ópera chinesa, e não apreciam ouvir a ópera tradicional.
Mas quando se interessam por esta obra, conseguem sentir a vitalidade da peça. Conseguem rever-se naquelas palavras, e entender que a vida tem mais do que os bens materiais.






O Pavilhão das Peónias
Livro de Lisa See 

O livro de 360 páginas, divididas em III Partes, tem como título original "Peony in Love", e foi publicado em 2007.

Lisa See traz-nos desta vez a história de Peónia, uma adolescente filha de um importante funcionário da Corte do imperador Kangxi. Aos 16 anos está noiva do filho do melhor amigo pai, que nunca viu. Ao início o leitor não pode deixar de ficar pasmo com a aparente aceitação de Peónia por este casamento arranjado e sem amor.
Claro que a história sofrerá uma reviravolta quando o pai de Peónia resolve dar-lhe como presente de aniversário uma representação da célebre ópera "O Pavilhão das Peónias" conhecida pela influência nefasta em tantas donzelas. Mas o pai de Peónia julga a filha imune a tais influências, pois esta mostrara-se sempre uma jovem ajuizada e obediente à sua vontade.
Nesse mesmo dia fatídico em que assistirá à ópera, toda a vida da jovem se vai alterar traçando o destino e dando origem a uma história de um amor impossível digna de Romeu e Julieta que com certeza deliciará todos os leitores.
É como se Peónia antes não passasse de uma lagarta como uma filha obediente e resignada, para se transformar numa borboleta, numa rapariga apaixonada, que deixa de ser uma sombra da vontade do pai e ganha voz própria e como todas as personagens desta autora torna-se numa personagem feminina muito forte.

Lisa See mergulha numa profunda pesquisa histórica sobre os desafios das mulheres chinesas para serem ouvidas e respeitadas nos seus relacionamentos, e assim nasce este livro, uma inesquecível viagem de desejo, angústia, prazer e dor pelo universo feminino.

No século XVII, havia mais mulheres escritoras na China do que em todos os demais países do mundo juntos. Elas também eram grandes leitoras e cresciam apaixonadas pela história da jovem donzela que toma as rédeas do próprio destino e prefere morrer de amor, na ópera O pavilhão das Peónias, de 1598, a se sujeitar a um casamento arranjado pela família. Elas não tinham autorização para assistir à encenação do espetáculo, mas podiam acompanhar sua versão escrita.
Três dessas mulheres, que foram, coincidentemente, casadas com o mesmo homem, uma após a outra, relataram em livro, "Comentários das três esposas", os seus dilemas amorosos depois das provocações causadas pela leitura da ópera.

Lisa See parte desses dados históricos desse livro e acrescenta-lhes elementos de ficção para escrever o romance, no qual conta a trajetória da jovem Peónia, de 16 anos, que, a exemplo da protagonista da ópera clássica, torna-se uma donzela doente de amor – e, portanto, avessa aos casamentos acertados por famílias. Em busca da união com seu amado Ren, uma metáfora para os desafios das chinesas de serem ouvidas e respeitadas em seus relacionamentos.

No livro, a jovem Peónia, de 16 anos, sonha descobrir o amor embalada pela história da donzela Liniang, personagem central da ópera de Tang Xianzu. Mas, na China do século XVII, das Dinastias Ming e Quing, as meninas eram destinadas a casamentos acertados por suas famílias. Mesmo na casa dos Chen, uma abastada família de Hangzhou cujas mulheres tinham acesso à educação e à cultura, as regras não eram diferentes.

Apesar da obediência aos seus pais e à tradição, a jovem Peónia não deixava de ter seus próprios sonhos e ansiava por realizá-los. Foi durante a encenação da ópera nos jardins da família Chen que Peónia, escondida atrás de um biombo, foi surpreendida pelo encontro com Ren. A partir daí, a jovem sente o despertar dos mesmos sentimentos que tomaram a heroína de Xianzu: o imenso desejo de viver ao lado do homem que conquistou seu coração. A exemplo da personagem da ópera clássica, Peónia se torna uma donzela doente de amor e começa a sua jornada em busca da união com Ren. O caminho feito pela menina passa por épocas e lugares distintos, cada um com milenares rituais e tradições. Como um anjo, Peónia velará pelo seu escolhido, num amor que vai além da vida.


Lisa See começa o livro assim:
"A Dinastia Ming caiu em 1644, dando lugar à dinastia Qing, liderada pelos manchu. Durante cerca de 30 anos, o país foi palco de profunda agitação. algumas mulheres viram-se forçadas a abandonar os seus lares; outras fizeram-no por decisão própria. Milhares delas tornaram-se poetisas e escritoras e tiveram a sua obra publicada. As donzelas vítimas do mal de amor faziam parte deste fenómeno. As obras de mais de vinte destas jovens sobreviveram até aos nossos dias.
Segui o Calendário Tradicional Chinês para apresentar as datas.
O Imperador Kangxi reinou de 1662 a 1722.
A ópera de Tang Xianzu, O Pavilhão das Peónias, foi produzida e representada em 1598.
Chen Tong, a personagem Peónia neste romance, nasceu por volta de 1649.
Tan Ze nasceu por volta de 1656.
Quian Yi por volta de 1671.
Em 1694, o livro "O Comentário das Três Esposas" passou a ser o primeiro livro do género escrito e publicado por mulheres em qualquer parte do mundo."

E acaba o livro,  com uma Nota da Autora:

" Em 2000, escrevi um breve artigo para a revista Vogue sobre a produção que o Lincoln Center fizera de "O Pavilhão das Peónias". Enquanto fazia pesquisa para o artigo, deparei-me com as donzelas vítimas do mal de amor. Deixaram-me intrigada e continuei a pensar nelas muito depois de ter terminado o artigo. Costumamos ouvir dizer que no passado não existiam mulheres escritoras, artistas, historiadoras ou chefes, mas é evidente que elas faziam todas estas coisas. O que acontecia com frequência era perder-se o que faziam, cair no esquecimento ou ser deliberadamente encoberto. De modo que, sempre que arranjava tempo aqui e ali, procurava informações onde quer que fosse sobre as donzelas doentes de amor, e acabei por descobrir que faziam parte de um fenómeno muito mais vasto.
Em meados do Séc.XVII, no Delta do Yangtsé, na China, o número de escritoras em obras publicadas era superior ao do resto do mundo na mesma época. Com isto quero dizer que havia milhares de mulheres - de famílias abastadas, com os pés enfaixados e que muitas vezes viviam enclausuradas, - cujas obras eram publicadas. alguma famílias publicavam um único poema escrito por uma mãe ou filha a quem desejavam prestar homenagem, mas existiam outras mulheres - escritoras profissionais - que não só produziam para um público vasto, como também sustentavam as famílias com essa actividade. Como podem tantas mulheres ter feito algo tão extraordinário sem que se soubesse? Por que motivo ninguém sabia? Foi então que encontrei " O Comentário das Três Esposas" - o primeiro livro do género a ser publicado no mundo, escrito por mulheres - três esposas, ainda por cima. Nessa altura, o meu interesse transformou-se em obsessão.
Há aqui vários elementos: a ópera da Tang Xianzu, as donzelas vítimas do mal de amor, a história de "O Comentário das Três Esposas", e as alterações na sociedade que permitiram que esta obra fosse escrita.
Sei que estes elementos são complicados e se sobrepõem um pouco, por isso peço-vos que tentem acompanhar-me:

TANG XIANZU situou o "Pavilhão das Peónias" na Dinastia Song (960-1127), mas estava a escrever sobre a Dinastia Ming (1368-1644), uma época de fervor artístico, bem como de corrupção e de agitação política.
Em 1598, terminada a ópera, Tang tornou-se um dos mais importantes promotores do qing - emoções profundas e amor sentimental. Como todos os bons escritores, Tang escreveu sobre o que conhecia, mas isso não implicava que o governo estivesse necessariamente disposto a ouvir o que tinha para dizer. Quase de imediato, vários grupos exigiram que a ópera fosse censurada, pois era considerada demasiado política e lasciva. Novas versões surgiram quase em simultâneo, até que por fim, das 55 cenas originais, apenas umas insignificantes 8 foram representadas. O texto sofreu um tratamento ainda pior.  Algumas versões foram resumidas, enquanto outras foram revistas ou totalmente reescritas, de forma a ajustarem-se à mudança dos costumes da sociedade.
Em 1780, durante o Reinado de Qianlong, a oposição à ópera sofreu uma escalada e esta foi incluída na lista negra e rotulada de "profana". Mas só em 1868 o Imperador Tongzhi emitiu a primeira proibição oficial, que qualifica "O Pavilhão das Peónias" como uma obra devassa, e ordenou que todas as cópias fossem queimadas, e que fossem proibidas todas as representações.
A ópera continuou a ser censurada até aos nossos dias.
A produção do Lincoln Center foi temporariamente atrasada quando o governo chinês descobriu o conteúdo das cenas restauradas e proibiu a saída do país dos actores, do guarda-roupa e dos cenários, demonstrando de novo que quanto mais as coisas mudam, mais permanecem na mesma.
Se exceptuarmos as ligações sexuais entre duas pessoas solteiras e as críticas do governo - ambas graves, cada uma à sua maneira, julgo eu - por que razão provocou a ópera tamanha agitação?
"O Pavilhão das Peónias" foi a primeira peça de ficção da história da China em que uma heroína - uma rapariga de dezasseis anos - escolhia o seu próprio destino, o que era chocante e, ao mesmo tempo, emocionante. Isto seduzia e fascinava as mulheres que, com raras excepções, eram autorizadas a ler a ópera, mas que nunca a podiam ver ou ouvir. A paixão que esta obra suscitou já foi comparada ao fanatismo provocado pelo "Werther" de Goethe, na Europa do Séc. XVIII, ou mais recentemente, por "E tudo o Vento Levou", nos EUA. Na China, raparigas cultas e de famílias abastadas - normalmente entre os treze e os dezasseis anos e com casamentos já combinados - mostravam-se particularmente sensíveis à história. Acreditando que a vida imita a arte, na esperança de, algures na morte, poderem escolher os seus destinos, tal como o fizera o fantasma de Liniang.
Ninguém sabe ao certo o que vitimou as donzelas doentes do mal de amor, mas pode ter sido a fome auto-infligida. Temos tendência a pensar na anorexia como um problema dos tempos modernos, mas não é. Quer as Santas da Idade Média, quer as donzelas vitimas do mal de amor da China no Séc. XVII, ou as adolescentes dos nossos dias, as mulheres sempre tiveram necessidade de uma pequena dose de autonomia. Como explicou o académico Rudolph Bell, ao deixarem-se morrer de fome, as jovens conseguem transformar o desafio do mundo exterior - no qual não têm controlo sobre os seus destinos e enfrentam uma derrota quase certa - numa luta interior destinada a conquistar o domínio de si próprias e dos seus anseios físicos. Enquanto estavam a morrer, muitas donzelas doentes de amor - entre elas Xiaoqing e Yu Niang, que surgem nesta história - escreveram poemas que foram publicados após a sua morte.
Mas estas mulheres escritoras - quer fossem donzelas vitimas de mal de amor ou membros do clube de poesia as Cinco do Jardim das Bananas - não se limitaram a aparecer, para depois desaparecer, desfazendo-se em nada. A China sofreu uma mudança dinástica em meados do Séc. XVII, quando a Dinastia Ming caiu e os invasores Manchu, vindos do norte, fundaram a Dinastia Qing. Durante cerca de 30 anos, o país mergulhou no caos. O velho regime havia sido corrupto. A guerra fora brutal. ( Em Yangzhou, onde a avó de Peónia morreu, consta que foram mortos 80 000 pessoas num espaço de tempo entre cinco a dez dias). Muita gente ficou sem casa. Os homens foram humilhados e forçados a rapar a cabeça como símbolo de vassalagem para com o novo imperador. Sob o novo regime, o sistema escolástico imperial vacilou, e a forma tradicional de os homens conquistarem prestígio, riqueza e poder deixou subitamente de ter valor. Os homens dos níveis mais elevados da sociedade retiraram-se do governo e da vida escolástica para se dedicarem a coleccionar pedras, a escrever poesia, a provar chá e a queimar incenso.
As mulheres, que já estavam muito baixo na escala social, sofreram ainda mais. Algumas eram trocadas e vendidas " a peso, como peixe", e tinham menos valor que o sal. Muitas - como a Xiaoqing real ou como a Salgueiro do romance - tornaram-se "cavalos escanzelados" e eram vendidas como concubinas para homens cujas mulheres não lhes davam filhos varões. Mas algumas tinham destinos muito diferentes e muito melhores. Com tantas outras coisas com que se preocupar, os homens deixavam o portão da frente aberto e as mulheres, que durante tanto tempo tinham vivido enclausuradas, puderam sair. Tornaram-se escritoras profissionais, artistas, arqueiras, historiadoras e aventureiras. Outras, - naquilo que pode ser considerado uma forma precoce de grupos de leitura e escrita - reuniam-se para escrever poesia, ler livros, e discutir ideias.  Por exemplo, as mulheres que eram membros das Cinco do Jardim das Bananas (mais tarde Sete) realizavam passeios recreativos, escreviam sobre o que viam e sentiam, continuando a ser consideradas mulheres requintadas, nobres, orgulhosas e honradas. O seu êxito não teria sido alcançado sem o crescimento da literacia feminina, numa economia saudável, fábricas de impressão em massa e uma população masculina na sua maioria distraída.
Mas nem toda esta actividade de escrita era feliz ou comemorativa. Algumas mulheres, como a mãe de Peónia, deixaram poemas escritos em paredes, que depois se tornaram populares entre os letrados pela sua tristeza e pela curiosidade voyeurista de ler os pensamentos de alguém, registados perto do momento da morte. Estes textos, juntamente com os das donzelas vítimas de mal de amor, estavam imbuídos de um tipo de romantismo que combinava os ideais qing com o fascínio inspirado por uma mulher a definhar devido a uma doença ou febre puerperal, que era martirizada ou que, sozinha num quarto vazio, morria de saudades do amado.

Chen Tong, Tan Ze e Qian Yi foram mulheres reais.
O nome de Chen Tong foi alterado por ser igual ao da sua futura sogra e não há notícia do seu nome verdadeiro.
Tentei manter-me tão fiel quanto possível à história delas - a tal ponto que era frequente sentir-me constrangida por factos que pareciam demasiado fantásticos ou fruto de coincidência para serem reais. Por exemplo, Qian Yi usou a tábua de antepassado da família para realizar uma cerimónia debaixo de uma ameixieira, a fim de homenagear a personagem de Du Liniang, que depois a visitou, a ela e a Wu Ren, num sonho. Porém, tanto quanto sei, Chen Tong nunca conheceu o seu futuro marido, nem tão pouco regressou à terra sob a forma de fantasma faminto.

Wu Ren queria que todas as suas 3 mulheres fossem reconhecidas, mas também estava empenhado em protegê-las, pelo que na capa do livro estava escrito "O Comentário Feito em Colaboração pelas Três Esposas de Wu Wushan sobre O Pavilhão das Peónias". Wushan era um dos pseudónimos que ele usava quando escrevia. Os nomes Tan Ze, Qian Yi e Chen Tong não apareciam senão na página de rosto da obra e no material suplementar.
Depois de publicado, o livro foi alvo de grande aclamação e lido por muita gente. Contudo, com o tempo, a maré inverteu-se e os louvores foram substituídos por críticas acerbas e, por vezes, mordazes. Wu Ren foi acusado de ser um pateta tão ansioso por promover as esposas que perdeu a noção das conveniências. Os moralistas, que durante anos se tinham manifestado contra "O Pavilhão das Peónias", defenderam que a obra fosse censurada através da condenação familiar, de princípios religiosos e de proibições oficiais. Propuseram queimar todas as cópias de "O Pavilhão das Peónias" - juntamente com todas as obras complementares, como o "Comentário" - declarando que seria a maneira mais eficaz de eliminar as palavras ofensivas de uma vez por todas. A leitura desses livros, argumentavam, podia levar as mulheres - que eram tolas e simplórias por natureza - a tornarem-se dissolutas e empedernidas. Porém, acima de tudo, recordavam que apenas uma mulher ignorante pode ser considerada uma boa mulher. Os moralistas mandaram os homens recordar às mães, às esposas, às irmãs e às filhas que as Quatro Virtudes não incluíam qualquer "escrita" ou "eu". As mesmas coisas que tinham inspirado as mulheres a escrever, a pintar, e a sair em passeio eram agora viradas contra elas. O regresso ao ritual significava apenas uma coisa: um regresso ao silêncio.

Foi então que os argumentos voltaram a mudar, concentrando-se de novo, com intensidade, em "O Comentário". Como podiam 3 mulheres - esposas, ainda por cima - ter uma compreensão tão profunda do amor? Como podiam ter-se empenhado em escrever algo com tanto conhecimento? Como teriam conseguido reunir todas as edições da ópera para as comparar? Porque tinham os manuscritos originais, da autoria de Chen Tong e Tan Ze, desaparecido em incêndios? Isto parecia muitíssimo conveniente, uma vez que impedia a comparação dos estilos caligráficos das 3 esposas. No material suplementar, Qian Yi escreveu que fizera uma oferenda às suas duas predecessoras debaixo de uma ameixieira. Ela e o marido tinham descrito um sonho onde encontravam Du Liniang. Seria possível que os dois não distinguissem a realidade da ficção? As pessoas só podiam chegar a uma conclusão: tinha sido Wu Ren a escrever "O Comentário".
Eis a resposta dele: "Aqueles que acreditam, que acreditem. Aqueles que duvidam, que duvidem".

Entretanto, a ordem fora restabelecida em todo o território.
O imperador fez várias proclamações, todas com o objectivo de voltar a controlar a sociedade. As nuvens e a chuva (relações sexuais), anunciaram, deveriam ocorrer apenas entre marido e mulher, e somente com base no li ( a razão e as doutrinas) e nunca no qing (emoções profundas e amor sentimental). Não deveriam ser produzidos mais livros femininos confidenciais, a fim de que uma rapariga que casasse e partisse para casa do esposo não tivesse a menor ideia do que iria acontecer na noite de núpcias. O imperador concedeu também ao pai o controlo total sobre as suas filhas: se uma jovem desonrasse os antepassados, ele tinha o direito de a esquartejar. As mulheres voltaram rapidamente a serem enclausuradas atrás de portões fechados e aí permaneceram mais ou menos até à queda da Dinastia Qing e à formação da República da China, em 1912.

EM MAIO DE 2005, dez dias antes de me deslocar a Hangzhou para fazer uma pesquisa sobre as 3 esposas, recebi um telefonema da Revista More, a perguntar se queria escrever um artigo sobre a China. O momento era oportuno. Além de Hangzhou, visitei também pequenas cidades ribeirinhas do Delta do Yangtsé (muitas das quais pareciam ter cristalizado no tempo, há 110 anos ou mais), locais referidos no romance (as quintas de chá e os diversos templos de Longjin), e Suzhou ( para me deixar inspirar pelos grandes domínios construídos no meio de jardins).
O que me moveu a escrever esse artigo prendia-se com a necessidade de encontrar a donzela vítima de mal de amor dentro de mim. Tenho de admitir que não foi muito difícil, já que passo a maior parte do tempo obcecada com qualquer coisa; mas a missão obrigou-me a olhar para o meu íntimo e a pensar no que verdadeiramente significava para mim a escrita e o desejo que as mulheres têm de se fazer ouvir - pelos maridos, filhos e empregados.
Ao mesmo tempo, reflecti muito sobre o amor.
Todas as mulheres  do mundo - e homens também, evidentemente - desejam o tipo de amor que os transforma, que os eleva do quotidiano e dá coragem para para sobreviver às nossas pequenas mortes: a mágoa provocada pelos sonhos não concretizados, por desilusões pessoais e profissionais, e por ligações amorosas falhadas."



NOTA:
No I Ching, no hexagrama 9, o Poder de Dominar o Pequeno, tem 2 trigramas nucleares: o Li e o Tui. O Li é o fogo, a inteligência, a razão, a iluminação e a erudição. 
O Tui é a alegria, o contentamento, o Lago e as palavras.
O Li corresponde ao estudo das doutrinas, e ensinamentos deixados pelos antigos sábios da Humanidade. 
O I Ching diz:
"Assim o homem superior aperfeiçoa a forma externa de sua natureza"
Antes de se submeter às disciplinas, é bom estudar profundamente a fim de se nutrir para, logo depois, compreender melhor o caminho que se está a trilhar.
Aperfeiçoar a natureza externa é realizar o estudo dos antigos patriarcas.
Sem energia interna, e suavidade externa, não poderá aguentar o longo caminho.


Os hexagramas são símbolos constituídos por seis linhas Yīn ou Yáng
Os Trigramas são as 8 linhas que formam cada hexagrama, que correspondem às 8 possibilidades de combinação de Yin Yang em três linhas, os Trigramas inferiores e os superiores.
As linhas contínuas representam o Yang (o convexo, a força, o movimento) enquanto as linhas quebradas representam o Yin (o concavo, a fraqueza, a quietude).
A representação dos oito trigramas desenhados em torno de um mesmo centro é chamado em chinês de Bagua.





Sem comentários:

Enviar um comentário