quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Judas





Amós Oz é o mais importante escritor israelita da atualidade.
Candidato constante ao prémio Nobel, fez da sua obra uma reflexão profunda sobre o destino do povo judeu.
  • Quais cicatrizes a história turbulenta do país deixou sobre os seus habitantes? 
  • Que marcas imprime no indivíduo uma vida marcada pela guerra? 
  • Há solução possível para um conflito que remonta a tempos imemoriais?
Ainda menino, Amós Oz descobriu o que é ser mal visto por seus pares.
No longínquo ano de 1946, com Israel sob domínio britânico, ele ousou fazer amizade com um sargento inglês. Em sua maioria apoiante de grupos rebeldes sionistas, que buscavam banir o Mandato Britânico da Palestina, a sua vizinhança enfureceu-se. Para eles, qualquer aproximação com o inimigo constituía um imperdoável ato de traição. Um judas.

Em relação ao conflito israelo-palestino, sempre defendeu soluções menos belicistas para o embate, como a criação de dois estados (Israel e Palestina), e por isso é visto por muitos de seus conterrâneos como um inconfidente da causa israelita.

Não é por acaso que, o tema da traição está no centro do seu novo romance, “Judas”.
O livro traz uma ideia diferente da palavra: a de que o traidor pode ser o mais leal e devotado dos indivíduos. Aquele que, em meio ao medo de mudança, é injustiçado por tomar decisões impopulares, mas necessárias.
Numa das entrevistas que deu ele disse:
“ Não me interessa o traidor trivial, que vende informações por dinheiro. Isso é para romances de espionagem, para o James Bond. O que me entusiasma é um tipo específico de traidor, incompreendido por estar à frente do seu tempo ou por propor grandes mudanças. E que acaba visto como traidor por pessoas que não aceitam as mudanças, mas as temem.”
Faleceu há pouco tempo, no dia 28 de Dezembro de 2018, com 79 anos em Tel Aviv, cidade onde vivia. Nasceu em Jerusalém.

Como prometido no último post, cá estou para falar do livro:
“Judas” é um livro sobre traidores e amantes, pais e filhos, numa prosa sensível e bem-humorada, e evoca conflitos pessoais e políticos, teologia e heresia, lealdade e traição, explorando o lado sombrio da história judaico-cristã e o lado trágico da história judaico-árabe.
A partir da história de amor entre um estudante e uma mulher misteriosa, Amós Oz questiona a fundação do estado de Israel e as guerras que abalam o Médio Oriente.

O protagonista é Shmuel Asch, um estudante que se vê em apuros no inverno de 1959: sua namorada deixou-o, os seus pais faliram e ele foi obrigado a abandonar os estudos na universidade e interromper a sua pesquisa — trata-se de uma investigação sobre a figura de Jesus sob a ótica dos judeus. Passado o desespero inicial, ele encontra morada e emprego numa antiga casa de pedra, situada num extremo de Jerusalém. Durante algumas horas diárias, a sua função é servir de interlocutor para um velho inválido e perspicaz, chamado Gershom Wald. Na mesma casa, vive uma mulher bonita e sensual chamada Atalia Abravanel, com quase o dobro da sua idade. Shmuel é atraído por ela, até que a curiosidade e o desejo transformam-se numa paixão sem futuro. Entre várias discussões filosóficas e revelações históricas (o pai de Atalia, Shaltiel Abravanel, era um militante que foi expulso do movimento sionista por ser contra a transformação de Israel num país independente) a dupla inicia nas cicatrizes do passado, repletas de falsos traidores. Muitos deles poderiam ter mudado a violência na região, se tivessem sido melhor compreendidos.

Paralelamente à trama, Oz desenvolve uma tese polémica, discutida pelos personagens.
O livro subverte a imagem do Judas bíblico: em vez do traidor histórico que vendeu Jesus, ele seria o mais fiel de todos os discípulos do profeta. A ideia pode enfurecer cristãos e judeus, mas o objetivo de Oz é outro. Ao longo dos séculos, a figura de Judas tornou-se, nas palavras do autor, uma espécie de “Chernobyl do antissemitismo”, sempre usada para atacar os judeus. Sua reabilitação é uma maneira de desacreditar os antissemitas, que veem em todo judeu um traidor.
Amos Oz diz:
“Neste romance, Judas é o primeiro cristão do mundo, e talvez o último. Eu sei que a ideia contém uma provocação, mas o livro também provoca muitos leitores israelenses, por apresentar o personagem de Shaltiel Abravanel, que não acredita na criação de um Estado de Israel. Precisamos de líderes israelenses, palestinos e árabes com coragem para tomar decisões vistas como “traição” pelo seu próprio povo. Se estes líderes vão aparecer, não tenho como dizer. É difícil ser profeta na terra do profeta. Por aqui há muita competição no negócio das profecias.”
Disse também que:
"Há uma diferença entre ser pacifista e um ativista da paz. O pacifista acredita que se pode dar a outra face ao agressor, eu não. Ou considera que a guerra é o último passo e eu não penso assim. No entanto, se me perguntar se defendo as atuais políticas de Israel, a resposta é não. Sou contra, mas não por ser pacifista, antes por achar que a política atual do governo é egoísta e perigosa."
Neste romance cheio de lirismo, Amós Oz retorna ao cenário de alguns de seus livros mais apreciados, entre eles “Meu Michel” e “De amor e trevas: a Jerusalém dividida em meados do século XX”. Ao lado de seus personagens, Oz é corajoso o bastante para questionar o estabelecimento de um estado para os judeus, com suas consequentes guerras, e se pergunta se seria possível eleger um caminho histórico diferente.
Como lembra o ensaísta Alberto Manguel, neste livro Amós Oz revolve, com profunda inteligência e paixão, o coração da tragédia palestina. Mais uma vez, Oz nos dá uma absoluta, necessária obra-prima.

Mas de volta ao livro:
O equívoco maior, segundo o autor, dá-se com Judas Iscariotes (assim chamado porque ele era de Cariot, uma cidade na Judeia) que durante milénios é tido como o judeu que traiu Jesus, seja por apontá-lo  ou  por  beijá-lo,  sendo  que  o  beijo  seria  a  senha  entre  Judas  e  os  romanos  para identificá-lo.  Fez  isso para  alertar  os  algozes sobre  quem  era  o  acusado no meio  dos  outros apóstolos na praça em que se ergueria uma cruz, instrumento de tortura e morte que, inventado ou não pelos romanos, era por eles aplicado àqueles que julgavam “delinquentes” ou“dissidentes”.
Para  o  “serviço”  prestado,  Judas teria  recebido  trinta  moedas.  O  romance  faz uma  minuciosa revisão do incidente que teria acontecido há  mais  de  dois  mil  anos, dando voz a Judas, que se explica pela extensão de um longo capítulo na página 47.
Pela  voz  do  próprio  Judas  e  por  explanações  distribuídas  ao  longo  do  romance,  Oz procura demonstrar que, ao contrário do que se acredita, Judas foi um dos mais fiéis seguidores de Jesus, talvez até o maior dentre eles, pois acreditou tanto na sua divindade e imortalidade que o estimulou a ir a Jerusalém e deixar-se levar pelos romanos. Isto porque, aceitando a divindade de Jesus, Judas tinha a certeza de que o mestre não chegaria a ser crucificado, saltaria da cruz e seria consagrado  como  o  divino  filho de Deus. Para Judas, Jesus era imortal,  como  é característico de uma entidade divina, o que, no entanto, não se  mostrou verdadeiro.  Diante  do fracasso do seu plano  e da sua desilusão, Judas sentiu-se culpado por ter convencido Jesus a deixar-se prender, e derrotado ao vê-lo morto. Assim, o peso da culpa e o sentimento de derrota levaram-no ao suicídio.
Amós Oz procura mostrar que é pura invenção pós-data que Judas se tenha vendido por trinta  moedas.  Sendo  dono  de  terras  e  de  rebanhos,  não  iria denunciar  Jesus  por  tal  ninharia (como seria  a  quantia  para um homem  tão  abastado)  ou  por  dinheiro  algum,  visto  serem  dois
grandes  amigos.  De  todos  os  apóstolos,  Judas  foi  o  mais deslumbrado,  o  mais  convicto  da divindade de Jesus e o mais  fiel  de  seus  seguidores. Tampouco  teria  o  encargo de mostrar aos romanos  quem  era  Jesus,  pois quem  o desconhecia?  Era  o  ser  mais  visto, ouvido,  seguido  e perseguido daquelas paragens. No entanto, Judas foi estigmatizado como seu traidor e os judeus são julgados, tantos mil anos passados, como seus herdeiros morais.

Num passado não muito distante, a efígie de um homem vestido com trapos era erguida nalguma árvore ou parede para ser espancada ou “malhada”  por homens, mulheres e crianças com  bastões  ou martelos nas mãos. A  “malhação de  Judas”  tem  sido  executada  no  “sábado  de  Aleluia” em  inúmeras localidades onde o Catolicismo é religião predominante. Com a passagem do tempo, em alguns locais têm-se substituído tais imagens por figuras de administradores e políticos contra os quais o povo guarda ressentimentos. A pancadaria expressaria desgosto popular pelos rumos do governo reinante.

O romance também introduz um lado político (como se a questão do Judas não fosse política o bastante, ainda que tenha aspecto religioso). Amós penetra por terreno bem espinhoso, mas,  na  verdade, está  dentro  dessa  arena  há muito  tempo. Seu posicionamento  nesse  campo é
universalmente conhecido, e o romance apenas coloca em formulação ficcional o que o autor tem dito e escrito em artigos ao longo dos anos. No campo da política, o embate emblemático entre Ben Gurion e o personagem Shaltiel Abravanel, como narrado em Judas, revela o que cada um deles pensava e como agia em relação ao sionismo. O plano de Ben Gurion foi o que prevaleceu, como  se  sabe,  enquanto  Abravanel  representaria  os  opositores  a  esse  plano. Ele terminou seus dias sozinho, perdera tanto os seus amigos árabes como seus amigos judeus que o chamavam de traidor.  Shaltiel  é  o  pai falecido de Atalia, mulher de 45 anos que mora na casa onde um jovem, Shmuel Asch, conseguiu um  emprego  de acompanhante  e  interlocutor  de Guershon  Wald,  um  senhor semi-inválido. Atalia é nora de Wald e viúva do seu filho único Micha, que morreu na guerra de 1948, cerca de doze anos antes do foco da narrativa. Amós Oz reuniu pela duração de um inverno, no cenário de uma casa de pedra, em Jerusalém, essas três pessoas: Atalia, Shmuel e Guershon, mais os fantasmas de Micha e de Abravanel. Shmuel se apaixona por Atalia, 25 anos mais velha do que ele, depois de um revés sentimental com a sua ex-namorada Yardena, que o abandonara pouco antes para se casar com o seu ex-namorado.

Guershon Wald falava e gritava ao telefone com personagens que se mantiveram incógnitos em todo o decorrer da narrativa. Contudo, como professor aposentado, encobre mal uma vibrante passagem pela história de Israel como militante do sionismo, representando a geração que fundou o país e que o manteve bem montado até o aparecimento da geração seguinte, representada por seu único filho, Micha, assassinado numa das batalhas para manter o sionismo vivo, assassinado pelos árabes na Guerra da Independência quando foi criado o Estado de Israel. O velho Wald é um professor aposentado, uma pessoa muita culta que gosta de falar horas sobre política, filosofia e religião, e ao passar os dias a conversar com ele e descobrindo aos poucos a história daquela família, Shmuel começa a mudar o seu ponto de vista sobre algumas coisas. Os dois costumam discorrer a respeito do tema da pós-graduação de Shmuel sobre Jesus na ótica do povo judeu. Muitos evitam tocar no assunto, já alguns judeus na ânsia de levantar dúvidas sobre a divindade de Jesus e diminuir a sua importância, procuram até mesmo difamá-lo. Wald é contra essa linha de pensamento, embora concorde que gostaria de questionar Jesus sobre coisas como “amar a todos o tempo todo”. Mas o que intriga tanto Shmuel quanto Wald são as controvérsias sobre a relação entre Jesus e Judas Iscariotes, algo que já foi referido no evangelho apócrifo de Judas, um manuscrito redigido há cerca de 1.700 anos e que ficou a maior parte do tempo perdido numa caverna no deserto egípcio. Se Judas não tivesse supostamente traído Jesus e o entregado aos romanos, como seria o cristianismo moderno? Jesus nasceu judeu e não seria sua intenção criar uma nova religião. O fato é que desde então o estigma de “assassinos de Jesus” ajudou a selar o destino do povo judeu em diversos momentos históricos.

Há um diálogo muito interessante entre Wald e Shmuel:
Shmuel disse: “Na Operação do Sinai, o seu Ben-Gurion amarrou Israel à cauda de duas potências coloniais condenadas à decadência, a França e a Inglaterra, e com isso intensificou o ódio dos árabes por Israel, convencendo definitivamente os árabes de que Israel era um corpo estranho na região, um instrumento do imperialismo mundial.”
Wald respondeu-lhe: “ Antes da Operação de Sinai, os teus queridos árabes também não morriam de amores por Israel, e até…”
Shmuel interrompeu: “ E porque haviam de gostar de nós? Porque é que acha que os árabes não têm direito de se opor com todas as suas forças aos estranhos que aqui chegaram de repente como se fossem de outro planeta e lhes tiraram a terra, os campos, as aldeias, as cidades, as sepulturas dos seus antepassados, e a herança dos seus filhos? Nós dizemos que viemos para Israel apenas para construir e ser construídos, para reviver os tempos de outrora, para resgatar a herança dos nossos antepassados, etc…, mas diga-me por favor se existirá no mundo um povo capaz de receber de braços abertos uma súbita invasão de centenas de milhares de estranhos, seguidos de milhões, que aterraram aqui de longe, com o argumento bizarro de que os livros sagrados que trouxeram consigo lhes prometem a eles, e só a eles, todo o país?”
Wald respondeu: “ Em 1948, Shaaltiel Abravanel, pai de Atália, tentou em vão convencer Ben-Gurion de que ainda era possível chegar a acordo com os árabes sobre a expulsão dos britânicos e o estabelecimento de uma comunidade conjunta de árabes e judeus, desde que desistíssemos da ideia de um Estado Judeu. Foi esse o motivo do seu afastamento do Comité Executivo Sionista. Os árabes não esqueceram a afronta da derrota de 1948, nem a conspiração que tecemos contra eles ao nos aliarmos com a Inglaterra e com a França há 3 anos, mostrando aos árabes que a nossa intensão seria expulsar todos os árabes dali. ”
Shmuel respondeu: “Até certo ponto, é possível entender a alma de um povo que durante milénios conheceu bem a força dos livros, da oração, dos mandamentos, da aprendizagem e da memorização, da devoção religiosa, do comércio e do negócio, mas que apenas conheceu a força física no seu corpo espancado. Esse mesmo povo, agora possui armas pesadas. Tanques, canhões e aviões a jato. Ficou inebriado com a força que tem, e passou a ter a tendência para acreditar que com a força militar pode fazer o que quiser, conquistar o território que quiser, sem terem noção dos limites do uso dessa força. A verdade é que, toda a força do mundo não chega para transformar um inimigo num amigo. É possível transformar um inimigo num escravo, mas não num amigo. Toda a força do mundo não consegue transformar um fanático num homem esclarecido. Toda a força do mundo não chega para transformar um homem sedento de vingança num amigo. A força, por enquanto, tem o poder de evitar o nosso extermínio. Mas, não responde nem resolve o conflito. Apenas adia a catástrofe por pouco tempo.”
Wald respondeu: “O pai de Atalia sonhava que judeus e árabes se entenderiam desde que a incompreensão e o desejo de vingança existente entre eles desaparecesse. Mas enganou-se. Entre judeus e árabes mimca existiu incompreensão. Pelo contrário. Há várias décadas que entre ambos existe um entendimento absoluto e total: estão ligados a esta terra porque é a única que têm. Os árabes sabem que nós nunca desistiremos dela, e nós sabemos que eles nunca desistirão dela. Este entendimento mútuo é perfeitamente claro. Não existe nem nunca existiu qualquer tipo de incompreensão. Sheltiel achava que todos os conflitos no mundo se resumem a equívocos, e que com uma dose de aconselhamento familiar, de terapia de grupo, e um pouco de boa vontade, tornamo-nos imediatamente irmãos de coração e de alma e disputa acaba. Ele acreditava que bastava que ambos se conhecessem para que se estimassem. Que bastava ter uma conversa de amigos para que os que se odiavam caíssem nos braços uns dos outros em lágrimas. Mas eu digo-lhe: Dois homens que amam a mesma mulher, dois povos que reivindicam a mesma terra, por muitos rios de lágrimas que chorem juntos, esses rios nunca apagarão o ódio e desejo de vingança que sentem.”

Para Wald não nascemos para amar mais do que um punhado de pessoas: 
“O amor é um evento íntimo, estranho e cheio de contradições, pois mais de uma vez nós amamos alguém por egoísmo, por cupidez, por desejo físico, por vontade de dominar o amado e subjugá-lo, ou, ao contrário, devido a uma espécie de desejo de ser dominado pelo objeto de nosso amor, e geralmente o amor se parece muito com o ódio e é mais próximo dele do que imagina a maioria das pessoas”.
Wald acha que alguns judeus são tão cheios de ódio que se tivessem o poder e o domínio agiriam da mesma maneira que os cristãos que odeiam Israel. Wald, talvez até pelo duro golpe da morte do filho, não era exatamente um cético, mas tinha adquirido certa clareza sobre o mundo e os povos. Ele não acredita que o mundo tenha conserto e acha que todos aqueles que até hoje se apresentaram como “consertadores do mundo” o transformaram em rios de sangue. As ideologias políticas se assemelham às religiões ao exigir devoção a seus dogmas, e as religiões por sua vez usam seus dogmas como trunfo quando anseiam o poder político. Ambas podem tornar-se sanguinárias.

Wald nas suas reflexões costuma dizer:
“O judaísmo e o cristianismo, e também islamismo, destilam todos eles o néctar da graça, da justiça e da compaixão, mas só enquanto não têm nas mãos algemas, grades, poder, porões de tortura e cadafalsos. Todas essas crenças, e mais aquelas que nasceram nas últimas gerações e continuam até hoje a enfeitiçar muitos corações, todas vieram para nos salvar e rapidamente acabaram a derramar o nosso sangue. Se ao menos um dia desaparecessem do mundo todas as religiões e todas as revoluções, eu lhe digo – todas, até a última delas, sem exceção – vai haver muito menos guerras no mundo”.


Para Wald, Shaltiel Abravanel era um sonhador, e assim como Jesus acreditava no amor universal, mas parece que ninguém entendeu o que ele pretendia: 
“(…) não obstante tudo que eu lhe disse antes, felizes os sonhadores, e maldito aquele que lhes abre os olhos. É verdade que os sonhadores não irão nos salvar, nem eles nem seus discípulos, mas sem sonhos e sem sonhadores essa maldição que paira sobre nós seria mil vezes mais pesada. Graças aos sonhadores, nós também, os sóbrios, talvez fiquemos um pouco menos petrificados e desesperançados do que estaríamos sem eles (…)”.

Sogro  e  nora,  em  momentos  distintos,  contam  para  Shmuel  sobre  a  decepção  de Abravanel, ativista político que imaginava um país onde judeus e árabes vivessem juntos, lado a lado e mesclados,  sem  identidade particular e sem denominação de  Estado.  Para os tempos  de Ben  Gurion,  tais  ideias  não  eram  mais  do  que  heréticas,  e  o  levaram  a  ser  expulso  das organizações sionistas de então. Sofreu ostracismo e passou seus últimos anos isolado de tudo e de todos com quem tinha antes mantido amizade, como líderes  políticos,  intelectuais,  artistas  e gente do povo em geral – judeus e árabes, pois não fazia distinção entre eles. Visto como traidor da  ideologia  sionista  não  só  por  suas  ligações  políticas  e  amistosas,  mas  principalmente  pela teimosia em firmar-se na  sua ideia de Israel e  Palestina  como território comum aos dois povos, Abravanel  morreu  para  o  mundo  muito  antes  de  falecer, de  manhã, tomando  café e  lendo  um jornal, na cozinha de sua  casa. Seus  escritos,  fórmulas  para  a convivência harmoniosa e talvez utópica entre judeus  e  árabes, foram destruídos por ele mesmo.  Nada sobrou das suas ideias  e lutas, dos projetos e miragens de um mundo ideal.
O  arquétipo representado  por  Abravanel  no romance foi  repelido  da memória política, enquanto  sobressaíram Ben  Gurion  e o sionismo prevalecente, com poucas modificações. Daí que se apresentam dois fusos ao redor dos quais gira a narrativa: a pseudotraição de Judas Iscariotes a Jesus e a ambígua traição de Shaltiel Abravanel ao sionismo, como era aceite então.

Altaia diz a Shmuel: “Os israelitas queriam um Estado só de Judeus. Queriam independência. Queriam bandeira, uniformes, notas de banco. Derramaram rios de sangue inocente para o conseguir. Sacrificaram uma geração inteira. Expulsaram centenas de milhares de árabes das suas casas. Enviaram navios cheios de refugiados sobreviventes de Hitler diretamente do cais para os campos de batalha, por isso os trouxeram para aqui. Tudo para criar um Estado Judeu. Vejam o que ganharam com isso. Os israelitas dizem que em 1948 na Guerra da Independência, combateram porque não tinham outro remédio, que estavam encostados à parede. Mas os Israelitas eram a parede! O meu pai não era adepto do nacionalismo. Não lhe agradava um mundo dividido em centenas de Estados Nacionais, como uma fila de jaulas separadas no jardim zoológico. Ben-Gurion, com a Guerra da Independência, e com o fanatismo de ter um Estado Judeu, conduziu milhares para a matança, para o massacre, para a expulsão, para o ódio eterno entre duas comunidades. O meu pai chegou a essa conclusão depois da revolta árabe de 1936, de Hitler, as organizações clandestinas judaicas, os cadafalsos erguidos pelos britânicos, e sobretudo com as muitas conversas que tinha com os seus amigos árabes, e que o levaram à conclusão de que havia lugar para as duas comunidades, e que era melhor viverem juntas, lado a lado, sem qualquer estrutura de Estado, e que essa seria a única maneira de evitar conflitos e viverem em permanente guerra décadas após décadas, que na sua opinião era o que iria acontecer. Era uma guerra sem fim. Talvez todos vocês sintam que têm razão. Talvez tenha sido melhor o que vocês fizeram aqui, que dezenas de milhares tenham sido massacrados, e que centenas de milhares tenham ido para o exílio. Pois, não serão os judeus aqui um grande campo de refugiados? E a partir de agora, os árabes vivem diariamente a tragédia da sua derrota e os judeus vivem noite após noite, com medo da vingança deles. E assim, do vosso ponto de vista, é muito melhor para todos. A guerra fez dois povos devorados pelo ódio e pelo veneno e desejosos de vingança e justiça. E a justiça é tanta que Israel está coberto de cemitérios e das ruínas de centenas de aldeias pobres que desapareceram. ”

Wald, por sua vez diz a Shmuel: “Apelidaram Shaltiel Abravanel de traidor, porque confraternizava diariamente com árabes. Recebia-os com frequência em casa. Apelidaram-no de traidor porque de 1947 a 1948, no auge da batalha da guerra da independência, continuou a defender que a decisão de criar um Estado Judeu era um erro trágico sem solução. Defendia que em vez do Mandato Britânico, existisse um Mandato Internacional. Dizia que era quase certo que os 100 mil sobreviventes do Holocausto provenientes dos campos de trânsito espalhados pela Europa seriam autorizados a vir para Israel. Os americanos apoiavam esta imigração e a colónia judaica aqui cresceria de 650 mil para 750 mil. E assim se resolveria a situação dos judeus desenraizados e aumentaria a força israelita contra os árabes. Depois, seria esperar que os árabes gradualmente aceitassem a nossa presença aqui, nos próximos 20 a 30 anos. Entretanto, talvez se instalasse a calma, desde que nós parássemos de exigir um estado Judeu. Abravanel dizia que o problema para os árabes não era tanto o movimento sionista existente em algumas cidades e aldeias, mas sim o receio da força militar cada vez maior dos judeus e das suas intenções futuras. Ele dizia que os árabes temiam sobretudo a superioridade cultural e tecnológica, a astúcia e a motivação dos judeus, superioridade essa que acabaria por levá-los a expandir-se e a dominar todo o espaço árabe. Dizia que os árabes receavam mais o gigante predador dentro de cada judeu, do que o pequeno embrião sionista. Eles nunca acreditaram que 750 mil judeus vieram para aqui para fugir às perseguições na Europa, mas sim para conquistar terreno e dominar, e para destruir as mesquitas do Monte do Templo e estabelecer um império judeu do Nilo ao Eufrates. Estes receios eram o que estava na origem da intensa oposição dos árabes à realidade que se desenvolvia. Apelidaram Abravanel de traidor porque a remota possibilidade de nos anos 30 surgir aqui a aspiração de criar um Estado Judeu independente, arrebatou os nossos corações para sempre. Ele perguntava-me: Para quê essa necessidade de criar aqui a sangue e fogo mais um Estado liliputiano com barreiras fronteiriças, cercas de arame farpado, bandeira, passaportes, exército e sistema monetário separado, à custa de uma guerra sem fim? Dizia que era melhor não tentar criar aqui um Estado, seja judeu ou árabe, e que era preferível vivermos aqui lado a lado, judeus e árabes, cristãos e muçulmanos, drusos e circassianos, um conjunto de comunidades vizinhas a viver em paz. Dessa forma, aos poucos, os receios dos árabes iriam dissipar-se em relação à conspiração sionista para judaizar toda a Palestina.
30 anos de conflitos causados pelo sistema britânico de “dividir para reinar” terminariam por fim. Abravanel acreditava que esta seria a única forma de conseguir a confiança entre árabes e judeus. Ele dizia que judeus e árabes tinham várias coisas em comum: ao longo da história, de formas diferentes, árabes e judeus foram vítimas da Europa Cristã. Os árabes foram humilhados pelas potências coloniais e foram vítimas de opressão e de exploração; os judeus sofreram gerações e gerações de desprezo, opressão, perseguições, expulsão, massacres e finalmente um extermínio. Duas vítimas da Europa Cristã, dizia Shaaltiel Abravanel. Não será isto uma base histórica profunda para o estabelecimento de relações de solidariedade e de entendimento entre eles? Dizia que se no final do Mandato Britânico, os judeus continuarem a insistir em criar um Estado Judeu Independente, nesse dia rebentará uma guerra sangrenta entre eles sem retorno. A essência da tragédia dos seres humanos, dizia Shaaltiel, não é que os perseguidos e oprimidos aspirem a libertar-se e a erguer-se. Não. O verdadeiro mal consiste em que, no fundo dos seus corações, os oprimidos sonham em tornar-se opressores daqueles que os oprimiram. Os perseguidos aspiram a ser perseguidores. “

Shmuel respondeu: “ Eu tinha apenas 13 anos quando rebentou a guerra da independência. Acreditava, como todos os judeus que, nós eramos a minoria com a razão do nosso lado, e que eles, os árabes, eram os maus em maioria com a intensão de nos expulsar daqui, porque nunca aceitariam que nos instalássemos aqui. Nada nos seria oferecido de bandeja, dizia o meu pai.”

Judas é o nome do livro porque é sobre a visão de Jesus para os judeus, pesquisa que Shmuel fazia antes de largar os estudos. Através de Jesus ele chega a Judas, e com Judas os judeus, e com os judeus a formação do Estado de Israel, e com o Estado de Israel a vida do velho e da mulher, o preço que cada um deles pagou e o resultado dos seus sonhos desfeitos.
No final, Judas nos parece uma metáfora de todos os personagens – contraditórios, condenados e, se olharmos mais de perto, talvez os únicos que se mantiveram fiéis.






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