domingo, 28 de janeiro de 2018

A Outra Metade de Mim ( Mischling )




Acabei de ler este livro ontem...
Vim aqui partilhar, porque é um livro que nos fica entranhado por vários dias seguidos.

Livros sobre o Holocausto são muito difíceis de ler.
Tenho sempre de fazer algumas paragens para me recompor.
São murros no estômago sucessivos.
É muito doloroso emocionalmente.
Mas, depois de ler os livros do escritor italiano Primo Levi, especialmente o livro "Se Isto é um Homem", e depois de ver o documentário sobre o Holocausto com a participação e testemunhos de alguns sobreviventes do Holocausto, percebi a importância de ler estes livros.
Para os sobreviventes, é insuficiente a informação dada nas escolas e nos livros de história sobre o Holocausto. Para eles, é fundamental que o mundo saiba a versão deles do que na realidade se passou, o que eles sentiram, o que sofreram, a dor que só pode ser descrita por quem a sentiu na pele.
Ao optarmos por não ler estes livros por motivos emocionais, estamos a dizer a estes sobreviventes que não queremos saber, não queremos partilhar a sua dor e sofrimento, e estamos a ignorá-los, a eles e à sua história.
Acho que é ofensivo e egoísta da nossa parte, não nos querermos envolver.
Tal como diz o Primo Levi num dos seus livros, Não Podemos Esquecer!!!!!!!
Os livros, os filmes e os documentários são uma forma de nos forçar a não esquecer!
O mínimo que podemos fazer, por respeito, é "ouvir" o que eles têm para nos dizer.
Por muito que nos custe.
A eles custou-lhes quase a própria vida.


A Stasha e a Pearl não me saem da cabeça...
Este livro mostra a possibilidade da existência de beleza num contexto de terror e desespero.

Mischling, o título original do livro, é uma palavra alemã que significa "mestiço". 
A palavra foi usada nas Leis de Nuremberg, de 1935, para designar os filhos de casamentos de judeus com alemães. A palavra possui significado ofensivo e pejorativo.
O Pai das gémeas era alemão, e a mãe das gémeas judia.

As papoilas na capa do livro são cheias de significado porque, no início do livro, quando as gémeas, o avô e a mãe, estavam a chegar a Auschwitz no "camião de gado" como as gémeas lhe chamaram, a mãe estava a desenhar uma papoila no chão.
Mais tarde, a Pearl começou a perceber que a determinada altura um dos gémeos desaparecia sem deixar rasto. Antecipando o que iria acontecer, pediu a Peter para roubar uma das teclas do piano que estava no armazém para dar a Stasha. A Pearl tocava piano antes da guerra, e quando levassem a Pearl e elas se separassem, Stasha teria sempre a tecla de piano para se lembrar da Pearl. Quando ela deu a tecla a Stasha, ela disse a Pearl que, quando ela sonhava com uma papoila era sinal que a família estava viva, mas quando sonhasse com um campo de papoilas era sinal de que estaria morta. Então, pediu-lhe a chorar que nunca a fizesse sonhar com um campo cheio de papoilas.
Já na última página do livro, quando a Pearl chega viva ao orfanato de Varsóvia escondida dentro de um caixão, encontra a Stasha a brincar com um cão abandonado no Jardim Zoológico, e jogam ao jogo que jogavam as duas, de costas uma para a outra, a desenhar no chão, para adivinharem o que cada uma estava a desenhar. Era uma forma de saberem se continuavam iguais. E o que as duas desenharam ao mesmo tempo, de costas coladas uma na outra, foi uma papoila...igual à que a mãe tinha desenhado no chão do "camião de gado".

Pearl tem a seu cargo o triste, o bom, o passado.
Stasha fica com o divertido, o futuro, o mau.

Corre o ano de 1944 quando as gémeas chegam a Auschwitz com a mãe e o avô.
No seu novo mundo, Pearl e Stasha Zamorski de 12 anos refugiam-se nas suas naturezas idênticas, encontrando conforto na linguagem privada e nas brincadeiras partilhadas da infância aparentemente alheadas da insanidade da época.
O confronto com a realidade não tarda, duro e cruel, ainda que disfarçado pela mentira de uma aparente benesse por serem crianças, gémeas e aparentemente perfeitas.
O preço desse interesse fez-se sentir da forma mais atroz e contraditória.

As meninas fazem parte da população de gémeos para experiências com humanos conhecida como o "Zoo" do Dr. Josef Mengele, inspirado em factos reais relacionados com Josef Mengele, médico das SS conhecido pelas suas experiências desumanas com os prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz. Responsável pela distinção e selecção dos que serviam para trabalhar e dos que seriam destinados às câmaras de gás, Mengele praticou experiências desumanas em prisioneiros do campo, especialmente em gémeos.
E, na qualidade de cobaias no célebre Zoo de Mengele, Stasha e Pearl conhecem privilégios e horrores desconhecidos dos outros.

“Para onde quer que olhássemos, havia um duplicado, um ser idêntico. Quando passámos pelas raparigas nos poleiros, vi as escolhidas, as que haviam sido selecionadas para sofrerem de determinada forma, enquanto a outra metade permanecia intocada. Em quase todos os pares, uma gémea tinha a coluna disforme, ou uma perna em mau estado, um olho tapado, um ferimento, uma cicatriz, uma muleta.” 

Começam a mudar, a ver-se extirpadas das personalidades que em tempos partilharam, as suas identidades são alteradas pelo peso da culpa e da dor.
Nesse inverno, num concerto orquestrado por Mengele, Pearl desaparece.

Stasha sofre a perda da irmã, mas agarra-se à possibilidade de que ela continue viva.
Depois de ver a mãe morta numa carroça cheia de cadáveres, de uma forma brusca e inesperada ao lado do Dr. Mengele antes de ele lhe pôr à força a gota no olho que a cegou, Stasha já no limite das suas forças físicas e psicológicas ouve a voz da mãe dizer-lhe ao ouvido intacto: 
"Vamos jogar a um jogo. Vais ser uma formiga. As formigas podem carregar um peso 50 vezes superior ao seu. Precisas da força da Formiga."  
A sobrevivência de Stasha, quando parecia que a morte dela era inevitável...a jogar ao Jogo das Coisas Vivas.

Quando o campo é libertado pelo Exército Vermelho russo, ela e o companheiro Feliks - um rapaz que jurou vingança depois da morte do seu gémeo - atravessam a Polónia, um país agora destruído, à procura de vingança, a caminho de Varsóvia para matarem o Dr. Mengele.
A vingança do Urso (Feliks) e da Chacal (Stasha).
Não os detêm a fome, os ferimentos e o caos que os rodeia, motivados como estão em igual medida pelo perigo e pela esperança.
Encontram no seu caminho aldeões hostis, membros da resistência judaica e outros refugiados como eles, e continuam a sua viagem incentivados pela ideia de que Mengele tem de morrer de forma cruel pelas suas mãos.
À medida que os jovens sobreviventes descobrem o que aconteceu ao mundo, tentam imaginar um futuro nele.

Stasha perdeu a audição de um ouvido e a visão de um olho.
Pearl, foi esventrada e roubaram-lhe o útero, e partiram-lhe os dois pés para não poder fugir.


  • Até onde se consegue preservar a identidade pessoal quando expostos a tantas experiências?
  • Será que a transformação física e emocional imposta por vivências improváveis, traumáticas e imponderáveis altera a identidade que procuramos preservar como se de um ponto cardeal se tratasse?
  • Haverá uma componente biológica no conceito de identidade pessoal?
  • Será possível preservá-la quando parte dos nossos traços físicos externos fica irreconhecível?
  • Até que ponto o nosso corpo expressa uma parte daquilo que somos como pessoas?


As gémeas Pearl e Stasha Zamorski passam-nos uma convicção de integridade, essência e preservação, independentemente do que viveram, como se as mudanças físicas impostas pela crueldade do médico Josef Mengele não tivessem valor real.
À desfiguração física gradual, lenta e calculada de uma das gémeas, como se de uma prova de resistência se tratasse, sobreveio a integridade do referencial afectivo e da própria imagem física, aparentemente inatacável pela barbárie a que estavam expostas.

Já no fim do livro, Pearl descreve o encontro dela na prisão com Elma, o braço direito do "Anjo da Morte" (Dr Mengele), que foi condenada em tribunal a prisão perpétua.
Pearl diz a Elma que a perdoa, e Elma goza com ela por andar de bengala e cospe-lhe nos pés.
Uma mensagem de perdão e de esperança na sobrevivência da raça humana:
“O meu perdão foi uma repetição constante, o reconhecimento de que continuava viva, a prova de que as experiências deles, os seus números, as suas amostras, tudo isso falhou – eu continuei a viver, um tributo aos seus erros de cálculo, pois subestimaram o que uma rapariga consegue suportar. O meu perdão deixou claro o seu fracasso em aniquilar-me.”

Impossível terminar sem referir a Dra Miri...
A confissão dela no hospital sobre o que os nazis lhe fizeram, a ela e à sua família, foi inesperadamente brutal e emocionante.
Assim como, o Pai dos Gémeos, que salvou várias crianças fazendo-os passar por gémeos, para irem para o "Zoo", na esperança de sobreviverem a Auschwitz.
O sofrimento dos dois no final do livro, por terem participado contra vontade no trabalho no Dr. Mengele no "Zoo". Apesar de terem ajudado as crianças sempre que podiam, e de no final terem levado as 32 crianças até Cracóvia sãs e salvas, isso não aliviou em nada a culpa e o peso na consciência de tudo o que fizeram em Auschwitz no Zoo de Mengele.

Uma história extraordinária, contada numa voz que tem tanto de belo como de original, Mischling é um livro que desafia todas as expectativas, atravessando um dos momentos mais negros da história da humanidade para nos mostrar o caminho para a beleza, a ética e a esperança.






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