terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Às vezes perdemos tudo






às vezes perdemos tudo
e aquilo que era estreito
e que habitava os dias
torna-se imenso
cresce desmedidamente no ventre das memórias
e quando não cabe lá dentro
rebenta o que cuidadosamente muralhámos
e inunda a planície em que pastam os nossos medos
no rebanho então tresmalhado do nosso passado

nesse momento dói tanto estar vivo

às vezes perdemos tudo
e aquilo que vivemos sem dar conta
e que no fundo éramos nós a respirar
grita-nos aos ouvidos que estamos a morrer
porque não sabemos viver quando perdemos tudo

grita-nos aos ouvidos que há oceanos que não sabemos muralhar
e que o nosso passado não existe realmente
porque perdemos o mapa da terra longínqua
da ilha esquecida
em que um dia o enterrámos

às vezes perdemos tudo
e aqueles que amámos à volta da mesa
a quem amarrámos as nossas mãos e jurámos amar para sempre
ficam tão longe
tão longe

e nessa altura desenterramos mesmo o que nunca chegámos a enterrar
mergulhamos sofregamente as mãos numa terra em ruínas
que outrora eram muralhas inabaláveis

sempre que perdemos tudo
percebemos que há minutos que são milénios imensos
e descobrimos que a vida que vivíamos sem dar conta
e que no fundo éramos nós a respirar
é um milagre cheio de elementos
que reconhecemos e em quem nos identificamos
um milagre onde habitam as pessoas a quem amarrámos as nossas mãos

e jurámos amar para sempre
um milagre que existe para lá das memórias que quisemos muralhar
e que no fundo nunca soubemos compreender



José Rui Teixeira
in, "Quando o Verão Acabar, Quasi"







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