segunda-feira, 10 de junho de 2013

Que Tuiávii fale por mim


O livro O Papalagui são uma série de depoimentos de um indígena chamado Tuiávii, chefe da tribo Tiavéia sobre os costumes europeus escritos pelo alemão Erich Scheurmann.
Papalágui significa homem branco.

O conflito de visões é aparente, o homem branco europeu, de cultura cristã, fora ensinado a subjugar a natureza, de que há pecado original, de que se deve cobrir a nudez e a trabalhar pelo progresso.
A cultura indígena se adapta a natureza, é mais instintiva que racional, busca mais o prazer dos sentidos que a elevação espiritual, enquanto o homem branco despreza a humildade e a simplicidade de uma vida pacata e sadia sem ambições.

Tuávii não conheceu a civilização ocidental, seu background histórico não teve influência de Roma, da Grécia ou da Cristandade. 
Sua tribo não conheceu a física de Newton, a astronomia de Galileu Galilei, não fazia parte da Ágora de Aristóteles, Sócrates ou adentrou na caverna de Platão, não foi ao teatro assistir a uma tragédia grega, a escolástica de Tomás de Aquino e Santo Agostinho lhe era estranha, não conhecia a ética de Zenão ou Epícuro, tão pouco ouviu falar das conquistas de Julio César, Alexandre ou da conversão de Constantino, não leu A riqueza das nações de Adam Smith, nunca ouviu falar dos direitos naturais de John Locke ou o poder tripartido de Montesquieu. 
Sua mitologia não tinha a revelação dos dez mandamentos do judaísmo e não possuia a idéia de um salvador pessoal, desconhecia As Institutas de Calvino ou O Cativeiro Babilônico do Papado de Lutero, jamais conheceu o humanismo de Petrarca ou O Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã.

Contudo, a civilização européia aportava em suas praias com um plano de assimilação cultural. Tuávii deve ter temido as mudanças trazidas pelos de pele clara, e movido de um espírito conservador à lá Edmund Burke e feito uma apologia reacionária dos costumes indígenas.

No princípio Tuiávii descreve que ensinaram que o corpo era pecado, e ridiculariza a forma como o homem branco trata de se cobrir, de forma desajeitada e anti-natural. E cita que se o corpo do sexo oposto fosse nu todo o tempo, o homem branco teria mais tempo para pensar em outras coisas do que a luxúria. Chama mamadeira de “rolo de vidro, fechado em baixo com uma maminha artificial em cima”. Também é nesse capítulo que ele faz fortes críticas estéticas ao modelo de corpo do papalágui, que admira seu nariz pontiagudo em vez do nariz achatado do índio.

Critica que o homem branco faça moradas de pedra, porque a casa do Índio é a natureza. Critica o amor ao dinheiro, à escravidão que a busca pela felicidade através de finanças traz e a falta de caridade dos ricos que promovem a desigualdade e se alegram enquanto outros passam fome, ao fato de possuir coisas e ter de guardá-las, e quanto mais possui mais se empobrece tornando-se dependentes delas.

No capítulo V fala da inconformidade do homem branco com o tempo, na busca para controlá-lo e possuí-lo. Tuiávii diz que de Deus são todas as coisas, e que esse Deus fica empobrecido pelo homem branco que toma tudo para si e lhe envia castigos por isso. Que o que o homem branco construiu jamais pode livrá-lo da morte, que é preferível o artista que é Deus do que o homem branco brincando de Deus.

Tuiávii não compreende porque devemos trabalhar mais do que o que Deus ordenou, e trabalhar com alegria e não com fadiga, para o homem branco, o castigo do pecado original para o homem era o trabalho, para o índio, trabalho é também lazer e desfruto.

Diz que a imprensa escraviza os pensamentos, desejando que todos pensem igual. E diz que o Papalágui se farta de pensamentos como uma arma de munição, prestes a disparar para todos os lados, e o pensar demais sobre tudo é uma insatisfação constante e terminam perdidos pois se estendem acima do que podem.

Também não poupa o cinema, ao qual chama de vida de mentira e de muitos papéis, uma sala escura onde um homem se senta e luta com um baú produzindo ruídos tão selvagens quanto um conflito na aldeia a fim de desviar a atenção de que as pessoas na tela não podem ser ouvidas.

Tuiávii faz pesadas críticas à religião colonizadora, dizendo ela ser tão ou mais idólatra do que a religião antiga dos indígenas, diz que o Evangelho foi trazido como mercadoria de troca e que o Papalágui não possui Deus em seu coração, que Deus ama mais sua tribo do que o Papalágui. Contudo, Tuávii não contraria o Cristo, dizendo ser seguidor de seus mandamentos e honra o Papalágui por ter trazido a luz divina do Grande Espírito.

O livro encerra com esse apelo de não se misturar com o homem branco, com duras críticas à então Europa moderna, progressista da época e à religião católica. Dizendo-se suficientemente contente com as alegrias nobres e belas que Deus os dá em grande quantidade.

O livro mostra como Tuávii enxergava com igual estranheza senão maior os costumes do homem branco do que o Papalágui com sua tribo. A visão dele consegue descrever detalhes que escapam aos que estão inseridos na cultura européia, disposta a aceitar de bom grado qualquer novidade tecnológica em nome do progressismo, quando não está desajeitadamente conservando costumes sem compreendê-los tal qual um bárbaro, rígida demais para mudar segundo os desafios de um novo habitat.

A ironia é que se há algo que Tuávii assimilou do homem branco com perturbadora perfeição foi seu desprezo pela cultura diferente, se os de pele alva despreza a cultura indígena, Tuávii da mesma forma ignora a história do homem branco e seus avanços científicos polarizando as duas culturas e criando um conflito de preconceitos de ambos lados. Ora, dois mais dois valem quatro tanto para o homem branco quanto para o indígena independente de cor da pele, Tuávii não deveria demonizar o homem branco com críticas que acabam por denunciar a superficialidade de seu conhecimento sobre a cultura ocidental.

O livro não pretende ser imparcial e mostrar a defesa do pele clara, o livro é uma tentativa de Tuávii formalizar uma resposta racional aos assédio cultural europeu, é um marco intelectual da cultura indígena, seja como discurso de apologia ao indigenismo, seja como testemunho de dois importantes povos.

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